22 setembro 2022

pat boran / poção

 
 
Verão. Tempo da minha mãe. Um lugar
onde tudo era possível – ficar a pé
até tarde, trocando o dar graças
após as refeições por gelado e uma chávena,
 
nunca um copo, daquele sumo especial
que ela fazia com açúcar, limões e
um pó cujo uso misterioso
não pode ter-se restringido ao nosso clã
 
embora nenhum dos amigos a quem perguntei
se lembre de ver a mãe naquela fila
na farmácia Hipwell onde a minha passava
meio dia aos sábados, a dizer “E como está?”
 
a cada pessoa que chegava. O que é estranho.
Pois ela juntava-o à água e fazia a água mudar.
 
 
 
pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018




21 setembro 2022

luís a. fernandes / no quintal havia um limoeiro

 



 
no quintal havia um limoeiro
transplantado pelo pai
onde a mãe secava as toalhas
para lhes dar cheiro
 
comíamos à sua sombra
e bebíamos limonada.
fomos crescendo todos
ele sempre mais que nós.
 
quando a mãe desapareceu
de nossa casa
os limões começaram
a apodrecer nos ramos.
 
 
 
luís a. fernandes
nervo/15 setembro/dezembro 2022
colectivo de poesia
2022

 



 


20 setembro 2022

carlos tê / cavaleiro andante




 

Porque eu sou o cavaleiro andante
Que mora no teu livro de aventuras
Podes vir chorar no meu peito
As mágoas e as desventuras
 
Sempre que o vento te ralhe
E a chuva de maio te molhe
Sempre que o teu barco encalhe
E a vida passe e não te olhe
 
Porque sou o cavaleiro andante
Que o teu velho medo inventou
Podes vir chorar no meu peito
Pois sabes sempre onde estou
 
Sempre que a rádio diga
Que a américa roubou a lua
Ou que um louco te persiga
E te chame nomes na rua
 
Porque sou o que chega e conta
Mentiras que te fazem feliz
E tu vibras com histórias
De viagens que eu nunca fiz
 
Podes vir chorar no meu peito
Longe de tudo o que é mau
Que eu vou estar sempre ao teu lado
No meu cavalo de pau
 
 
 
carlos tê
110 anos, 110 poetas
antologia comemorativa dos
cento e dez anos da universidade do porto
u.porto press
2021




 

 





 

19 setembro 2022

sandra costa / luz de setembro



 
                                                          – se eu soubesse a palavra,
                                                          a única, a última,
                                                          e pudesse depois ficar em silêncio para sempre…
 
                                                          Vergílio Ferreira

 
 
 
A sequência é simples. Acrescento um dia a outro dia.
Os meses sucedem-se, as estações acontecem e,
sem que sejam necessários milagres, cai sobre mim
a luz de Setembro, essa sombra que sou.
Vem uma flor, depois outra flor e as árvores,
como as nuvens, ao abrigo dos silêncios que subsistem
em certos vocábulos, como ruína, hesitação, relâmpago,
melancolia, acendem-se e mudam de cor.
Algures, cortam os campos ao milho, seca-se e extrai-se
a eira da vagem do feijão, sobem-se as vindimas até ao desvão
do mosto e ainda no sismo da vertigem que é a infância
alguém descobre ou perde um templo feito de sol.
Dou um passo e mais um passo. Descalça, sempre
descalça, faça chuva ou esteja calor, que Setembro é
um mês de incertezas, para que me doam menos
os trilhos e as trevas dos desencontros e os mistérios
que poderiam ter ocorrido junto ao mar.
de verso em verso, saio porta fora, no rasto da última
luz de Setembro, essa sombra que sou, como se procurasse
a definitiva palavra de um poema de Vergílio Ferreira e
assim rompesse o lado mais impuro das candeias.
A sequência é simples. Acrescento amor às sombras
que ficarão para sempre.
 
 
 
sandra costa
manual da vida breve
poesia reunida 2003-2021
officium lectionis edições
2021
 


 

18 setembro 2022

valter hugo mãe / o pássaro não esquece a canção

 
 
o pássaro não esquece a canção
 
afundá-lo no olhar
a roubar o vento
e
navegar para casa
navegar para casa
 
onde a lágrima de cristal
pousa entre as louças da cozinha
 
amar é servir para outro mundo
 
 
 
valter hugo mãe
publicação da mortalidade
poesia reunida
primeiro livro, segunda parte
caxinas, dois
assírio & alvim
2018
 




17 setembro 2022

sharon olds / monarcas



 
Toda a manhã, eu sentada a pensar em ti,
as Monarcas têm passado. Sete andares acima,
à esquerda do rio, dirigem-se para
sul, as suas asas vermelho-escuras como
as tuas mãos de talhante, as veias
estampadas das suas asas como as tuas cicatrizes.
Mal conseguia sentir as tuas palmas rudes enormes
sobre mim, tão leve era o teu toque,
algo delicado, gretado, que arranhava tal pata de insecto
sobre o meu peito. Nunca ninguém
me tocara antes. Nem sequer sabia
abrir as pernas, mas senti as tuas coxas,
com uma penugem de ouro rubro,
                                                              abrindo-se
entre as minhas pernas como um
par de asas.
A impressão do meu sangue em cavilha sobre as tuas coxas –
uma criatura alada presa ali por alfinetes –
e depois partiste, como havias de partir
uma e outra vez, as borboletas deslocando-se
imensas pela minha janela, flutuando
para sul para se transformarem, atravessando
fronteiras pela noite, a sua nuvem difusa
vermelhas de sangue, o meu corpo sob o teu,
a beleza e o silêncio das grandes migrações.
 
