04 julho 2022

louis aragon / arte poética

 
 
 
Perguntam-me com insistência
Porque é que de vez em quando mudo
De linha
É por uma razão
Verdadeiramente indigna
De ser ex
Pressa
 
 
 
louis aragon
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




 

03 julho 2022

emily dickinson / há uma zona cujos anos iguais

 
 
Há uma Zona cujos Anos iguais
Nenhum Solstício interrompe –
Cujo Sol constrói um perpétuo Meio-Dia
E as Estações perfeitas se detêm –
 
Cujo Verão chega ao Verão, até
Que os Século de Junho
E os Séculos de Agosto cessam
E a Consciência – o Meio-Dia.
 
 
 
emily dickinson
duzentos poemas
trad. ana luísa amaral
relógio d´água
2014




 

02 julho 2022

adília lopes / gosto de me deitar

 
 
Gosto de me deitar
sem sono
para ficar
a lembrar-me
das coisas boas
deitada
dentro da cama
às escuras
de olhos fechados
abraçada a mim
 
 
 
adilia lopes
florbela espanca espanca (1999)
caras  baratas
antologia
relógio d´água
2004



01 julho 2022

antónio ramos rosa / aqui onde o sol se acende em carne

 
 
Aqui onde o sol se acende em carne,
onde a casa é um nome de mar,
e os frutos e os espelhos
amadurecem o corpo solidário:
É Verão.
 
Aqui tu és
lenta verdade no sossego do sangue:
circulação de nomes e de peixes.
 
Aqui, à fome dos nomes e dos seres,
respondes, corpo do mar, coluna real
e teus acidentes se cumprem como ondas.
Aqui te palpo, vela, aqui te vejo, pomo,
formas meus braços, se te enleio,
desato simplesmente os teus anéis,
bebo-te sem te extinguir e sem me esperares.
Amanhã serás tu, sendo já hoje.
 
Recebendo-te como outra, outra nasces
e a ti mesma te igualas, porque és mar.
teu corpo denso se aproxima, ora se afasta.
Há um perfume de uma noite inextinguível
nas tuas coxas claras.
 
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985



30 junho 2022

rui diniz / as estações

 
 
«Sorrio estimulado pelo segredo», um céu de flandres
deflagra como se o mundo acabasse. Nada
renasce, nenhuma coisa melhora. Eu, que passei
nos anos a melhor parte da espera, entro na
gare e saúdo-vos, até virem melhores dias.
Nas casas, o rio deixa uma sonoridade de
milénios, de tal modo se torna inútil inquirir
da sua antiguidade. Os cafés superlotados do
outono contêm rostos ligados a uma cor pálida
e desgostada, pobres, jovens mães, romancistas
de carreira. E eu brinco com os dejectos à beira-mar.
espevito para os faróis a carne vermelha das
orelhas porque se faz tarde e os barcos, suas
quilhas que alongam, pervadem o salso mapa,
em direcção da terra. Isto que não sei que seja
sinto hoje ou sempre, não os outrora complicados
de um compatriota, não a resposta para como se
deve viver, mas esta atmosfera saudável que
cobre o rio, a morada do lótus, o rodado premicial
de guindastes e âncoras. Sorrio junto
a mais este cais, nova etapa do périplo que
efectuo na terra, mais quilómetros e dias
numa ampulheta de whisky.
A experiência de olhar, o desfile das paisagens,
a mais simples forma de idolatrar, estes rostos
ávidos, em pressa, fugindo-se mutuamente
at last acoitados ao abrigo de sótãos, carpetes
e ateliers. Por outro lado as algas cantam, de
completamente diverso modo os náufragos rezam.
A quem sabe da voragem nada jamais surpreende.
Nem os lábios que se acendem, nem o rubor dos
assassinos, nem coisa tão insolitada como o bater
regrado do interrogando no interrogado. Pois
as madeiras sonham barcos enquanto o
desgoverno nos oprime.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




29 junho 2022

concha garcía / esse outro dia

 
 
