17 março 2021

carlos eurico da costa / a forma e o tempo

 
 
Para a Magda
 
 
 
I
Sobe pela noite como profundo grito
Para ver uma concha de falso fumo
Caminha nas trevas em coloridos braços
Para ver as mais ligeiras asas voltando o mundo
Sobe pela noite como arma inútil
Como insecto astro dilúvio ou fantasma
Para ver a imagem de outro dia.
 
Sim para reconhecer-te
Vem com nuvens nas espáduas
– Um rosto de ondas quentes
Rosto dos habitantes de um país que te arruína
Busto de mulher invisível pelos férteis campos.
Envolta nas colchas rubras da tua raça e rosas grenat
Surge respondendo aos gritos dos cantoneiros
Vem. Traz o branco curso lunar das tuas mãos
Para este quadro vazio onde docemente luto contra mim.
 
 
 
carlos eurico da costa
aventuras da razão
livraria morais editora
1965

 



16 março 2021

charles tomlinson / o momento

 
 
Observando dois surfistas a caminho das ondas,
Flutuando as pranchas ao seu lado enquanto ao longo
Do lento declive da praia, os joelhos, depois a cintura,
Penetram naquele abraço elementar,
Suspendo a escolha na dependência deles, enquanto uma
Onda de milhentas se forma e se aproxima:
E eles estão prontos para ela, ao rodarem
Como aves que se voltam para levitar no vento:
Tudo é certeiro agora ao deslizarem lado a lado:
Pelo que invejo o jeito dos seus corpos
Para aguentar e prolongar a descida veloz
Opto pelo momento em que as suas escolhas coincidem
E, em equilíbrio, como se no ar, hesitam
Numa culminação que com o mar partilham.
 
 
 
 
charles tomlinson
as escadas não têm degraus 3
trad  gualter cunha
livros cotovia
1990





 

15 março 2021

adonis / os dois poetas

 
 
Na cidade branca
Entre as migalhas de pão
Habitam dois poetas
O primeiro é negro – lua quebrada
De que as baleias procuram os restos
 
O outro é branco – tal uma criança
Dorme todas as noites
Com uma serpente negra
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016





 

14 março 2021

joaquim manuel magalhães / a chuva nova canta sobre os dedos

 
 
A chuva nova canta sobre os dedos.
Ele ergue do lume, ela segura
a imaginação alagada no beiral.
O dia fica frio, não importa,
pode-se cantar, oh chuva nova,
molhado na secura desta lança
estalam nos ossos
actos despertos onde o pesar corre.
E se não corre, corre um corpo dentro dele.
 
 
joaquim manuel magalhães
dos enigmas
consequência do lugar
relógio d´água
2001




13 março 2021

fernando alves dos santos / a filha mais nova dum romano

 
 
A filha mais nova dum romano
vai para casa do seu secreto amante.
Com a mão pétrea solta os cabelos
e arruma, sem rigor, as verdades e as mentiras,
as que não lhe faltam e as que não tem:
este foi o único rasto que deixou.
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005





12 março 2021

henrique risques pereira / recordações

 
 
A paz inalterável do amor gratuito que ninguém quer
a saudade sempre penetrante do amigo morto que ninguém quis
os flagelos para os outros e para sempre com os outros
os nossos irmãos inexplicáveis de perfis irreconhecíveis
a caligrafia escrita no tempo
tudo isto
talvez valha qualquer verdade que te disse
e me esqueci.
 
 
 
henrique risques pereira
transparência do tempo
(poesia)
edição de perfecto e. cuadrado
quasi
2003





11 março 2021

antónio manuel azevedo / sem propósito de imprimir

  
 
Já todos o conhecíamos da pequena corte
tinha aquelas mãos de fazer ouro.
 
Chegava de noite e trazia os das cantigas.
Eram amigos que lhe aprendiam as falas
os encenados lugares do corpo, diabos
sedutores, fadas da pequena vida
pois que vida lhe vejo chamar.
 
Ordenava o curto prazer, a esperança
longa, ficava depois de terem ido.
 
Bebia enganos madrugada dentro
onde temor sempre atiça e o receio
melhor cabe, derivava em cerveja
a nau de seus amores. Deixava
em seus cadernos estas desventuras
farsas de segredos para dele caçarmos
para si sempre mudo.
 
 
 
 
antónio manuel azevedo
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990





 

10 março 2021

julio martínez mesanza / cidade de muitas torres

 
 
Durante muitos anos construíram
sólidas torres. Fizeram-nas altas:
torres de ataque e torres defensivas,
e ao combate civil se acostumaram.
Depois a emulação e o ouro escasso
buscaram os mais pobres materiais.
Amiúde caía uma das torres:
também se acostumaram ao escombro.
Por atacar a lei sobre edifícios
desse lugar absurdo me expulsaram.
Ao ver pela primeira vez de longe
aquela proliferação de torres
que nenhuma muralha protegia,
causou-me riso um símbolo evidente.
Desde então eu dedico os meus esforços
a investigar a causa dessas torres,
a redigir libelos infamantes,
a treinar minha hoste mercenária.
 
