18 outubro 2022

heiner müller / cem passos

 



(segundo Defoe)
 
 
No século da peste
Um homem habitava em Bow, a norte de Londres,
Barqueiro, sem meios nem consideração, mas
Fiel aos seus. Circunspecto mesmo
Na sua fidelidade.
Das cidades a jusante
Onde havia a peste
Ele trazia os víveres rio acima
Para os burgueses ansiosos
Nos seus barcos
A meio do rio.
Assim a epidemia alimentava-o.
Mas a peste estava também
Com a sua mulher e o seu filho de quatro anos
Na sua cabana.
E do rio todas as tardes ele fazia subir, fruto da sua jornada,
Um saco de comida que pousava sobre uma pedra a cem passos da sua cabana.
Depois, estendendo-se, chamava a sua mulher. Observava-a
Quando ela erguia o saco, seguia com atenção cada um dos seus movimentos
Ficava ainda um instante
A boa e segura distância
E respondia à sua saudação.
 
 
 
heiner müller
poemas (1949-1995)
trad. adolfo luxúria canibal
oficina noctua
2021





17 outubro 2022

martín lópez-vega / política




Como tinha lido em René Char
(«Aquele que acredita no girassol não meditará dentro de casa.
Todos os pensamentos de amor serão os seus pensamentos»)
pus girassóis no jarrão, ao lado das laranjas,
em completa harmonia com o teu vestido. Cúpulas douradas
entregues à sua reza, politeísta e nós
dervixes giróvagos em redor da sua alegria.
 
Sobre a mesa os objectos contemplam-se.
Quando a mão os mover
calar-se-ão e falará a mão.
Escuta-os antes,
não terás outra oportunidade;
assim com tudo.
 
Numa conca de madeira com castanhas
uma romã e um marmelo são uma ética.
Como duas partes de algo anterior agora reunido
quando tento pintá-las
o vermelho foge para o amarelo e o verde para o laranja.
 
Na cozinha fumega ainda
o chá vermelho com mel de urze, sem procurar a chave
de uma emoção precisa (cf. Durrell, Lawrence, Collected Poems,
Dutton, New York, 1960, pp. 92-93), enquanto que da rua
chegam pela varanda aberta as vozes dos lojistas,
o chiar da corrente de uma bicicleta,
uma canção que não conhecemos e cujas notas
ouvidas ao acaso procuram o seu lugar bem dentro de nós
para voltar num outro dia a perturbar-nos, sem saber bem porquê.
 
– Que fazeis?
– Política.
 
Parámos a meio do caminho
Que vai do subiectum ao subiectus, detivemos o dispositivo
para contemplar cada detalhe do instante, os ínfimos
grãos de pó suspensos no ar da habitação,
cada minúscula fenda nas vigas de madeira do tecto,
o preguiçoso gato eslovaco, o tiquetaque do despertador,
os livros empilhados, a canção, as vozes, a bicicleta…
parámos o tempo e podemos mover-nos pela sua quietude.
 
– Isto é o que a poesia ensina ao mundo.
– Parecer-te-á pouco.
 
 
 
martín lópez-vega
a eterna qualquercoisa
tradução de Jorge melícias
officium lectionis edições
2022






 

16 outubro 2022

r. lino / palavras do imperador hadriano no princípio de antinöé



o dinheiro ficará pardo
enquanto te uso; relembro;
falo pouco das gretas,
anónimas margens das mãos,
e do calor
mais de ti, porém…
recebo a imortalidade
que para mim deixaste
alienada na obrigação dos escravos,
procurados a partir de nós
– como o Império –
no sítio desta boca.
convém deixar (assim o penso)
outro rasto
feito miragem do trabalho
e, no entanto,
o mundo correrá exactamente
para o contrário.
famoso ficará o inventor
das diferenças no vasto bosque
da igualdade…
tu,
quem eras
para deste modo o permitires?
 
 
 
r. lino
palavras do imperador hadriano
políptico
companhia das ilhas
2016

 




 

15 outubro 2022

bernardo soares / tudo é encontrar qualquer coisa.

 
 
Tudo é encontrar qualquer coisa. Mesmo perder é achar o estado de ter essa coisa perdida. Nada se perde; só se encontra qualquer coisa. Há no fundo deste poço, como na fábula, a Verdade.
 
