02 novembro 2020

jorge luís borges / o instante

 
 
Onde os séculos, onde o sonho estranho
Das espadas que os tártaros sonharam?
Onde as fortes muralhas que arrasaram,
Onde a Árvore de Adão e o cutro Lenho?
Está só o presente. E a memória
Erige o tempo. Sucessão e engano
É a rotina do relógio. O ano
Nunca é menos vão que a vã história.
Entre a alva e a noite há um abismo
De agonias, de luzes, de cuidados;
O rosto que se fita nos cansados
Espelhos nocturnais não é o mesmo.
O hoje fugidio e ténue é eterno;
Não esperes outro Céu, ou outro Inferno.
 
 
 
jorge luís borges
trad. josé bento
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990




01 novembro 2020

adolfo luxúria canibal / 1.º de novembro

 
 
Um traço um berço
Dois destinos que se cruzam na lonjura da distância
Erva fálica pelo caminho
 
Distúrbios subúrbios
Automóveis ferrugentos desenhando o horizonte
Os paralelos asfixiam a alma
 
Solidão saudade
Romagens romaria aos queridos defuntos
Carcaças abandonadas ao passado
 
Lágrimas fábricas
Tempo invernoso sublinhando a ausência
A música ouve-se triste
 
Solidão! Saudade! Romagens! Romarias!
Solidão! Saudade! Queridos! Defuntos!
 
 
 
adolfo luxúria canibal
no rasto dos duendes eléctricos
(poesia 1978-2018)
cancioneiro 1984-1985
porto editora
2019




31 outubro 2020

pedro spigolon / sem título

 
 
recentemente afiei minha língua
na ponta de uma estrela
havia muito medo na saliva
e pensei que disto poderia livrar-me
lambendo essa fria luz.
recentemente fiz minha língua
um astro repleto de espinhos
sei que queria dizer ternura
mas só consegui falar agudo e frio.
refugiei-me do tumulto
na gruta da boca
acabei me confundindo
com as pensas estalactites
isso fez o abrigo
se passar por perigo
e senti a discórdia entre os dentes
me amassando como um teto baixo
queria dormir a paz
de quem se vai sem pedir perdão
o sono das estrelas
que se esqueceram da crueldade
mas meu perdão era cruel
como quem o pede
sem se arrepender.
 
 
pedro spigolon  
euOnça_3
editora medita
2014
 



30 outubro 2020

angeles dalúa / sinais de fumo

 
 
Sempre acreditei no que nunca tive.
Um dia deixei de crer
para olhar os olhos da morte
mas a morte não tinha olhos.
Náufrago como eu sobre um enigma
nasceste do amor
entre a tortura e uma estrela.
De ilha a ilha o nosso fogo
troca sinais de fumo e abismos
com a frágil ternura
do sol sobre a neve.
A sós com a areia
a nossa sede infinita
sem esperança espera
as mensagens de amor
que nos trazem nas asas
as pombas suicidas.
 
 
 
angeles dalúa
trad. amadeu baptista
hífen 9 setembro
cadernos semestrais de poesia
poesia hispânica
1995





 

29 outubro 2020

dino campana / poesia fácil

 
 
Paz não busco, guerra não suporto
Tranquilo e só vou pelo mundo em sonho
Cheio de cantos sufocados. Apeteço
A névoa e o silêncio num grande porto.
 
Num grande porto cheio de velas leves
Prestes a zarpar para o horizonte azul
Doces ondulando, enquanto o sussurro
Do vento passa com acordes breves.
 
E aqueles acordes o vento os leva
Distantes sobre o mar desconhecido.
Sonho. A vida é triste e eu estou só.
 
Oh quando oh quando numa manhã ardente
A minha alma despertará no sol
No sol eterno, livre e fremente.
 
 
 
 
dino campana
trad. albano martins
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990





 

28 outubro 2020

sylvia plath / berck-plage

 
 
II
 
Esta bota preta não tem misericórdia por ninguém.
E porque deveria ter, se é a carreta de um pé morto?
 
O pé alto, morto e sem dedos deste padre
Que bombeia o poço que o seu livro é,
 
A página dobrada à sua frente como cenário.
Biquínis obscenos escondem-se nas dunas,
 
Peitos e ancas de confeitaria, açúcar de
Pequenos cristais, cintilando à luz,
 
Enquanto uma poça verde abre o olho,
Doente com o que tem engolido –
 
Membros, imagens, gritos. Atrás dos abrigos de cimento
Dois amantes despegam-se um do outro.
 
Ó branca loiça do mar,
Quantas chávenas de suspiros, quanto sal na garganta…
 
E o espectador, a tremer,
Esticado como um pano grande
 
Através de uma calma virulência,
E uma alga, peluda como as partes.
 