Eu dantes vivia num andar avarandado.
Depois vivi noutro andar avarandado. Tive três.
Três andares. Os táxis não eram demasiado caros.
Voltar a cabeça para ver outra rua não tinha nada
de especial. Em cada um dos três andares
tive um amante e amei como nunca.
Amei tanto que não podia suportar as varandas
sozinha e tive de recordar varandas, tive
de criar com varandas, tive de mudar-me
para outro andar sem varandas. E não desejo
amar ninguém, o meu desejo cansa-se. O meu desejo
já não suporta andares avarandados.
Estou sentada numa cadeira. Tenho em frente
a televisão. Olho para ela. Não a vejo. Olho para ela.
 
 
 
concha garcía
pormenor
poesia espanhola de agora vol. I
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




28 junho 2022

neil curry / sobre as manhãs

 
 
Agora muitas manhãs acordo, olho à volta
E anuncio ao mundo ainda desfocado,
Meu Deus, cá estou de novo.”
Não há contudo necessidade de me mexer já. O soalho range;
Passos a seguir, uma porta a bater no andar de baixo,
O silvo da chaleira e barulho
No balde do carvão. Cantos alegres
E repentinos de pássaros e se o cortinado se mover
Um sol baixo entra deslizando, imitando-se a si próprio
Nos puxadores de bronze da cómoda. Mas ouçam agora,
Todos vós, há-de vir o dia em que terão
De se encarregar destes pequenos rituais sozinhos,
Ouso contudo dizer que vão conseguir.
 
 
neil curry
companhia a mrs woolf
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017




 

27 junho 2022

tásos leivadítis / dedicatória

 
 
 
A todos os que nas noites tempestuosas das revoltas procuram uma
          lua infantil
aos que já não tinham tempo, aos que foram esquecidos
na doçura do sono quando todos nos tinham abandonado
aos espelhos onde nos fitámos, aos mares que não navegaremos
aos caminhos que percorremos apaixonados e a que talvez não
          tenhamos voltado
ao destino, à bela juventude, aos viajantes
(e eu, aonde ia? e era assim tanto o que pedia? Mas agora é tarde –
          é tempo de partir)
às aves de arribação, às locomotivas a vapor que se cansaram e se
          viraram de lado para dormir
às espigas que a luz ilumina, às raparigas que despem a saia para
          entrarem no céu,
às cartas de um anjo para um menino, aos que se atrasaram, aos que
          nunca voltarão
à mulher que deita as cartas, ao velho que chora
à Odisseia que vive o poeta ao escrever o mais pequeno poema
ao instante luminoso que viveu um homem vivendo uma vida
          inteira…
 
 
 
tásos leivadítis
os manuscritos do outono, 1990
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
tradução de manuel resende
língua morta
2021
 



26 junho 2022

josé miguel silva / a portuguesa

 
 
De criadores de cabras e de naus a bisonhos
fabricantes de badalos para sinos de betume,
caro Georges, anda ver o meu país de gazeteiros,
entre o pau que vai e vem, infelizes foliões,
de costas para o mar. Anda ver estes Manéis,
dobrados de avidez, os dedos dominados
por volantes suicidas, abolidos entre fados,
manivelas, promoções. À porrada que lhes dão
chamam-lhe futuro, receiam mais os livros
do que a morte dum irmão e é com gosto
que preparam a cabeça para o golpe do carrasco.
Das Marias só te conto a mania do verniz,
os derrames de perfume no altar da pequenez,
a vida cambiada pelo crédito de gritos.
Anda, caro Georges, anda ver e depois diz-me se
o pior da alma humana vem ou não à superfície,
como o lodo, quando séculos de pez e abulia
são bulidos por correntes de paixões bonificadas,
num caseiro leva-e-traz de catilinas ambições,
de paixões inoculadas pelo gosto de morrer
a cada dia um poucochinho.
 