Sentir é buscar.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol. II
europa-américa
1986




14 outubro 2022

francisco sardo / penélope

 



 
cantariam seus olhos a distância
neles deixaram os meses desavindos
uma promessa embora      ou o desatino
dos dias     na memória atribulada
 
digamos contudo que era apenas
a placidez da noite contra a insónia
a febre desse sonho vigilante
que nos confins da noite ainda esperava
 
 
 
francisco sardo
as rugas do calcário
edição do autor
1983

 


13 outubro 2022

gemma gorga / a casa

 
Os ossos são longos corredores onde faz sempre
frio, como se a morte tivesse deixado a porta
aberta. Talvez seja no coração que primeiro
germina a espora da dor, húmida e vermelha,
mas é nos ossos que essa dor perdura,
insistente, como um grão de areia feito pó.
O ar fica carregado, e desprende-se, dispara, espalha
fotografias sobre estas toalhas
onde é tão difícil acabar o jantar
agora que já não existes, agora que a sala se enche
de absurdas borboletas da memória.
Tento prender-lhes as asas com agulhas
muito finas, mas sem querer perfuro os meus próprios dentes
e lábios. E já não consigo dizer, já não consigo fazer
mais nada a não ser passa-las de uma mão para a outra:
fotografias como pequenas caveiras
entre o ser do passado e o não ser do presente.
 
 
 
gemma gorga
a desordem das mãos (2003)
o anjo da chuva
trad. miguel filipe mochila
do lado esquerdo
2021




 

12 outubro 2022

fernando ortiz / na idade perfeita

 
 
O sabor do café e o cigarro,
o pausado passeio cada tarde,
o cheiro da terra quando chove,
a grata conversa com um amigo
e uma rara página gostada
são teu amor à vida, os teus sentidos.
Aprofundam-se as feridas com o tempo
embora ele mesmo esconda as cicatrizes.
Passou a juventude e o que tens
chamam-lhe os néscios maturidade.
 
 
 
fernando ortiz
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 




11 outubro 2022

robert desnos / literatura



 

Hoje gostaria de escrever uns versos bonitos
Tal como aqueles que lia quando andava na
                                                         escola
Isso às vezes punha-me os sonhos do avesso
Também é possível que eu seja um pouco
                                                           louco
 
Mas contar todas estas palavras acoplar estas
                                                         sílabas
Parece-me um trabalho fastidioso de formiga
Perderia nisso o meu latim o meu chinês o
                                                    meu árabe
E até o sono meu prestável amigo
 
Escreverei então como falo e será uma pena
Se algum gramático surgido da penumbra
Quiser condenar-me com cólera e desprezo
Há outra ciência onde posso confundi-lo.
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022


 


10 outubro 2022

paulo campos dos reis / os cães ladram

 



 

Como se vive não sei.
Sei que vivo pouco cansado
com palavras virgens na chegada
e um corpo de rapaz no caminho.
 
Amor e morte não me assustam.
A caravana passa.
 
 
 
paulo campos dos reis
habilitações literárias
volta d´mar
2022




09 outubro 2022

john donne / mudança





elegia III
 
Embora a tua mão e fé, e também as boas obras
Tenham selado o teu amor, que nada pode destruir,
Sim, e porém te retrates, essa apostasia
Confirma o teu amor; agora muito, muito te temos.
As mulheres são como as Artes, comprometidas com nenhum,
Abertas a todos os inquiridores, sem valor se desconhecidas.
Se eu apanhar um pássaro, e o deixar fugir,
Outro embusteiro, usando os mesmos meios que eu,
Pode apanhar o mesmo pássaro; e, dado as coisas serem assim,
As mulheres são para os homens, não para ele, nem para mim.
Raposas e bodes; todas as bestas mudam quando lhes apraz;
E as mulheres, mais quentes, manhosas e selvagens,
Deveriam a um só homem sujeitar-se? Tê-las-ia então a Natureza
Por desfastio, feito mais aptas a resistir que o homem?
São as nossas grilhetas, não de si próprias; se um homem
For acorrentado a uma galé, a galé continua livre;
Quem tem uma terra arável, lança-lhe toda a semente,
E admite ainda que o seu solo mais grão devesse gerar;
Embora o Danúbio corra para o mar,
O mar recebe o Reno, o Volga e o Pó.
Pela natureza, que lha deu, esta liberdade
Amas tu, mas Oh! Não poderás amá-la a ela, e a mim?
A semelhança cola o amor: E se isto tu assim fizeres,
Tornando-nos iguais, e a amar, deverei eu também mudar?
Mais do que o teu ódio, odeio isso, deixa-me antes
Permitir-lhe que mude, e não mudar tanto quanto ela,
E assim, não ensinar, mas forçar a minha ideia
A amar, não uma qualquer, nem a todas.
Viver numa só terra é cativeiro,
Correr todos os países, uma desenfreada velhacaria;
As águas depressa fedem, se num só lugar descansam,
E no vasto mar ainda mais apodrecem:
Mas quando beijam uma margem, e deixando-a
Nunca olhando para trás, a próxima margem vão beijar,
Então são as mais puras; a Mudança é a creche
Da música, da alegria, da vida e eternidade.
 
