23 fevereiro 2022

francisco sardo / o crepúsculo da épica

 
 
 
proscrito há tanto o idioma da tristeza
que deus relevaria a impenitência
de quem remove o pó das ímpias chagas?
 
perdão nenhum pertence ao que perdeu
o dom do júbilo     o timbre dos troféus
nem triunfou do cráter da cicuta
 
e se à noite     aluídas na amargura
as traves da memória extenuada
de que súplica suspensa restaria
a imperfeição voraz desse momento?
 
da (in)diferença só     veríssima     do acen(t)o
contra a usura das sílabas erguendo
puríssima     perplexa     a lava deste espanto
 
 
 
francisco sardo
as rugas do calcário
edição do autor
1983




 

22 fevereiro 2022

herberto helder / nada pode ser mais complexo que um poema

 
 
nada pode ser mais complexo que um poema,
organismo superlativo absoluto vivo,
apenas com palavras,
apenas com palavras despropositadas,
movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes,
nada mais que isso,
música,
e o silêncio por ela fora
 
 
 
herberto helder
servidões
assírio & alvim
2013




21 fevereiro 2022

rui costa / talvez um poema de amor

 
 
Eu vou na estrada aberta agora
como tu antes da vida.
Desconheço a razão da tua boca
e o declive ascensional da morte.
Visito os amigos, não durmo no mar,
há sombras e pão em nossa casa e
a cal da noite entrando pelo sono, a nossa
casa. Sim,
tenho um tanque cheio de memória
ao fundo de abril e não te posso
dar (porque não sei).
Talvez por isso te converta
nestes versos miudinhos que
se enganam na terra donde vens.
Mas nem todo o ar começa
por um «eu» no princípio do poema.
Os campos são silenciosos quando à noite
invadem as janelas
e a maçã branca nos indica o caminho
para nunca mais.
 
Quero este amor
como a algo subitamente possível
e impossível
Uma cidade ardendo sobre o mar
As palavras separando com as mãos
na tua loucura
 
 
rui costa
«se uma estrela me falha, agarro numas nuvens»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017




 

20 fevereiro 2022

agustina bessa-luís / cumplicidade

 
 
     Eu hoje sou profundamente aceite na sociedade portuguesa na medida em que sou profundamente cúmplice dela. cúmplice das pessoas. […] Cúmplice na medida em que as entendo e faço parte delas. Por um fenómeno de mimetismo, pode-se dizer. […] Mais do que pelas ideias ou até do que pelo engenho dos livros. Há uma enorme quantidade de pessoas que me lêem pouquíssimo – ou que não me lêem de todo – e, contudo, fazem parte de mim e eu delas. Sem dúvida nenhuma. Quando eu morrer vou fazer imensa falta, nessa medida. Essa cumplicidade desaparece. E ela é necessária à vida humana. As pessoas sabem que nada de mal acontece a um povo em que essa cumplicidade está viva e é permanente…
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008




19 fevereiro 2022

neil curry / sobre alfarrabistas

 
 
Nunca que me apercebesse, como Leonard
Uma vez referiu, passei ao lado de alfarrabistas,
Especialmente daqueles pequenos em ruas secundárias
Onde uma campainha pendurada na ombreira traz
Alguém de uma divisão nas traseiras. Contudo é
Desanimador e também salutar estar ali
Entre os que não têm casa e os indesejados, os falhados
E os esquecidos, mas é possível que descubramos
Alguns camaradas a quem sorrir ou acenar:
Cowper ou Gilbert White e até talvez
Encontrar, caído por trás de uns volumes grossos
De Bulwer-Lytton, uma aristocrata
Ansiosa para explicar o que se passa
Numa colmeia ou como foi estar
Deitada sob um céu estrelado com os beduínos.
E numa prateleira alta pode haver alguém
Que, por razões e de maneiras que nunca podíamos ter
Imaginado, se torne um dos nossos melhores
Amigos e mais chegados e como foi dito (por quem?):
In thy most need go by thy side.”
 
 
 
neil curry
companhia a mrs woolf
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017




 

18 fevereiro 2022

joan margarit / mulher da primavera

 
 
Depois das palavras só te tenho a ti.
Triste é quem não perdeu nunca
por amor uma casa.
Triste o que morre rodeado de respeito e de prestígio.
Importa-me tudo o que acontece na noite
estrelada de um verso.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




17 fevereiro 2022

león artigas / o luxo dos heróis

 
 
Os dias que vivi bem vividos estão.
De que adianta evocar com tom amargo
a fé desencantada de uma estupida infância,
o logro abandonado de uma infame juventude,
tantos atraiçoados objectivos?
 