 
 
josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014




25 junho 2022

vasco graça moura / picasso visto do porto

 
 
4
 
no porto não havia «os» pessoanos e as questões do realismo
punham-se de são lázaro até ao passeio alegre, chegavam a matosinhos
nas conversas sobre arte e no dia a dia lá em casa
para pagar na mercearia ou comprar sapatos novos.
 
o que também funcionava era uma sólida destruição
do real que o mantinha ferozmente
semelhante e rasgado e algumas coisas amavam-se com fulgor excessivo
mas sem a coragem de se ir até ao último espasmo.
 
tudo isto foi uma longa aprendizagem do razoável, do portuense,
que é difícil de desfazer e às vezes nem é inteiramente triste.
os ricos destruíam vários equilíbrios
menos o do pôr do sol na foz do douro e uma certa cordialidade.
 
musa, é isso o que a trama, armada em anjo azul
e fulva de trejeitos vistos no cinema,
tudo muito anos vinte, tudo muito boquilha
nesses passos que esboça retardando a nudez.
 
 
 
vasco graça moura
os rostos comunicantes
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007




24 junho 2022

yorgos seferis / as fogueiras de s. joão

 
 
IV
O nosso destino, chumbo fundido, não pode mudar
nada pode fazer-se.
Deitaram o chumbo fundido na água debaixo das estrelas e
          as fogueiras podem arder.
 
Se ficares nua diante do espelho à meia-noite
          vês
vês o homem passar no fundo do espelho
o homem dentro do teu destino que governa o
          teu corpo,
dentro da solidão e do silêncio o homem
da solidão e do silêncio
e as fogueiras podem arder.
 
À hora em que findou o dia e não começou outro
à hora em que se cortou o tempo
aquele que desde agora e antes do princípio governava
          o teu corpo
tens de encontra-lo
tens de procura-lo para que pelo menos
outro alguém o encontre, quando tiveres morrido.
 
São as crianças que acendem as fogueiras e gritam
          diante das labaredas dentro da noite quente
 
          (Houve acaso alguma fogueira que não fosse acesa
          por uma criança, ó Heróstrato)
e deitam sal dentro das chamas para que crepitem
          (Como olham estranhamente as casas de súbito para nós,
          cadinhos das pessoas, quando as afagar
          um reflexo).
 
Mas tu que conheceste a graça da pedra no rochedo
          batido pelo mar
o entardecer em que a serenidade caiu
ouviste de longe a humana voz da solidão
          e do silêncio
dentro do teu corpo
aquela noite de S. João
quando se apagaram todas as fogueiras
e estudaste a cinza debaixo das estrelas.
 
                                                Londres, Julho 1932
 
 
 
yorgos seferis
caderno de exercícios
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993
 




23 junho 2022

eugénio de andrade / a domingos peres das eiras, com umas violetas

 



