26 agosto 2021

louise glück / um dia quente

 
 
Hoje, o sol brilhava,
por isso a minha vizinha lavou as suas camisas de noite no rio –
regressa a casa com tudo dobrado numa cesta,
radiante, como se tivesse acabado de ganhar
mais dez anos de vida. A limpeza fá-la feliz –
diz-nos que podemos recomeçar tudo outra vez,
não precisamos de ficar presos aos erros do passado.
 
Uma boa vizinha – cada uma de nós deixa a outra
entregue à sua intimidade. Ainda agora
ela se pôs a cantar sozinha, pendurando a roupa lavada e húmida no
    arame.
 
Pouco a pouco, dias como este
irão parecer normais. Mas o Inverno foi duro:
as noites a começarem cedo, o amanhecer escuro,
com uma chuva cinzenta e persistente – meses disso,
e depois a neve, como silêncio caindo do céu,
obliterando árvores e jardins.
 
Hoje, tudo isso já vai longe para nós.
Os pássaros estão de volta, a chilrear em torno das sementes.
A neve derreteu; as árvores de fruto estão carregadas de nova e
    aveludada colheita.
Uns quantos casais até passeiam pelo prado, fazendo as promessas
    que são as deles.
 
Deixamo-nos ficar ao sol e o sol cura-nos.
Não tem pressa de ir embora. Permanece suspenso sobre nós, imóvel,
como um actor satisfeito com o seu acolhimento.
 
A minha vizinha fica em silêncio por instantes,
a olhar fixamente para a montanha, a ouvir os pássaros.
 
Tantas peças de roupa, de onde terão vindo?
E a minha vizinha ainda está lá fora,
a pendurá-las no arame, como se a cesta jamais ficasse vazia –
 
Continua cheia, nada acabou ainda,
embora o Sol comece a deslocar-se mais abaixo do céu:
ainda não é Verão, lembremo-nos, é só o princípio da Primavera;
o calor ainda não veio para ficar, e o frio aproxima-se –
 
Ela sente isso, como se a última peça de roupa branca congelasse nas
    suas mãos.
Ela olha para as mãos – vê como estão velhas. Não é o princípio, é
    o fim.
E os adultos, esses, já morreram todos.
Só ficaram as crianças, sozinhas, a envelhecer.
 
 
 
louise glück
uma vida de aldeia
tradução de frederico pedreira
relógio d´água
2021




25 agosto 2021

luís miguel nava / o azul do mar

 
 
O azul do mar desprende-se da água.
Dos ossos que cravei na realidade, onde pensava
que o mar se sustivesse e da qual sempre
supus também que o mar se alimentasse (de tal forma
por vezes o sentimos
encher-se de realismo), nem um só, mesmo pintado,
subsiste agora
que o tempo tudo apaga à minha volta.
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020








24 agosto 2021

luiza neto jorge / recanto 13

 
 
Minha irmã é que nasceu a falar
de um derramamento colossal
da solidão.
 
As mulheres, é espesso perfume lembrá-lo,
têm ângulos ausentes no que vêem e no que falam e nas ocultas
nebulosas do seu copo
o amante adivinha como um homem traído.
 
Assim assim mesmo: nessa penumbra de metal candente
anseia-se, decai a ansiedade
 
e a mulher (Ila, irmã de Ilo o mundo, a minha irmã),
que é repouso vasto enfurecido
corre a apanhá-los.
ao espelho, à flor,
da cintura irrompendo como de um jardim
para uma espécie de corpo inenarrável.
 
 
 
luiza  neto jorge
dezanove recantos
1970






 

23 agosto 2021

margaret atwood / poemas atrasados

 
 
 
Estes são os poemas atrasados.
A maior parte dos poemas está atrasada
é claro demasiado atrasada,
como a carta enviada por um marinheiro
que chega depois de ele se afogar.
 
Demasiado atrasadas para serem úteis, tais cartas,
e com os poemas atrasados é parecido.
Chegam como se pela água.
 
O que quer que tenha acontecido:
a batalha, o dia ensolarado, o luar
deslizando para a luxúria, o beijo de despedida. O poema
dá à praia como destroços.
 
Ou atrasados, como se atrasados para jantar:
cada palavra fria ou ingerida.
Canalha, apuro, e vencido,
ou demorar, esperar, um pouco,
esquecido, lamentado, abandonado.
Amor e alegria, até: canções trituradas.
Feitiços enferrujados. Refrães gastos.
 
É tarde, é muito tarde;
demasiado tarde para dançar.
Ainda assim, canta o que puderes.
Acende a luz: canta lá,
canta: Vá.
 