 
 
john donne
elegias amorosas
trad. helena barbas
assírio & alvim
1997






 

08 outubro 2022

joão melo / amigos

 



 
Penso nos velhos amigos,
em especial os que se foram cedo demais ou,
de tanto terem mudado
se tornaram irreconhecíveis
 
Penso nos amigos recentes,
que se foram chegando,
com ou sem aviso,
fazendo esquecer ou não
os velhos amigos
 
Penso nos futuros amigos,
que, estou certo, se cruzarão comigo
um dia destes,
sombrio ou ensolarado
 
Ainda não penso em partir,
mas tenho a certeza:
quando for,
hei-de levá-los a todos no meu coração
 
Mesmo os que tiverem deixado de ser,
de facto ou ilusoriamente,
meus amigos
 
 
 
joão melo
diário do medo
editora urutau
2021
 

 


07 outubro 2022

sebastião belfort cerqueira / nada

 



 
É mesmo verdade
Nada interessa
Nem o fim do mundo
Mundo
Nem sombras dessa pressa
Se à sombra destes junco
Um mundo a dois começa
 
A calma branca e os dias molhados
São nossos pra fazer o que quisermos
E os velhos medos vão sendo afogados
Pelo bater das pás
Dos nossos remos
Descansados e em paz no meio do rio
E descansados
 
É mesmo verdade
Nada interessa
Não há nada que peses ou que me impeça
Se tenho ao meu lado
A ajudar
A dizer-me de onde vem o vento
Que às vezes se levanta
Aqui dentro
E a usá-la pra nos fazer andar.
 
 
 
sebastião belfort cerqueira
está um dia lindo
edições sempre-em-pé
2021
 



06 outubro 2022

john ashbery / a outra tradição



 

Todos eles vieram, alguns traziam sentimentos
Gravados em t-shirts, anunciando o adiantado
Da hora, e de facto o sol inclinava os seus raios
Por entre ramos de araucária como se
Polidamente tossisse, e todas as ideias assentaram
Num veludo de pó debaixo de árvores quando chuvisca:
Os infindáveis jogos de Scrabble, os apoiantes,
A célebre omelette au Cantal, e no meio de tudo isso
A voragem do tempo mergulhando sem freio pelas comportas
Dos dias, arrastando todos os seus momentos sexuais
Frente às lentes: o fim de alguma coisa.
Só então ergueste os olhos do teu livro,
Incapaz de compreender o que estivera a passar-se ou de
Dizer o que estiveras a ler. Trouxeram-se
Mais cadeiras, e acenderam-se candeeiros, mas nada
Explica como tudo isto começou a materializar-se
À tua frente e as pessoas à espera lá fora e na rua
Seguinte, repetindo-lhe uma e outra vez o nome, até o silêncio
Ascender a meio dos troncos escurecidos,
E a reunião ser dada por iniciada.
                                                            Ainda me lembro
De como te encontraram, após um sonho, de chapéu-dedal,
Absorto como uma borboleta num parque de estacionamento.
O caminho para casa era na altura melhor. Afastando-se, cada um dos
Trovadores tinha algo a dizer sobre o modo como a caridade
Seguira o seu curso e vencera, deixando-te ex-presidente
Do acontecimento, e como, embora muitos dos presentes
Desejassem que isso levasse a alguma coisa, mesmo que a um longínquo
Fio de fumo, nenhum estava tão iludido que aspirasse
A essa fresca não-existência de alguns minutos antes,
Agora que a ideia de uma floresta se pregara
Sobre as minúcias da cena. Achaste isto
Encantador, mas viraste abertamente a cara à noite
Falando para dentro dela como um megafone, sem ouvires
Ou te preocupares, embora estes ainda vivam e sejam generosos
E de todas as maneiras contidos, autorizados a entrar e a sair
Indefinidamente para dentro e para fora da paliçada
Têm imensa dificuldade em lembrar-se, quando o teu esquecimento
Por fim os salva, como uma estrela absorve a noite.
 
 
 
john ashbery
auto-retrato num espelho convexo e outros poemas
tradução antónio m. feijó
relógio d’ água
1995