 
Há nomes que a nossa memória recusa guardar sozinhos. Não é que não tenham em si mesmos sortilégio bastante para atravessarem a morte desamparados, mas apenas porque a nossa imaginação lhes deu um rosto de homem, numa idade em que, sem um rosto, nenhuma imagem, por mais próxima ou menos degradada, se tornaria dócil e convivente. Junto dos muros calcinados de Tróia, como poderemos escapar à feroz sedução da figura de Aquiles? Até à roda dos meus vinte anos, o Porto e um «bom cidadão do lugar» estavam tão religados no meu espírito, que eu amava a cidade só através de um rosto – o de Domingos Peres das Eiras. Naquelas falas, que Fernão Lopes pôs na sua boca, era a masculina música das palavras sem vileza que eu escutava, e o seu rosto, de que nenhum de nós conhece as feições, uma das poucas imagens de hombridade portuguesa, que eu juntava a outras, num tempo em que a juventude não cessa de crescer. Quem não se recorda das palavras com que responde ao enviado do Mestre de Avis? «Eu digo por mim e por todo este poboo que aqui esta, que nos somos prestes com boa voomtade de servir o Meestre, nosso Senhor, e fazermos todo o que ell mamdar por seu serviço e deffemssom do rregno. Ca já ell seeria huű estranho que nos nom conheçeriamos, e quamdo sse ell desposesse ataaes trabalhos e perigoos por nos deffemder e emparar, nos o serviriamos com os corpos e averes; moormente seer elle filho delRei dom Pedro como he…» Ainda hoje não consigo ler estas linhas sem uma leve agitação nas águas que em mim parecem mais mortas, e, ainda hoje, o que amo nesta cidade é essa música primeira que, alguns séculos depois, ressoaria na prosa de Herculano. Domingos Peres das Eiras é o seu nome – dizia eu aos amigos, quando visitei o Porto pela primeira vez, num entardecer já distante, ali, no terreiro do Convento da Serra, fascinado por todo aquele casario que se derramava às golfadas no Douro, as fachadas roídas pelos dias húmidos e viscosos, onde uns restos de sol fulguravam nas janelas e nos telhados, e as torres mais hirtas pareciam recuar na noite, que principiara a cair. – Precisas de ler Camilo – responderam-me. Eu calei-me: não era forte em Camilo. Pensava no espírito tão genuinamente popular desta terra, a que se encontrava vinculada a mais alta das suas virtudes, a sua fronderie liberalista, que conquistou o privilégio de banir a nobreza dos seus muros e não permitiu ao Tribunal do Santo Ofício celebrar aqui mais que um só auto-de-fé. Que me importava a mim, naquele momento, o que dissera Camilo do Porto? Poderia alguém, Camilo ou quem quer que fosse, negar aquela beleza desgrenhada e áspera que tinha diante dos olhos? Só mesmo quem fosse cego de nascença.

Fiquei então por cá dois ou três dias. O Ernesto mostrou-me o mar da Foz, a Cantareira, o «cabedelo de oiro», que Raul Brandão diz ter conservado sempre na retina; com a Sophia passei uma tarde nos jardins abandonados da Quinta do Campo Alegre, eu próprio abandonado ao som da sua voz que se misturava com o jorrar das águas e o cheiro resinoso e marítimo dos pinheiros; o Aires levou-me de corrida a ver, não o coração de D. Pedro, como sugeria o motorista do táxi, mas o negrilho da Cordoaria, as tílias do Palácio, as magnólias de S. Lázaro, o jacarandá e o cedro glauco do Largo de Viriato; ao Eduardo fiquei a dever o Pousão do Palácio dos Carrancas e a Torre dos Clérigos com versos de Pascoaes à mistura. Quanto a Camilo, só o li – e mal é certo! – muitos anos depois: quando voltei ao Porto para ficar. Quem o nega? Camilo viu do Porto a outra face, a do «burgo antigo com a sua dinastia de comerciantes», que o Eça também lhe descobre, sem contudo lhe negar o que lhe negou Camilo – a honradez: «O bom portuense se quiser ter foros de cidadão terá de provar que o bisavô veio para a cidade com uma broa e meio presunto no saco, escarranchado sobre dois costais de castanholas; que o avô teve balcão de fazendas brancas e foi irmão do Santíssimo, irmão benemérito da Misericórdia, e vinte anos a fio vestiu balandrau para pegar ao andor de Nossa Senhora. Item, que o pai era, sem vergonha do mundo negociante de quatro portas, afora os postigos por onde passava o contrabando; que sua mãe fora uma gorda e boa mulher que remendava, passajava e sabia mesmo deitar uns fundilhos nas calças do marçano e nunca na vida tivera pacta com letra redonda.» Era isto o Porto, na juventude de Camilo? Se pensarmos no pendor caricatural e polémico do autor de Amor de Perdição, nas circunstâncias em que tais palavras, e outras, e outras, foram escritas (poucas vezes, como aqui, o verso de Pessoa «Compra-se a glória com desgraça» terá tido tanta ressonância), poder-se-á objectar que a imagem está um tanto ou quanto desfocada; ou se preferem: não seria o provincianismo apelintrado, que se despeja inteiro na cidade da Virgem, afinal, característica de todo o país? Do país…, do país…, que pensava Camilo? Oiçam-no! «Quando se fará ao menos inodora esta cloaca de Portugal?» Azedo, agastado, doente, «escouceado» numa terra que lhe não perdoava o sarcasmo, como a Garrett não perdoou a ironia, Camilo ainda pôde, contudo, escrever a um amigo: «Estou triste. Aproxima-se a hora de deixar para sempre esta terra, onde, a par de muitos dissabores, experimentei alegrias instantâneas. Não é da gente que tenho saudades. É de não sei quê…» São realmente muito tortos os caminhos do amor.