 
 
margaret atwood
afectuosamente
trad. joão luis barreto guimarães
bertrand editora
2021




22 agosto 2021

herberto helder / lugar último

 
 
Escrevo sobre um tema alucinante e antigo.
Esquecimento
que me lembrasse agora para sempre
como
uma roseira. Como
que escrevo assim com um grito maravilhoso
dentro da carne podre, terrivel-
mente.
Nas pancadas da boca.
— Sei cantar devagar, de pé, a enlouquecer muito.
Respirando, sangrando tanto.
Sei cantar com estrelas iradas.
Há uma elevada mulher com flores
na boca e no ânus.
Contra mim, contra minha divagação.
Penso: a flecha ama a onça.
A morte ama o que morre.
Pensei ainda pela pancada dentro: a mulher
ama o homem.
E quando apodrecias debaixo de minha luz
espantada, também pensei:
eu amo-a. Porque mexeste nos meus
nomes desde o nascimento.
Contei-te pelas pétalas coloridas,
e agora
o meu amor é puro puro louco louco.
E o que dorme dorme
do que é forte.
 
Uma mulher passou quando eu dormia ou acordava.
Era uma luz molhada.
Estava ao cimo como lágrimas, estava
com folhas à tona da idade.
Passou uma delicadeza, uma mulher
que ficou.
Existiu um campo transviado.
Uma alagada adivinhação. Por cima
abruptamente
uma — pancada na noite dos órgãos.
 
A noite é não ter amor senão
em luzes.
Com uma pedra sobre a boca.
A pedra sente a boca, a solidão sente
o homem. Digo que um homem beija
interiormente a boca.
Mas era uma mulher que morria,
uma mulher que nascia agora altamente.
Um lúcido campo morto.
 
Passou, transferiu-se, reviveu
sobre a minha cabeça. Atra-
ves-
sava-a
uma flecha. Era
uma cabra silvestre uma cabra azul
uma cabra colorida
pela ira e a doçura e pela altura
saltada de uma cabra entrevista nos grandes céus
loucos.
Era caçada pelo caçador do amor.
Era com os cascos e os malmequeres. Com a delicadíssima
boca humana.
Os veios de ouro.
Era como as belas mamas brancas.
Quente como as urtigas.
Era deitada cor de violeta.
Uma mulher retumbante com todo o silêncio.
Dormia contra mim.
Ela vigiava, corria no ar.
Quebrava no ar. Era a mulher tão pura.
 
— Anos e anos de viagem sideral com os pés
iracundamente
azuis. Sou eu,
como um retrato de cabeça para baixo.
Conheci-me cantador em estado
de amante. Tive
o desviado ofício de canteiro.
Fiz uma catedral. Morri
acocorado. Eu era um amante
com ofício de poeta cego. Um dia
transformei-me na mulher que amava.
 
Em tantos anos não ignoro como os elefantes
florescem. Neste lado de agora
vejo como os cravos batem no ar que bate
na roupa que bate nas pedras.
E penso: houve uma quinta, quarta, uma
terça, uma segunda-feira, uma sexta-
-feira.
Bocados exaltados por cima.
Porta extática debaixo dos raios.
Sábado era um dia de ardente vileza.
Um domingo de amor ou de exemplo.
Eu era um amante que era uma semana
de lado:
               ou era a chuva
amada por uma misteriosa velocidade,
ou o sol que a lentidão
apaixona por dentro.
 
Eu era uma mesa com tantos anos
sentados para comer-me em estado
de pêra inclinada.
Eu fui um amante que comeu uma torre
no meio da praça. Um amante
antropófago.
Eu fui parado e unido.
Quantos anos iracundos. Cantadores.
E se a roupa molhada bate
sobre a minha cabeça, e nela se embebe
a luz penetrante — é preciso transformar-me.
Fui amante como um cão. Fui
de di-
vagação em divaga-
ção a lua lua. Eu ladrava de cima.
Eu era a baixa lua lua onde os pântanos
caíam em êxtase. Perdi
todas as mãos, e na derradeira mão
transformei-me na morte.
Batem os levíssimos nomes como pedras
no ar, mais verdes, como
crisântemos abrindo-se e depois
fechando-se. Crisântemos — digo —
virtuais. Com tantos tantos anos delicados
iracundos de todas as cores.
 
— Celebro agora os dias da sombra de onde
sagrada a loucura se lev-
antava. Quando os cantores eram tomados
pela embriaguez
soturna, e falavam
alto com as ondas à volta. E eu lembro
a entrada
desses dias retumbantes, quando alguém
entoava em sonhos as fontes
da ilusão. E a idade avançava por dentro
da aguda alegria, por dentro e a gente
gritava que era alto tão tão alto — o amor.
 
