04 junho 2022

josé tolentino mendonça / restos de chuva

 
 
Traz um lírio seco cravado nas costas à traição
a morte do pai em certos nomes
consumida na meteórica duração
que permitia aos cigarros
a distância terrível de si mesmo
até as pequenas as mais inocentes viagens agravavam
a dor de ter um corpo um sabre herdado
sobre o monte de livros de roupas e de súplicas
 
Na fotografia com um grande sol prateado
e um caminho de cartão que depois nunca percorrera
o pai estava à sua frente e não se via
a inclinação ténue dos seus olhos
 
Agora os filmes e os remorsos ocupavam-lhe as tardes
comboios errados em que propositadamente se metia
para fugir não da sombra mas da luz calma da luz pura
 
 
 
josé tolentino mendonça
longe não sabia
presença
1997
 



03 junho 2022

luís miguel nava / ainda às vezes

 
 
Avanço devagar, vão-se os amigos na ressaca
de cujo amor avanço assim deixando
ficar contudo aos poucos para trás, embora o mar
lhes sobre ainda às vezes do sorriso.
 
Procuro esses amigos. É possível
atar-lhes o horizonte entre o cabelo e acaricia-los
ainda uma vez mais. fazer-lhes através
das mãos passar o sopro das pedreiras.
 
 
 
luís miguel nava
onde à nudez
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002
 



02 junho 2022

jabra ibrahim jabra / caçadores numa rua estreita

 
 
 
Nós, filhos do deserto, não precisamos de eufemismos. Chamamos a uma pá uma pá… as nossas histórias são histórias de pessoas verdadeiras e acontecimentos verídicos. Não temos que os registar em livros, mantemo-los vivos através da palavra, de boca em boca. Somos a nossa própria obra de arte, e o resto não importa. Conheces a história do beduíno que uma vez quis fazer uma estátua? Ele queria fazer uma estátua em honra de uma mulher falecida que ele amava, mas não tinha materiais para trabalhar. O que tinha era uma grande quantidade de tâmaras. Por isso fez a estátua com tâmaras. Na manhã seguinte, estava com tanta fome que comeu a estátua. E fez bem.
 
 
 
jabra ibrahim jabra
um árabe é um árabe/é um árabe, um árabe
breve antologia de poesia árabe
versões e traduções joana santos e andré simões
contracapa
2022




 
 

01 junho 2022

juan manuel bonet / chuva de junho

 
 
Chuva de junho sobre as acácias,
sobre a dor de que não estejas
aqui nesta cama comigo,
sobre o céu mais cor de chumbo
que de neve. Chuva de junho, que
fica tão bem num poema,
mas na vida não.
 
 
 
juan manuel bonet
poesia espanhola de agora volume I
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




31 maio 2022

egito gonçalves / engarrafamento

 
 
O dia está triste,
Perséfona deve ter sido hoje forçada por Vulcano.
O inverno derrama-se na cidade
como se tivéssemos de pagar
os problemas do Inferno. Os automóveis
engarrafam o trânsito
de Santa Catarina – a rua,
não a santa
que dos gemidos de Perséfona não entende –.
Sejamos pacientes. Saboreemos
Este momento em que os motores em ralenti
Aguardam o orgasmo dos deuses.
 
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020




 

30 maio 2022

josé carlos barros / lídia

 
 
 
Melhor do que o amor é estar aqui sentado
de coração leve, e não ter segredo nenhum
para contar,
e não recordar da vida
mais do que a diluída imagem
de alguns pássaros
voando à procura do outro lado do rio.
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020



29 maio 2022

antónio osório / andorinhas

 
 
À vacaria os dois casais voltaram.
Os ninhos junto da lanterna,
arca da sua aliança,
e armadilha, rede de aranhas.
As vacas levantam os olhos
e o calor do corpo, da bosta
comunicam, cifrada mensagem
para outros seres, próximos,
também por elas e pela luz gerados.
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982




 

28 maio 2022

ernesto sampaio / famílias russas

 
 
A neve cobre com um velho xaile
a nova ideia do belo
das famílias russas
 
Electrificadas
perderam-se da aldeia
aos setenta anos
 
De joelhos no ar
volvem os olhos para o céu
discutida panaceia farmacológica
 
Com um apetite imperturbável
avançam iluminadas
para a noite sem limites
 
 
 
ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999




27 maio 2022

dick davis / ibn battuta

 
 
