28 julho 2022

antónio manuel couto viana / café de subúrbio

  
2.
Choram para o chão os guarda-chuvas.
Chove e faz frio. O café está cheio.
Lento, descalço as luvas,
Pego num livro e leio.
 
É um livro de antiquada poesia:
Uns versos démodés, de um dandismo epocal,
Certa melancolia
E um satanismo gris de Flores do Mal.
 
(Café parisiense. Século XIX.
O absinto e a lavalliére.
Lá fora, como agora, chove, chove…
Ai, com que sugestões a inspiração me fere!)
 
Jovem, alguém, na mesa ao lado,
Espia-me a leitura, num sorriso de dó.
E fecho o livro, desencantado,
Com os olhos e os dedos já manchados de pó.
 
 
 
antónio manuel couto viana
as escadas não têm degraus 4
livros cotovia
janeiro 1991





 
 

27 julho 2022

mário dionísio / memória dum pintor desconhecido

 
 
46
Neste café quase deserto
não espero hoje ninguém
senão a cor difusa duma ausência
que não magoa e sabe bem
 
Uma palavra ou outra incompleta se recorta
na memória um minuto preguiçosa
só mal desperta quando a porta
se abre e fecha e entra alguém
que vai sentar-se longe ou aqui perto
 
O sol de inverno sinto-o nos dedos
como discreta ajuda carinhosa
a esta construída sonolência
tão espontânea sei lá em tanta gente
 
Que longe tudo o que procuro!
 
Ser como os outros todos um instante que seja é tão tranquilo e diferente!
sem planos sem segredos
sem história sem passado sem futuro
 
 
 
mário dionísio
poesia completa
memória dum pintor desconhecido (1965)
imprensa nacional-casa da moeda
2016




26 julho 2022

saint-john perse / canção do presumido

 
 
 
Honro os vivos, tenho rosto entre vós.
E um fala à minha direita debaixo do ruído da sua alma
e o outro sobe para os navios,
o Cavaleiro ampara-se na sua lança para beber.
(Trazei para a sombra, debaixo do umbral, a cadeira pintada do
        ancião.)
 
                                                  *
 
Honro os vivos, tenho graça entre vós.
Dizei às mulheres que alimentem,
que alimentem na terra esse estreito fio de fumo…
E o homem caminha dentro dos sonhos e dirige-se para o mar
e o fumo sobe à ponta dos promontórios.
 
                                                  *
 
Honro os vivos, tenho pressa entre vós.
Cães, oh! meus cães, a vós assobiamos…
E a casa pejada de honrarias e o ano amarelo entre a folhagem
nada são para o coração do homem quando pensa:
todos os caminhos do mundo vêm comer-nos à mão!
 
 
 
saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016




 

25 julho 2022

josé luis piquero / no parque de campismo

 
 
A sua beleza – um escândalo
de riso e juventude –
não direi que era o único motivo.
Pois é certo talvez que nos podemos
enamorar de pormenores tolos
e queridos – dizia sempre «oh!»
antes de responder; mas além disso dançava
maravilhosamente; e depois aquela
maneira tão graciosa
de usar a madeixa sobre os olhos.
 
No parque de campismo tinha má fama,
um fox-terrier e uma irmã mais nova.
Descíamos à povoação muitas vezes
e eu pagava o cinema, os refrescos,
como um namorado feliz e complacente
que faz festas nas cabeças dos cães e das crianças.
Na noite antes de partir trocámos,
com as direcções, promessas de escrever.
 
E embora seja certo que tenho
o seu postal de Roma e várias cartas,
desse verão guardo sobretudo
a penosa impressão do fracasso cobarde,
certo desassossego que nos dias de sol
me parece vergonha.
                                      Teria sido
muito melhor ter-lhe dado um beijo naquela noite
e perder-me com honra, e não lhe escrever.
 
 
 
josé luis piquero
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




24 julho 2022

ruy belo / homem perto do chão

 
Na primavera quando as tardes se arredondam
e já nas praias nascem as primeiras ondas
e volta sobre o mar a ave solitária
o homem enche de ar o peito vespertino
arranca o corpo à chuva e às nuvens do inverno
e chega a ter desejos de ficar
Mas em que rosto isento de contradição
há-de ele peregrino erguer a tenda?
Não abrem na cidade à sua frente as ruas
caminha ante deus como se visse
esse deus invisível
Florescem quando passa contraditórios clarins
cantando cada um sua ideia diversa
nenhuma o levará à pátria que procura
Tenham outros tambores ele tem
a pesada cabeça entre as mãos caída
Ele que desça ao fundo de todos os olhos
que nos trazem a alma à flor da pele
também não serão lá o coração ou a infância
Quando a tarde morrer ou o outono vier
do seu olhar é que as aves todas partirão
Aí temos um homem perto como nunca nem ninguém do chão


ruy belo
todos os poemas I
aquele grande rio eufrates

assírio & alvim
2004





23 julho 2022

henry deluy / o mar tratava da paisagem

 
 
O mar tratava da paisagem. – Era
A mim que calhava estar sentado, - ali
Perto de um sopro incolor. – Uma luz
Púrpura tombava em ondulações densas
E azuladas. – Retalhos de conversas
Da véspera vinham-nos à memória.
O mar estava nu.
 