Celebro a tecelagem, as mãos som-
bria-
mente
embebidas no trabalho. E por cima
de tudo as pedras
rosas da cabeça, os cestos, as liras, o pão.
E em baixo o sangue bate acen-
den-
do e apagan-
do. E eu agora sei tudo, e esqueço
muito devagar. Também com força uma mulher
aperta
os pés sobre a minha boca. E eu pareço
pensar no ar. Pareço
dormir entre gotas frias. Ou então
também pareço vir verga-
do e louco debaixo do estuar celeste.
Nas noites onde cerrados os girassóis
esperavam a ressur-
reição. Ou nos dias levantados
sobre as melancolias mais fortes. Quando
a mulher era levada pela interior
fantasia do seu próprio encerramento.
 
Noites oh noites tantas e
tantas noites oh tantas noites seguidas
intactas, despedaçadas, regeneradas como noites
para dentro e para fora,
debaixo da chuva. Enlouquecendo.
E cantando o corpo, as voltas, os terrenos, os fetos
do corpo, e as achas aproximadas e brilhantes
do corpo humano.
 
E talvez seja este o último exemplo
de amor e a i-
memorial noite lancinante, solidão.
E eu me transmude na zona de uma idade
antiga, e Deus
fale de em mim no puro alto da carne.
E uma onda e outra onda e outra e outra
e outra
onda e onda
batem em sua belíssima deserta altíssima
voz.
 
E não sabemos escutar o barulho
Frio, nem vemos os roseirais dominados pelo silêncio,
oh nem
deliramos nos enormes inóspitos campos
de Deus.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
lugar último
assírio & alvim
1996

 





 

21 agosto 2021

ana hatherly / 39 tisanas

 
 
32
 
A amizade é um sentimento de difícil definição. Na prática porém todos concordam que ela se traduz acima de tudo por serviços prestados. Eu tinha um amigo grande melómano que tocava variados instrumentos. Muitas vezes eu ia a casa dele e ficava ouvindo-o tocar piano flauta viola clarinete e até trombone. Um dia eu disse-lhe e de órgão você não gosta e ele disse ah quem me dera. Fiquei calada no dia seguinte dirigi-me a uma loja especializada na venda de instrumentos musicais e comprei um órgão meti-o imediatamente num táxi e fui levá-lo a casa do meu amigo a uma hora em que ele não estava deixei passar uns dias quando telefonei para saber se tinha gostado disseram-me
 
 
 
ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980
 




20 agosto 2021

pier paolo pasolini / who is me, poeta das cinzas





Sou alguém
que nasceu numa cidade cheia de pórticos em 1922.
Tenho, portanto, quarenta e quatro anos, que carrego <muito>
                                                                                    [bem
(apesar de ainda ontem dois ou três soldados numa matazinha
                                                                              [de putas
me terem dado vinte e quatro – pobres rapazes
que tomaram por menino um seu coetâneo);
o meu pai morreu em ’59,
a minha mãe está viva.
Ainda choro de cada vez que penso
no meu irmão Guido,
camarada morto por outros camaradas, comunistas
(era do Partido da Ação, mas a conselho meu:
ele começara a Resistência como comunista),
nos montes malditos de uma clareira
raiana, com pequenas colinas cinza e desalentadas encostas
                                                                     [pré-alpinas.
Quanto à poesia, comecei aos sete anos:
Mas não fui precoce senão na vontade.
Fui um “poeta de sete anos” –
como Rimbaud – mas só na vida.
Agora, num lugar entre o mar e a montanha,
onde rebentam grandes temporais, de Inverno chove muito,
em fevereiro veem-se as montanhas claras como o vidro,
logo a seguir aos ramos despidos, e depois nascem as prímulas
                                                                             [nas valas
inodoras, e no Verão as hortas, pequenas, de milho,
alternadas com aqueles verdejares da alfafa,
desenham-se contra o céu esfumado
como uma paisagem misteriosamente oriental –
agora, naquele lugar,
há uma arca cheia de manuscritos de um entre tantos meninos
                                                                               [poetas.
 
 
[…]
 
 
pier paolo pasolini
who is me
poeta das cinzas
trad. de ana isabel soares
barco bêbado
2021

 





19 agosto 2021

albert camus / peste

 
 
Peste… «E de cada vez que li uma história de peste, do fundo de um coração envenenado pelas suas próprias revoltas e pelas violências dos outros, um grito claro se ergueu dizendo que no entanto havia nos homens mais coisas para admirar do que para desprezar.»
 