 
 
sharon olds
satanás diz
trad, margarida vale de gato
antígona
2004




 


 

16 setembro 2022

miguel serras pereira / le temps retrouvé

 



 

Tu não sabias que cantavas
e eu nada sabia
mas já todas as fontes em que eu bebia se calavam
sempre que tu adormecias
 
Eu nada sabia do tempo que traria
a paz do tempo ao tempo que passava
e todo o tempo que passava se perdia
Mas tu não sabias que cantavas
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
corça 1982
barricada de livros
2022





 


15 setembro 2022

manuel a. domingos / a meu favor

 


 

A meu favor
tenho o prédio vazio
o miar do gato o tapete que
não escorrega devido
ao antiderrapante
 
E tenho estas paredes
higienicamente brancas o murmúrio
do vento no respirador da casa
de banho o cotão debaixo
da cama feita de fresca
 
 
 
manuel a. domingos
aprendiz
volta d´mar
2019





14 setembro 2022

pier paolo pasolini / ao príncipe

 



 

Se voltar o Sol, se cair o crepúsculo,
     se a noite tiver sabor de noites futuras,
se uma tarde de chuva parece regressar
     de tempos muito amados e jamais
                                               possuídos,
eu já não fico feliz, nem disso retiro prazer ou
                                                   sofrimento
     já não sinto, diante de mim, a vida inteira…
Para se ser poeta, é preciso ter muito tempo
     horas e horas de solidão são a única
                                                        maneira
de dar forma a alguma coisa, que é força,
                                                     abandono,
     vício, liberdade, de dar estilo ao caos.
Eu tempo já tenho pouco: por culpa da morte
     que avança, no ocaso da juventude.
Mas também por culpa deste nosso mundo
                                                        humano,
     que aos pobres tira o pão, aos poetas a paz.
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




13 setembro 2022

javier salvago / outra idade

 
 
Passou a idade de eu ser poeta
porque tudo passa, é a lei da vida;
embora continue, por vício ou por instinto,
 
falando a um papel, a poesia
já não é a minha pátria nem o meu território.
Apenas regresso às vezes, de visita,
 
Como quem volta aonde foi feliz.
 
 
 
javier salvago
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997





12 setembro 2022

alejandra pizarnik / azul

 
               
as minhas mãos cresciam com música
atrás das flores
 
mas agora
por que te procuro, noite,
por que durmo com os teus mortos
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
las aventuras perdidas (1958)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020





11 setembro 2022

daniel pennac / os direitos inalienáveis do leitor




57
 
Quanto ao livro, nada mais.
Passemos ao leitor.
Porque, mais instrutivos ainda do que os modos de tratar os livros, são os modos de os ler.
Em matéria de leitura, nós, os «leitores», temos todos os direitos, a começar pelos que recusamos aos jovens que pretendemos iniciar na leitura.
 
                1) O direito de não ler.
                2) O direito de saltar páginas.
                3) O direito de não acabar um livro.
                4) O direito de reler.
                5) O direito de ler não importa o quê.
                6) O direito de amar os «heróis» dos romances.
                7) O direito de ler não importa onde.
                8) O direito de saltar de livro em livro.
                9) O direito de ler em voz alta.
              10) O direito de não falar do que se leu.
 
 
Parei arbitrariamente no n.º 10, primeiro porque é uma conta redonda, depois porque é o número sagrado dos famosos Mandamentos, e também porque é agradável, pelo menos uma vez, servir para uma lista de autorizações.
 
Porque se queremos que o nosso filho, a nossa filha, a juventude leiam, é urgente outorgar-lhes os direitos que outorgamos a nós próprios.
 
 
 
daniel pennacc
como um romance
trad. francisco paiva boléo
edições asa
1994





 

10 setembro 2022

vergílio ferreira / a memória

 
 
172 – A memória. Ela é quase sempre uma recuperação de imagens imóveis. Porque relembrar o movimento exige um esforço de deliberação. E a memória simplesmente aparece. Mas são imagens que se marcam ou douram de um envolvimento que as transfigura. Um halo, uma ténue neblina. E tudo isso inserido numa certa estação do ano, num certo momento do dia ou da noite. São imagens que se repetem na evocação de certos lugares como se os condensassem e nelas se resumisse ou aglomerasse a vida toda aí vivida. Uma hora de neve, de um gelo na face ao caminhar por uma rua com os beirais das casas pingando a água do degelo. Uma certa hora de Outono com esguios castanheiros a desfolharem-se. Uma certa noite de Varão com uma grande lua a nascer. Um passeio pelo campo com flores silvestres que talvez ninguém mais veja. Memória de uma vida tão cheia do seu nada nesse breve instante que a resume toda. O melhor de si. Esse nada de si.



vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001