 
 
sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




27 outubro 2020

tomas tranströmer / segredos pelo caminho

 
 
A luz do dia bateu no rosto de alguém que dormia.
E esse alguém teve um sonho com mais vivacidade,
ainda que sem acordar.
 
As trevas bateram na cara de alguém que ia a andar
entre a multidão, sob os raios
impacientes e fortes do sol.
 
De repente escureceu, como quando cai uma bátega.
Eu encontrava-me num quarto com espaço para todos os instantes –
a sala de um museu de borboletas.
 
Ali, porém, o sol brilhava tão intensamente como antes.
Os eus pincéis impacientes davam cor ao mundo.
 
 
 
 
tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012




26 outubro 2020

paul éluard / o espelho de um momento

 
 
Dissipa o dia,
Mostra aos homens as leves imagens da aparência,
Retira aos homens a possibilidade de se distraírem
É duro como a pedra,
A pedra informe,
A pedra do movimento e da vista,
E o seu brilho é tal que todas as armaduras, todas
                                  [as máscaras, se tornam falsas.
O que a mão tomou desdenha tomar a forma da mão.
O que foi compreendido já não existe.
A ave confundiu-se com o vento,
O céu com a sua verdade,
O homem com a sua realidade.
 
 
paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977




25 outubro 2020

nicolau saião / poemas desenhados

 
3. CARBAJAL
 
A gente podia
combinar isto de antemão. Eu dizia:
coloca neste ponto uma pedra. E tu punhas
o sinal azul de um enorme jardim.
Depois eu dizia: aqui faz falta
o som de um apito. E tu desenhavas
três crianças desesperadas. A seguir
eu adormecia. E quando acordava
tudo estava terrivelmente silencioso.
 
Na porta, que se tornara transparente
estava pregado um papel amarfanhado.
Nele, estranhos riscos como feitos por garras.
 
Então aparecia de repente um anjo maneta
– que desatava a rir e de súbito se esfumava.
 
E sem sabermos como, era de novo manhã.
 
 
 
nicolau saião
apeadeiro
revista de atitudes literárias
n.º 2 primavera de 2002
quasi
2002

 



24 outubro 2020

roland barthes / o pobre e o proletário



 
 
O último gag de Charlot foi o de ter transferido metade do seu prémio soviético para a caixa do Padre Pierre. No fundo, isso equivale a estabelecer uma igualdade de natureza entre o proletário e o pobre. Charlot viu sempre o proletário sob a fisionomia do pobre: daí a força humana das suas representações, mas também a sua ambiguidade política. O que é bem visível nesse filme admirável que é Tempos Modernos. Charlot aflora aí sem cessar o tema proletário, mas nunca o assume politicamente; o que ele nos dá a ver é o proletário ainda de olhos fechados e mistificado, definido pela narureza imediata das suas necessidades, e a sua alienação total nas mãos dos seus senhores (patrões e polícias). Para Charlot, o proletário é ainda um homem que tem fome: as representações da fome são sempre épicas em Charlot: grossura excessiva das sanduíches, rios de leite, fruta que deita fora depois de uma mordidela: por uma atitude irrisória, a máquina de comer (de essência patronal) não fornece mais do que alimentos parcelares e notoriamente insípidos. Absorvido na sua fome, o homem-Charlot situa-se sempre imediatamente abaixo da tomada de consciência política: a greve é para ele uma catástrofe, porque ameaça um homem realmente cego pela fome; este homem não se integra na condição operária senão naquele momento em que o proletário e o pobre coincidem debaixo do olhar (e das pancadas) da polícia. Historicamente Charlot coincide mais ou menos com o operário da Restauração, o trabalhador revoltado contra a máquina, desamparado pela greve, fascinado pelo problema do pão (no sentido próprio do termo), mas ainda incapaz de aceder ao conhecimento das causas políticas e à exigência de uma estratégia colectiva.
 
Mas é precisamente porque Charlot personifica uma espécie de proletário em bruto, ainda exterior à Revolução, que a sua força representativa é imensa. Nenhuma obra socialista conseguiu, até agora, exprimir a condição humilhada do trabalhador com tanta violência e generosidade. Só Brecht, talvez, tenha entrevisto a necessidade, para a arte socialista, de surpreender sempre o homem em vésperas da Revolução, isto é, o homem só, ainda de olhos fechados, prestes a abrir-se à luz revolucionária pelo excesso «natural» dos seus sofrimentos. Ao mostrar o operário já empenhado num combate consciente, subsumido pela Causa e pelo Partido, as outras obras dão conta de uma realidade política necessária, mas sem força estética.
 