…«E a peste cada um a traz consigo, porque ninguém, sim, ninguém no mundo, está imune. E é necessário vigiarmo-nos constantemente para não sermos levados num minuto de distracção a respirar na cara de alguém e a pegar-lhe a infecção. O que é natural é o micróbio. O resto, a saúde, a integridade, a pureza, se preferirem, é um efeito da vontade, e de uma vontade que nunca deve deixar de exercer-se. O homem honesto, o que não infecta ninguém, é aquele que se distrai o menos possível.
 
«Sim, é fatigante ser-se um patife. Mas é ainda mais fatigante não querer ser um patife. É por isso que toda a gente está fatigada, porque toda a gente o é um pouco. Mas é por isso também que alguns conhecem tão fundo cansaço que só a morte os poderá libertar dele.»
 
 
 
albert camus
primeiros cadernos
caderno n.º 5 setembro 1945/abril 1948
trad. não disponível
livros do brasil
1973




18 agosto 2021

jean-claude barbé / falsa partida

 
 
Morria. Julgava morrer debaixo duma estrela
A minha vida enxotava-me às guarda-chuvadas
Vivia na espera de um dia muito raro
Vi o meu sangue correr e perder-se
Nos degraus duma escadaria sonora
Rumo à porta de comunicação com o mar
As vagas sombrias borbulhavam no limiar
Os cães farejavam a trovoada através da bruma
E estava eu já morto há muito quando o relâmpago
Despertava as paredes adormecidas a pedra usada
As casas sem memória e os poços cuja água chora
Contudo o sol ia alto no firmamento
Parecido a uma flor em breve iluminaria a minha morada
Sobreviveria ao pior e o meu coração consertado
Imporia o seu ritmo à eclosão do mundo.
 
 
 
jean-claude barbé
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021





 
 

17 agosto 2021

alejandra pizarnik / árbol de diana

 
               
1
 
Dei o salto de mim para a alba.
Deixei o meu corpo junto à luz
e cantei a tristeza do que nasce
 
 
 
 


alejandra pizarnick
antologia poética
árbol de diana (1962)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020






16 agosto 2021

gemma gorga / livro dos minutos

 
 
6
 
Está tudo pronto à espera que chegues para começar a existir: os pratos em cima da mesa, o brilho nocturno nas chávenas, o calor nas almofadas, a cera derretendo como açúcar pernas abaixo. A iminência é um penhasco por onde agora passeio em bicos dos pés, contendo a respiração, sabendo que de um momento para o outro se ouvirá a campainha e me precipitarei no puro presente de ti, como uma espada deleitada face ao dardo veloz. Mas ainda não. Apesar de andar de um lado para o outro, apesar de compor o cabelo, apesar da lentidão audível do relógio, apesar desta espera que poderíamos dizer quimicamente pura.
 
 
 
gemma gorga
livro dos minutos (2006)
o anjo da chuva
trad. miguel filipe mochila
do lado esquerdo
2021




 

15 agosto 2021

gil t. sousa / e eu, que sempre vi a luz

 
 
 
e eu, que sempre vi a luz
como um elemento de revelação
atento nestas mãos abertas
e anseio por tudo o que nelas
se esconde
 
espero tempestades e
veredictos sobre a antiquíssima
eternidade
persigo a sombra do rumor
que se semeia a si próprio
 
no campo da noite
e nos espera de faca na mão
sempre que o coração tropeça
ou a voz se perde
num corpo tão antigo
 
como o frio, escavando
poços por entre os pés
cortando as linhas de água
do nosso deserto
mais intimo e extenso
 
tinta queimada, esta pele
tambor surdo e cego
rente à estrada abandonada
do passado, rente ao mar
que nos salgou o desejo
 
 
 
gil t. sousa




 
 

14 agosto 2021

emanuel jorge botelho / testamento vital

 
 
 
                  para o Manuel de Freitas
 
 
 
estou cansado de andar a ir morrendo,
à espera que o tempo saia do meu nome.
 
trepar paredes não é risco a que dê gasto de alma,
e não tenho caligrafia
para cancelar o endereço.
 
ponho uma faca entre os dentes?
masco tília?
ou desenho a primeira sílaba de uma asa?
 
não faço nada.
não sou capaz de trair a minha morte.
 
 
                                       Agosto de 2013
 
 
 
 
emanuel jorge botelho
telhados de vidro n.º 19 . maio . 2014
averno
2014