 
 
julio martínez mesanza
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998






 

09 março 2021

jack gilbert / antes do amanhecer em perugia

 
 
Sentei-me três dias
abismado pelo amor.
Vi durante três noites
as gradações do sombrio.
Da luz. Vi
três manhãs despontarem,
e em todas elas fui apanhado
desprevenido
pelos sinos estrondosos.
O meu coração fendido
como um melão.
E não sarará.
Dá-se
sem sentido
às velhas
que carregam o leite.
Aos homens que varrem, desastrados.
Aos telhados.
Deus me ajude.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020






08 março 2021

pier paolo pasolini / o pranto da escavadora

 
 
I
 
Amar, conhecer
é o que conta, não ter amado,
ou ter conhecido. Angustia
 
viver de um amor passado.
A alma já não cresce.
Neste calor encantado
 
da noite profunda, aqui,
entre os meandros do rio e as visões
adormecidas da cidade constelada de luzes,
 
onde ecoam ainda mil vidas,
o desamor, o mistério, e a miséria
dos sentidos tornam-me hostis
 
as formas do mundo que, até ontem,
eram a minha razão de existir.
Triste, cansado, volto para casa,
 
por negros largos de mercado, tristes
ruas em redor do porto fluvial,
por entre barracas e armazéns que se misturam
 
aos últimos campos. Aqui reina um silêncio
de morte: mas, mais em baixo, na avenida Marconi,
ou na estação de Trastevere, a noite
 
parece ainda amena. Para os seus bairros,
para os seus subúrbios, regressam em motas
ligeiras – de fato-macaco ou calças
 
de trabalho, mas cheios de um ardor festivo –
os jovens, com um companheiro no selim,
rindo, sujos. Os últimos fregueses
 
conversam, de pé, em altos gritos,
aqui e ali, na noite, às mesas
das tascas ainda iluminadas e quase vazias.
 
Magnífica e mísera cidade,
que me ensinaste o que os homens,
alegres e ferozes, aprendem em crianças,
 
as pequenas coisas em que a grandeza calma
da vida se descobre, como, por exemplo,
andar, duro e lesto, entre a multidão
 
das ruas, dirigir-se a outro homem
sem tremer, não ter vergonha
de verificar o dinheiro contado
 
com dedos lentos pelo empregado
que foge, suando, rente às fachadas
numa cor eterna de Verão;
 
defender-me, atacar, ter
o mundo diante dos olhos e não
apenas o coração, compreender
 
que poucos conhecem as paixões
em que vivi:
que, não sendo meus irmãos, são, porém,
 
meus irmãos, porque sentem, justamente,
paixões de homens
que, alegres, inconscientes, inteiros,
 
vivem de experiências
que nunca vivi. Maravilhosa e mísera
cidade que me fizeste viver
 
a experiência dessa vida
ignorada: até me fazeres descobrir
o que, em cada um, era o mundo.
 
Uma lua agonizando no silêncio
que dela vive alveja em violentos
clarões, que, miseramente, na terra
 
onde a vida se cala, nas belas avenidas,
nas velhas ruelas, cegam, mas não iluminam,
enquanto, lá em cima, farrapos de nuvens
 
quentes as reflectem até ao infinito.
É a noite mais bela do Verão.
O Trastevere, no seu cheiro a palha
 
de velhos estábulos, a pensões
vazias, ainda não dorme.
Nas esquinas escuras, nas pacatas paredes
 
ecoam rumores encantados.
Homens e rapazes regressam a casa
– sob festões de luzes que são agora o sol –
 
vão para os seus becos, pejados
de escuridão e lixo, naquele passo brando
que mais fundo se cravava na minha alma
 
quando amava realmente, quando realmente
queria compreender.
E, como então, desaparecem, cantando.
 
 
 
pier paolo pasolini
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005





07 março 2021

natércia freire / ouve

 
 
Ouve: que rios me trazes
Que eu não tenha navegado?
Uns na Morte. Outros na vida,
No meu dormir acordado.
 
Ouve: que rumos me apontas
Que eu não tenha experimentado?
Com anjos e aves tontas
Está-se bem acompanhado.
 
Ouve: que vícios trarias
Que eu não soubera descrer?
Líquida sombra nos dias
A escorrer-me de mulher.
 
Ouve por fim: que mistérios
Mais fascinantes e claros?
Que frágil fio de aranha,
Me trarias que eu não tenha
Dançado, corrido, andado?
 
(Bruxaria dos meus ossos?
Equilíbrio sem passado?)
 
Ouve: não peças à paz
O que a paz te tem negado.
 
 
natércia freire
a segunda imagem
1969

 




06 março 2021

vergílio ferreira / inventar a alegria

 
 
267 – Inventar a alegria. Ou estar atento à sua revelação. Mas é preciso merecê-la e não estarmos tão sujos. Esquecer um pouco talvez o ódio a fome a morte. Guerras de carnificina odienta, imensa fome dos sub-humanos da humanidade. Inventar a alegria por sobre tudo isso ou estar limpo de todas as fezes da alma para que ela apareça. Porque há pássaros ainda a explica-la e há a luz. E há o que simplesmente existe e é miraculoso no seu ser. Que a paz te inunde e te lave e tu ressurjas na pureza de um mundo que vai começar…
 
 
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001




05 março 2021

joan margarit / não deites fora as cartas de amor

 
 
Elas não te abandonarão.
Passará o tempo, apagar-se-á o desejo
– essa flecha de sombra –
e os rostos sensuais, inteligentes, belíssimos
ocultar-se-ão em ti, no fundo de um espelho.
Cairão os anos. Cansar-te-ão os livros.
Decairás ainda mais
e perderás até a poesia.
O ruído frio da cidade nos vidros
acabará por ser a tua única música,
e as cartas de amor que tiveres guardado
serão a tua ultima literatura.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020