Ora Charlot, em conformidade com a ideia de Brecht, evidencia a sua cegueira perante o público, de tal modo que este vê, simultaneamente, o cego e o seu espectáculo; ver alguém não ver é a melhor forma de ver intensamente o que ele não vê: assim, são as crianças que denunciam ao Guignol aquilo que ele finge não ver. Por exemplo, Charlot, na sua cela, bem tratado pelos guardas, leva a vida ideal do pequeno-burguês americano: de pernas cruzadas, lê o seu jornal debaixo de um retrato de Lincoln, a suficiência adorável dessa postura desacredita-a completamente, fazendo com que não seja mais possível refugiar-se nela sem se dar conta da nova alienação que contém. As mais leves tentações tornam-se desse modo vãs, e o pobre é assim delas afastado. Em suma, é por isso mesmo que o homem-Charlot triunfa sempre de tudo: porque escapa a tudo, rejeita todas as ordens comanditadas, e nunca investe no homem senão o próprio homem. A sua anarquia, politicamente discutível, representa em arte a forma talvez mais eficaz da revolução.
 
 
 
 
roland barthes
mitologias
trad. josé augusto seabra
edições 70
1988






23 outubro 2020

billy collins / filho único

 
 
Eu nunca desejei um irmão, menino ou menina.
Centro do universo,
sempre tive a parte de trás do carro dos meus pais
só para mim. Podia olhar por uma janela,
deslizar depois para a outra janela
sem qualquer discussão sobre direitos territoriais,
e sempre que jogasse um jogo
no chão do meu quarto, era sempre a minha vez.
 
Só quando os meus pais fizeram 90 anos
é que eu ansiei por uma irmã, uma enfermeira a quem chamei Mary,
que trabalharia num hospital
a cinco minutos da casa deles
e que largaria tudo,
inclusive o termómetro, sempre que eu ligasse.
‘Estou lá num instante’ e ‘A caminho!’
seriam duas das suas, e das minhas, expressões preferidas.
 
E agora que os meus pais estão mortos
gostaria de poder encontrar a Mary para tomar café
de vez em quando naquele sítio italiano
com o toldo azul onde nos sentaríamos
a pensar na vida, mesmo em dias chuvosos.
Eu olharia para os seus olhos verdes
e veria os meus pais, a minha mãe espiando
pelo olho direito de Mary e o meu mirando pelo olho esquerdo,
o que me lembraria o patinho feio que
eu era em criança, um principezinho e um solitário
que ao sábado se afastava do seu grupo de amigos
para encontrar uma sebe onde se esconder.
E eu também falaria disto tudo a Mary
e nunca a envergonharia perguntando sobre
a sua inexistência, e talvez
tomássemos outro café, comêssemos um bolo
e eu sempre pagaria a conta e levá-la-ia a casa.
 
 
  
 
billy collins
trad. ricardo marques e ricardo vasconcelos
lisbon revisited
dias de poesia
casa fernando pessoa
2019






22 outubro 2020

iosif brodskii / centauros I

 
 
Metade beleza deslumbrante, metade sofá – em demótico, Sófa –
depois duma tarde a encher a rua cujas janelas parecem caras
com o estrépito dos seus seis saltos altos (no fundo, uma catás
trofe é coisa cujas consequências não é difícil alterar),
corre para um encontro. O amor compõe-se de tule,
cabelo, sangue, colchão de molas, cabeleireiro, felicidade, partos.
Dois terços homem, um terço carro de corrida – Múlia –
saúda-a com indolência e alguns rosnados apartes,
e condu-la a um teatro. Qualquer coxa, desde a idade das fraldas,
mostra uma tendência do músculo para móveis, mognos
trabalhados, armários de espelhos que,
por sua vez, pedem poses a três-quartos, de frente,
e uma bofetada. Condu-la a um teatro, em cujas trevas
– trepando um sobre o outro, amassando os bancos –
gozam o panorama dum drama sobre a vida das bonecas,
 
que é o que, francamente, éramos, no nosso tempo.
 
 
 
 
iosif brodskii
paisagem com inundação
trad. de carlos leite
livros cotovia
2001

 



21 outubro 2020

wislawa szymborska / platão ou o porquê

 
 
Por obscuros motivos,
em circunstâncias desconhecidas,
o Ser Ideal deixou de ser suficiente a si próprio.
 
Mas poderia durar e durar sem fim,
talhado das trevas, forjado da claridade
nos seus jardins sonolentos sobre o mundo.
 
Por que diabo começou a procurar aventuras
na má companhia da matéria?
 
De que lhe serviram imitadores
falidos, malfadados,
sem perspectivas de eternidade?
 
A Sabedoria coxa
com um espinho cravado no calcanhar?
A Harmonia dilacerada pelas
águas revoltas?
A Beleza
com os seus nada atraentes intestinos?
E o Bem –
para quê a sua sombra
se antes não a tinha?
 
Deve ter havido algum motivo
por mais fútil que pareça,
mas isso não será revelado nem pela Verdade Nua,
ocupada em remexer
no vestuário terreno.
 
E ainda, meu Platão, todos estes poetas horríveis,
aparas varridas pelo vento de debaixo das estátuas,
resíduos do grande Silêncio nas alturas…
 
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006