Perto do princípio da sua primeira viagem
O grande viajante (que havia de sofrer
Naufrágio, a perda de todos os bens, dos escravos
– De quem tanto gostava – e do filho; que havia
De enfrentar piratas, salteadores, ser gasalhado
Por príncipes como um igual e ser alvo de escárnio
Como um pedinte; que havia de ver o conhecido
Mundo e suas maravilhas) perto do princípio
Da sua primeira viagem diz-nos ele como,
Companheiro duma caravana de viandantes,
Chegou a uma cidade e como a multidão
De gentes amigas e de parentes saiu dela
A dar-lhes as boas vindas, cada homem saudado
Por um rosto que conhecia, à excepção dele,
Ibn Battuta, a ele ninguém o saudava
Visto que lá ele era um estrangeiro, e como
Chorou.
           Quando se fecha o livro este retrato
De um homem com cerca de vinte anos a chorar
– E não os príncipes, os escravos e os naufrágios –
É o que fica comigo
                            quase que sentes
Através dos séculos a compressão dos
Teus dedos de encontro ao seu braço e escutas
A tua voz erguer-se para saudá-lo.
 
 
 
dick davis
trinta e dois poemas
trad. joaquim manuel magalhães
as escadas não têm degraus – 2
livros cotovia
1990




26 maio 2022

francis picabia / felicidade nova

  

Amarmo-nos uns aos outros
é um sentimento longínquo,
longínquo como a pátria
vencida ou vitoriosa;
Sinto o dever de tornar-me
um tipo contrário –
contrário a tudo.
Os homens estão mal informados
sou o contrário dum exame,
o contrário duma análise,
o contrário duma crença;
trabalho para radicar aquele que há-de vir,
ritmo e rima,
como os livres anarquistas.
Os homens têm sempre a ideia
fixa de antemão,
intercalada conforme o fim,
idêntico fim,
canção popular e seus sons familiares.
A ascensão faz-se pesada de mais
as curvas e os desvios
tal como a propriedade
favorecem as zonas temperadas.
A moral é o contrário da felicidade
desde que eu existo.
 
 
 
francis picabia
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




25 maio 2022

antónio domingues / primeira imperial

 

  

Na Cervejaria
um senhor de óculos sem culpa
cabeleira densa e culpada de ir
até às sobrancelhas ligadas
e principais culpadas
da sua estúpida presença
 
Cara de carnes caídas
a fazerem-no menos novo
do que um queixo entre enérgico e ovo
denuncia
 
Na Cervejaria
dizia
um senhor e sua mulher de azul e mise exactamente
no momento em que leve
ágil
animal
pisa o chão duro e frio do salão
um valente Rodolfo Valentino conhecido
do casal
 
Alarga-se o sorriso de gambas róseas
na boca do senhor
um adeusar de sua mão papuda
em louvor
do amigo Rodolfo
 
Ela de faces em rosácea e alva dentadura
logo revelada
fica enlevada
mas honesta na Cervejaria pensa:
– Meu marido dá-me todo o conforto do lar
dá-me gambas ao jantar
e mais logo dá-me quatro horas de Bem-Hur na plateia
onde a moda nova oferece as minhas pernas
às vistas desarmadas
dá-me futuro
recheio no seguro e o Rodolfo
só me daria aquilo com que sonhei durante
tanto tempo
 
amor, amor, amor apenas
 
 
 
antónio domingues
surrealismo abjeccionismo
antologia selecionada
por mário cesariny de vasconcelos
edições salamandra
1992



 

 

 


24 maio 2022

margaret atwood / traição

 
 
Quando tropeças no teu amante e na tua amiga
nus por dentro ou sobre a tua cama
há coisas que podem ser ditas.
 
Adeus não é uma delas.
Nunca irás fechar essa porta aberta desajeitadamente,
eles ficarão presos naquele quarto para sempre.
 
Mas tinham mesmo de estar assim tão nus?
Tão sem graça?
Atolando-se às voltas como se num charco primaveril?
 
As pernas muito finas, a cintura muito grossa,
gelatina aqui e ali,
os tufos de cabelo…
 
Sim, foi uma traição,
mas não de ti.
Apenas de certa ideia que tinhas
 
deles, alumiada e mística,
com flocos de neve a cair
e um sol-pôr malva em Dezembro –
 
não esta imagem acanhada,
esta carne encurvada
presa no brilho fixo do teu olhar.
 
 
 
margaret atwood
afectuosamente
trad. joão luis barreto guimarães
bertrand editora
2021




23 maio 2022

maria victoria atencia / amanhece

 
 
 
     O tráfego do cais
sob uma luz acorda.
Já os barcos de pesca
regressam de seus cercos
e os rebocadores
atentamente escoltam
um cargueiro avermelhado
de aço e maquinaria.
 
     Às seis e meia em ponto:
minha noite já não conta.
 
 
 
maria victoria atencia
antologia poética
el coleccionista
tradução josé bento
assírio & alvim
2000