Mais do que o sarcasmo de Camilo, que disfarçava, ao fim e ao cabo, uma ternura por esta gente metida nos seus «tamancos estóicos» (se assim não fora, como explicar que lhe tenha mordido e remordido o coração?), surpreende o desprezo de António Nobre, nascido na Rua de Santa Catarina, educado em colégios da Rua Formosa e da Rua de Cedofeita, que guardará o seu amor para os subúrbios da cidade. O dandy das praias de Leça tinha a sua opinião formada, e a sua opinião era a de Eça de Queirós, como comunicará de Paris a Alberto de Oliveira: «Jesus! Que terra! Verdadeiramente inabitável!» Pobre moço, coitado! Não tardaria em saber que não só o Porto, mas todo o planeta, é inabitável. E acabará – oh, má sina do poeta! – os seus dias ali na Foz a murmurar: «Que lindo que isto é!» Que descanse em paz. Ámen.

Aquele que foi o irmão maior de Nobre – «Garrett da minha paixão…» – será com o Porto bem mais generoso. Para lá do «grande aldeão» que lhe atirou à cara, teceu ao seu exemplar espírito de liberdade o mais belo hino de que esta terra se pode orgulhar, além de ter lavrado ainda, «em recta pronúncia e frase de brasão», um decreto em que todos os seus títulos de nobreza lhe são confirmados por despacho régio, e de lhe reformar as Armas, onde «lhe coloca, em escudo de honra, no meio, o coração de D. Pedro…» Nem assim o «leal, paciente e bom povo» da sua cidade lhe perdoou os versos de juventude – Garrett nunca será eleito deputado pelo Porto, como tanto ambicionou. Em carta a Gomes Monteiro, datada de 23 de Junho de 1838, escreverá: «Quanto a mim, sem falsa modéstia, nem escrúpulo algum, lhe digo que trago atravessado na garganta, o não ser eleito pela minha terra…» Em 1840, ainda se queixa ao mesmo amigo: «Eu sou do Porto, dói-me se não me elegerem os meus patrícios porque em verdade mereço-lho.» Em verdade, merecia-o, e o Porto perdeu uma ocasião única em demonstrar que não era «aldeão» ao mais civilizado dos seus filhos.
 