Não olharei para trás.
Não olharei para outro futuro.
Implorarei apenas por um clarão
ofuscante de lucidez
para devolver a deus
um cadáver de luxo.
 
 
 
león artigas
(espanha, 1931-1984)
o meu livro de cabeceira é um revólver
dezassete suicidas
trad. jorge melícias
língua morta
2020




 
 
 

16 fevereiro 2022

georges bessière / eterna

 
 
     Tenho sede de linhas imortais: pois quero que o sol assassino me encontre forte e musculado. Preciso de apresentar às próximas auroras cabelos e olhos onde foi destilado o clarão das luas a envelhecer. Ó folhas mortas, ó folhas amarelas, ó vidas dessas folhas voando e pousando, e arrastando-se, encetai a sinfonia das minhas noites feiticeiras, sem receio, sem receio; eu não sou um mensageiro visto que o meu coração mora no vosso seio, encarquilhado, caído de suas artérias, visto que vai da senda ao regato, do regato às clareiras, pobre bloco seco de pergaminho, onde ficou gravada esta dor vespertina uivada pelas vossas raivas às nuvens hipnóticas de outono…
 
 
 
georges bessière
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




15 fevereiro 2022

rui nunes / somos os que a morte reconduz

 
 
somos os que a morte reconduz
à rapidez das lágrimas, ao ritmo brutal
de uma festa que nada antecedeu:
hiato que a mão utilizou para guiar
a dor pelo trilho da suspeita; somos
os que a morte reconhece como a sua memória,
um rasto que procura a presa e a encontra
no homem que se embrenha por caminhos
dissimulado no seu próprio esquecimento
 
 
 
rui nunes
ofício de vésperas
relógio d’ água
2007




 

14 fevereiro 2022

joão miguel fernandes jorge / schumann, uma fantasia

 
 
Amo aquele que pede o impossível
quando sente a casa desmoronar tijolo
a tijolo
com a leveza de uma pena liberta pleno
voo
 
de um azul e oiro, o ritmo –
  esse tijolo de barro vermelho
de um modo apaixonado pede
 
a vida
e a vida, num último instante, dá-lhe jardins,
deuses e a energia de uma
cidade suspensa
a luz de um palácio submerso
 
no último instante,
muito lento,
silvam as chamas do desamparo, caducidade
duração
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004




13 fevereiro 2022

mário de sá-carneiro / a sala do castelo é deserta e espelhada

 
 
A sala do castelo é deserta e espelhada.
 
Tenho medo de Mim. Quem sou? Donde cheguei?...
Aqui, tudo já foi… Em sombra estilizada,
A cor morreu – e até o ar é uma ruína…
Vem d’ Outro tempo a luz que me ilumina –
Um som opaco me dilui em Rei…
 
 
 
mário de sá-carneiro
indícios de oiro
poemas
assírio & alvim
2007




12 fevereiro 2022

antónio botto / nem sequer podia

 
 
Nem sequer podia
Ouvir falar no teu nome.
E se fixava o teu vulto,
Irritava-me, sofria
Por não poder insultar-te…
Até que um dia,
– Foi no Inverno, anoitecia.
Chuviscava; - uma chuvinha
Impertinente e gelada
Como sorriso de ironia
Numa boca desejada.
 
Já não sei o que disseste;
Nem me lembro do que disse…
 
A chuva continuava.
Atravessámos um jardim.
E à luz fosca
Dum candeeiro,
Segredaste ao meu ouvido:
Quero entregar-te o meu corpo.
E eu acrescentei: - Pois sim.
 
A chuva tornou-se densa.
Eu ia todo encharcado.
Por fim, chegámos; entrei…
Um marinheiro descia
Ajeitando a camisola
E compondo os caracóis.
 
Era uma casa vulgar,
Aonde o amor
– Oculto a todos os sóis,
Se vendia a troco da “real mola”.
 
Arrependi-me. Blasfemei…
Mas quando abandonei os teus braços
Senti que tinha mais alma!
 
E nunca mais te encontrei!
 
 
 
antónio botto
màrio soares, os poemas da minha vida
público
2005




 

11 fevereiro 2022

lamiae el amrani / alma desventurada

pedro calapez


 
Amarrei-me a um vento traidor
Que me levou ao ventre do mar
E me tapou a boca
Com bolhas salgadas
Lágrimas que o mar derramava.
 
Gritei ao vento que parasse
Mas ele continuou a enforcar-me
Com as suas mãos de água
Até que me entreguei ao nada.
 
 
 
lamiae el amrani
trad. zetho cunha gonçalves
nervo/13 janeiro/abril 2022
colectivo de poesia
2022