             *
 
Estava verdadeiramente nu.
 
 
 
henry deluy
primeiras sequências
trad. colectiva mateus, set. out. de 2000
quetzal editores
2002




22 julho 2022

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
III
Quando em silêncio passas entre as folhas,
uma ave renasce da sua morte
e agita as asas de repente;
tremem maduras todas as espigas
como se o próprio dia as inclinasse,
e gravemente, comedidas,
param as fontes a beber-te a face.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




 

21 julho 2022

hans-ulrich treichel / ao atravessar a paisagem

 
Ao atravessar
a paisagem, penso: aqui, atrás
desta janela, a sombra
do homem, a minha sombra, aqui
nesta porta, a mulher, a minha mulher.
 
E ali a árvore,
o muro, a cova, plantada, levantado,
cavada por mim.
 
O bode ao pé da estaca,
preso, abatido por mim, o menino
de bicicleta, diante da cancela
fechada, o meu menino, a cancela
fechada por mim.
 
Ao atravessar
a paisagem, penso: aqui os
carris cintilantes, o
leito da via, o horizonte de fumo, deslocados,
ensaibrado, atravessado por mim.
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




20 julho 2022

antónio manuel azevedo / pedido de empréstimo

 
 
 
Arranja-me uns versos para o verão.
Coisas de areia, de memória
e sem futuro. Passos das tuas coisas
em volta, a luz perdendo
que guia o pescador, o turista
e o amante em aventuras com o regresso
aos quartos onde repousa para o fim
a escassa vida.
 
Escreve como quem descreve quase
o fim do amor, da casa, do caminho
o teu ao meio-dia de agosto
quase inteiro de sol
e outras poentes alegrias.
 
 
 
antónio manuel azevedo
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990
 



19 julho 2022

sandro penna / tinham-me deixado só

 
 
 
Tinham-me deixado só
no campo, sob
a chuva fina, só.
Olhavam-se espantados
mudos
os choupos nus: sofriam
com o meu castigo: castigo
de não saber claramente…
 
E a terra molhada
e os negros altíssimos montes
calavam-se vencidos. Era como
se um deus ruim
tivesse com um só gesto
petrificado tudo.
 
E a chuva lavava aquelas pedras.
 
 
sandro penna
trad. albano martins
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990





 

18 julho 2022

josé carlos llop / modus vivendi

 
 
Cruzar de caleche estas terras
esquecidas pelo homem.
Viver um regime antigo
Caçar de madrugada. Cuidar das cartas
para os amigos, do quintal
junto dos muros da casa
– a doçura da tâmara
a sombra da figueira –.
Pôr ordem num pequeno jardim
onde ler ao sol no inverno,
e no verão atrás da gelosia,
toda enlaçada pelas heras
e pelos jasmins. Estar só;
contemplar como se cumprem
os ciclos da natureza,
como crescem os teus filhos.
Escrever ao cair da tarde.
Passear debaixo das estrelas
e o ladrar dos cães
ao longe. Dormir pouco.
Atiçar o fogo na noite,
enquanto os pavões reais
pousam na copa de azinheiras
e tu te submerges nos tomos
daqueles velhos mestres
que já não existem.
 
 
 
josé carlos llop
poesia espanhola de agora volume I
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997



 

17 julho 2022

gonçalo m. tavares / envelhecer

 
 
O Perigo não tem lugares fixos, como se sabe.
          Nem todos podem morrer de frente
ou com um tiro na nuca,
                    por vezes o assunto último
          é manuseado com tiques mesquinhos,
dedos como bicadas de galinhas imbecis
          a bicar o inútil, o impossível e a pedra.
Morres mas não morres de vez como os animais.
Apodreces, sim, como as plantas (quando envelheces)
          como uma rosa disputada à força por dez mulheres,
ou como um deus imortal atingido cem vezes.
          Talvez eu preferisse ver a erva
como os ratos vêem,
olhando em frente com os olhos minúsculos.
          Mas não.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
 



16 julho 2022

armando silva carvalho / agrário e agreste

 
 
                           ao António Rego Chaves
 

 
Sobre as árvores encolhidas que gastavam
a ternura de tudo; severo,
o céu desajeitado avolumou-se.
Na testa do silêncio ao pé dos montes
as pedras adoecem entre o sangue
derrota que se imprime por palavras
se imite diminuta nos alqueives.
Sob a capa da terra e no alcance
dos dedos de fora inesperados
a rotura simples dum soluço
ferindo o estrume em breves plantas novas.
Ao longe o grito do abraço em pé
com as vergonhas cobertas de papel
os prumos os cabos o pão um ovo
o vinho deitado, aqui ao pé do choro.



armando silva carvalho
lírica consumível 1965
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007