A grande trindade poética que lavra, nesta pedra escura, o perfil seguro do Porto – Fernão Lopes, Garrett e Camilo – leva fatalmente à cidade uma pessoal visão de mundo, o seu génio próprio. O Porto de Fernão Lopes é quase legendário: heróico e honrado; o de Camilo, grotesco e dramático; o de Garrett irónico, pitoresco e sentimental. São três tempos (em duplo sentido: histórico e musical) do seu carácter que, embora esquematicamente enunciados, nos permitem algumas aproximações. A cidade viril de Fernão Lopes é ainda a de Herculano, Ramalho, Jaime Cortesão e Miguel Torga; Raul Brandão, Pascoaes e Agustina estão, de algum modo, na continuação do pessimismo de Camilo; de Garrett parte, dessorada, perdido por completo o seu impenitente humor, toda uma toada que de Júlio Dinis e António Nobre vem desaguar em tanta loa tacanhamente regionalista e deprimente. Isto para falarmos apenas de quem mais se debruçou na alma destas pedras, bem pouco transparente, como se vê.
Não sei como é que a palavra se insinuou: convenhamos que vem pouco a propósito. A transparência é aqui nostalgia: até a luz terá a cor do granito. Mas o granito é às vezes de oiro velho, e outras azulado, como o luar escasso que nesta noite de outono escorre dos telhados. Quando o sol, mesmo arrefecido, incide nos vidros, as mil e uma clarabóias e trapeiras e mirantes da cidade enchem o crepúsculo de brilhos – o Porto parece então pintado por Vieira da Silva: é mais imaginário que real. Para as bandas de S. Lázaro, as ruas estão coalhadas de silêncio. Os passos de quem regressa tarde a casa são raros, até os mais leves se ouvem à distância. Na noite alta, o repuxo do jardim tem a nitidez de um coração muito jovem. Fora as magnólias, não há árvore com folha. Os bancos estão desertos – os trolhazitos que por aqui se aquecem ao sol, à hora do almoço, devem ter adormecido nalgum canto dessas casas em vias de construção, que há um pouco por toda a parte. Dormem enrolados no friínho que principia a rondar. Os cafés fecham as últimas portas. Saem os retardatários um pouco aos bandos, quase todos jovens. Barulhentos, sem pressa, encaminham-se para a Batalha. Um automóvel, rápido; outro; outro ainda. Um dos moços assobia. As palavras da canção ecoam-me na cabeça:
 
          If you’re going to San Francisco
          be sure to wear some flowers in your hair…
 
Param a olhar os cartazes de um cinema. São realmente muito novos e, como poldrinhos amedrontados, juntam-se, empurram-se uns aos outros, aos berros: – Não viste nada, pá, quem viu fui eu! – É um adolescente de camisola alta, os cabelos à Shelley, as calças cingidas. Que teria ele visto, que deixou de assobiar? A Mónica Vitti entrar no Hotel da Batalha? O rei Édipo atravessar a praça pela mão de Antígona? Os Beatles empoleirados na estátua de D. Pedro V? Ou o rosto que eu procurava na noite – o rosto sem feições conhecidas de Domingos Peres das Eiras, escoando-se, solerte, pela Rua de Cimo de Vila? Sigo-lhe a sombra, distanciado, e logo lhe perco o rasto. Talvez tenha entrado numa daquelas casas estreitas e encardidas, de letreiros pendurados no portal, anunciando «Dormidas» em letras vermelhas. De uma ou outra janela exígua, uma luz bafienta escapa-se, a custo, entre as portadas espessas. Inesperadamente, ouvem-se uns risos meio aloucados de rapariga, o ranger de uma porta que hesitou em abrir-se , logo uma voz muito frágil, rasteirinha: – Fica ainda um pouco, Miguel. – Eis a Rua Chã, a Rua Chã das Eiras, como outrora se dizia. Aqui, dentro de portas, a mais triste das máscaras de Eros fascinava ainda alguns solitários. Dois soldados olhavam as vidraças foscas. Um velhote aproximou-se a cantarolar, pediu-me um cigarro. – Contente, hem?! – Pois…, a vida são dois dias. – Ou menos, homem. E donde tira você a alegria? – Olhe, do sol… – O velhote fitou-me. Não posso jurar que sorrisse, mas os seus olhos brilhavam no escuro. Ainda me ocorreu perguntar-lhe: – E quando chove? E olhe que chove muito no Porto! – Mas fiquei calado. Um homem que arranca alegria do sol tem direito a ser respeitado. O velho sumiu-se por uma viela abrindo em arco. A Sé via-se já de flanco. No empedrado do terreiro, os passos crepitavam. Só o barulho das motorizadas conseguia atravessar tanto silêncio. As colinas de Gaia estão cheias de luzes coadas por uma neblina rala que jamais se extingue. Não há nenhuma cidade, assim, que subitamente não se torne secreta. No rio, junto ao cais, distinguiam-se dois ou três barcos de carga, no meio do tremor mercantil dos anúncios luminosos. No negrume dos telhados, quebrado nas ruas mais próximas quase só pela brancura de uns lençóis a secar às janelas, rompem as agulhas das igrejas – lancinantes. Quatro ou cinco mimosas trepam miudinhas. É outono, creio que já o disse: a terra cheira bem. No Carmo já deve haver violetas à venda. Preciso passar por lá amanhã: tenho a quem enviar um ramo. A noite embaciara à medida que crescera, mas vislumbrava-se ainda, lá ao fundo, uma torre esgalgada. O assobio recomeçou, não sei onde, talvez na Rua Escura ou na de S. Sebastião. Mas agora era outra a música que tinha dentro de mim:
 
          «Para a minha alma eu queria uma torre como esta,
          assim alta,
          assim de névoa acompanhando o rio.»
 
 
 
eugénio de andrade
daqui houve nome portugal
prefácio
editorial inova
1968




 


22 junho 2022

herberto helder / teoria sentada

 
 
I
 
Um lento prazer esgota a minha voz. Quem
canta empobrece nas frementes cidades
revividas. Empobrece com a alegria
por onde se conduz, e então é doce
e mortal. Um lento
prazer de escrever, imitando
cantar. E vendo a voz disposta
nos seus sinais, revelada entre a humidade
dos corpos e a sua
glória secular. Uma dor esgota
a idade, com cravos, da minha voz.
E eu escrevo como quem imita uma vida e a vida
de uma inconcebível
magnitude. Ou somente de uma
voz. Um lento desprazer, uma
solidão verde, ou azul, esgota por dentro e para cima,
como um silêncio, o antigo
de minha voz.
O que digo é rápido, e somente o modo
de sofrer
é lento e lento. É rapidamente fácil e mortal
o que agora digo, e só
as mãos lentamente levantam o álcool
da canção e a formosura
de um tempo absorvido. Digo tudo o que é
mais fácil da vida, e o fácil
é duro e batido pela paciência.
Porque a terra dorme e acorda de uma
para outra estação.
 
Porque vi crianças alojadas nos meus
melhores instantes, e vi
pedaços celestes fulminados na minha
paixão, e vi
textos de sangue marcados desordenadamente
pelo ouro. Porque vi e vi, na saída
de um dia para o começo
da primeira noite, e no despedaçar da noite.
E porque me levantei para sorrir
e ser cândido. E porque então
estremeci com a rapidez das palavras e a quente
morosidade
da vida. Eu disse o que era fácil
para dizer e eu tão
dificilmente havia reconhecido. Porque eu disse:
um prazer, um pesado prazer de cantar
a vida, consome a única voz
de uma vida mais sombria e mais funda.
E eu mudo sobre este campo parado
de cravos, quando a lua
rebenta, quando
sóis e raios crescem para todos os lados do seu
fulminante país.
 
Alguém se debruça para gritar e ouvir em meus
vales
o eco, e sentir a alegria de sua expressa
existência. Alguém chama por si próprio,
sobre mim, em seus terríficos confins.
E eu tremo de gosto, ardo, consumo
o pensamento, ressuscito
dons esgotados. Escrevo à minha volta,
esquecido de que é fácil, crendo
só no antigo gesto que alarga a solidão contra
a solidão do amor.
Escrevo o que bate em mim — a voz
fria, a alarmada malícia
das vozes, os ecos de alegria e a escuridão
das gargantas lascadas. Para os lados,
como se abrisse, com a doçura de um espelho
infiltrado na sombra. Fiel
como um punhal voltado para o amor
total de quem o empunha.
 
Alguém se procura dentro de meu ardor
escuro, e reconhece as noites
espantosas do seu próprio silêncio. E eu falo,
e vejo as mudanças e o imóvel
sentido do meu amor, e vejo
minha boca aberta contra minha própria boca
num amargo fundo de vozes
universais.
 
Alguém procura onde eu estou só, e encontra
os cravos forte
da sua solidão. Como um campo desbaratado
e branco.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
teoria sentada
assírio & alvim
1996