10 agosto 2020

joaquim manuel magalhães / a águia sublevou ganimedes

ilda david



A águia sublevou Ganimedes. Um corpo
pode ser um tiro uma casa incendiada
na submissa ferocidade do amor.
Nunca soube donde vinha. Vinha. Tocava
á porta, tomávamos um café. Saía.
O que tentamos para amarem o que somos.
Na selva de interditos o longe de dentro
tem a medo sossegos sem nenhum lugar.


joaquim manuel magalhães
ilda david
alguns antecedentes mitológicos
assírio & alvim
1984






09 agosto 2020

joão miguel fernandes jorge / este repouso



Este repouso
quando a luz separa
as mais secretas folhas

e os olhos,
por instante, são o rosto
e a noite

o vento que me prende e
não conheço.



joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019








08 agosto 2020

jorge velhote / fria é a água na escuridão



.1.

Há uma luz branca que chega
como antes chegou uma luz
negra ou o frio vertiginoso
do esquecimento.
Olhavas as tuas mãos
enquanto nas veias escorriam
líquidos furiosos abrasando.
Por vezes a melancolia inclinava-te
a cabeça para lugares enxutos
e velozes. Ou escuros.
Vias os melros entre ramagens ocultos
como sombras e tangias o vento
para selar o inverno.



jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018






07 agosto 2020

eduardo pitta / os meus amigos andam perdidos



Os meus amigos andam perdidos
um pouco por toda a parte.
De Lausanne ao Rio é o vasto mundo
dos desencontros, os mesmos que
de Naxos a Londres e de Manhattan ao Cabo
animam exílios vários.

Andam em diáspora os meus amigos.
Une-os, porventura, a mesma nostalgia.

Feridas antigas hipotecadas
ao futuro.


eduardo pitta
a linguagem da desordem
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011







06 agosto 2020

diogo vaz pinto / alguma coisa deve arder em nome desses



Alguma coisa deve arder em nome desses
a quem faltam os céus,
se despenham e na rede nada lhes deixam,
nem um astro duro, ou sequer uma bota
mas um brilho louco talvez te fixe os olhos no tecto
no tanto que ouvirias
se em cima se despisse outra mulher,
no ritmo de uma história andando de boca em boca
a roupa caindo
e o próprio golpe se abre e floresce
seco e doce de tão vasta madurez
a música se descesse às regiões inferiores
cada peça abalando a vida no quarto
enreda-me então e cerco-lhe a sombra
como se pingasse, chovendo no balde
nesse pobre piano da espera

queima-me a boca um gomo só
e da fome de o ter escrito o sumo escorre
entre o sono,
a sede mistura as memórias
demora-se a gota na pétala mais escura
cresce e bebo o gosto cansado deste mundo
rasgo a garganta dessa toada antiga
uma vida grega que ouvi cantada
como a trazia um pássaro
a quem estendia grainhas num prato
e um resto de água e tinta
e este reflexo como receita de veneno
pedi-lhe ajuda, um rumo entre os papéis,
e a noite e o seu soluço nalgum jardim quebrado
o fio que o ligasse ou a poeira de algo mais,
um contorno mesmo se escapasse
num tão veloz e desatado juízo
deixando marcas de batom ou sangue

nem acho que me faça hoje tanta falta
podia acabar-me devagar espaçando duas notas
com a navalha de abrir ostras nos dentes
devorando o grito dos demais
comendo com eles no chão
o que o céu deixa quando avança
mas se nem chega para todos
e logo esfria o cadáver da época
se o tumulto se acaba mais cedo agora,
em vez da morte, eu nascia
se então me tocasse enfim um lugar
mais lavado na graça sem sentido das coisas
e assim por muito tempo a música subisse
para não se lhe ouvirem os gritos



diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020







05 agosto 2020

rui caeiro / também os gritos são feitos



Também os gritos são feitos
de palavras, isto é

de uma grande ausência
de palavras, isto é

de silêncio carregado
de veneno



rui caeiro
baba de caracol
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019

04 agosto 2020

tomas tranströmer / o barco – a aldeia



Uma traineira portuguesa, azul, enrola um bocado do Atlântico.
Bem ao longe, um ponto azul, mas eu estou lá – onde seis homens
     a bordo não veem que nós somos sete.

Assisti à construção de um barco destes, parecia um alaúde enor-
     me sem cordas
na ravina de pobreza: a aldeia onde lavam e lavam sem parar, com
     fúria, paciência, melancolia.

A praia apinhada de gente. Era um comício que fora dispersado, os
     altifalantes confiscados.
Soldados levaram o Mercedes do orador por entre a multidão, apu-
     pos rufavam contra as chapas do veículo.




tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012





03 agosto 2020

marguerite duras / noutro dia




     Ele não voltou a aparecer no quarto.
     Nunca.
     Era inútil aguardar o seu canto, às vezes ridente,
ás vezes triste, às vezes fúnebre.
     Tornou-se de novo muito depressa o pássaro que
eu tinha conhecido nos campos.



marguerite duras
é tudo (c´est tout)
trad. joão costa
livros do brasil
1999










02 agosto 2020

saint-john perse / elogios



VII

     Um pouco de céu azulou na vertente das nossas unhas. O dia será quente onde coalha o fogo. Eis a coisa como será:
     um engelhamento nos golfos escarlates, o abismo patanhado pelos búfalos da alegria ( ó alegria só explicável pela luz! ) E o doente, no mar, dirá
     que parem o barco para que possa ser auscultado.
     E grande ócio então para todos os da popa, as arremetidas do silêncio refluindo para as nossas frontes… Um pássaro que seguia, o seu voo o arrasta por cima das cabeças, evita o mastro, passa, mostrando-nos as suas patas róseas de pombo, bravo como Cambise e doce como Assuerus… E o mais moço dos viajantes, assentando-se a três quartos na armadura: «muito vos quero falar das fontes sob o mar…» (e pedem-lhe que conte)
     – Entretanto o barco projecta uma sombra verde-azulada; plácida, clarividente, invadida por glucoses onde pastam
     em cardumes flexíveis que sinuosam
     estes peixes que deslizam como o tema ao longo do canto.

     … E eu, pleno de saúde, vejo isto, vou
     junto do doente e conto-lhe isto:
     e eis que ele me odeia.



saint-john perse
antologia poética
trad. carlos cunha e alfredo margarido
guimarães editores
1961






01 agosto 2020

josé saramago / o beijo



Hoje, não sei porquê, o vento teve um grande gesto
     de renúncia, e as árvores aceitaram a imobilidade.
No entanto (e é bem que assim seja) uma viola
     organiza obstinadamente o espaço da solidão.
Ficamos sabendo que as flores se alimentam na fértil
     humidade.
É essa a verdade da saliva.



josé saramago
provavelmente alegria
caminho
1987












31 julho 2020

paul auster / credo



As infinitas


pequenas coisas. Por uma vez respirar tão-só
na luz das infinitas


pequenas coisas
que nos rodeiam. Ou nada
pode escapar


ao encanto dessa escuridão, o olhar
descobrirá que somos apenas
o que nos fez
menos do que somos. Nada dizem. Dizer:
as nossas vidas mesmas


dependem disso.



paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002







30 julho 2020

rené char / férias ao vento



Nos flancos da encosta da aldeia, bivacam campos cobertos de mimosas. Na época das colheitas pode ser que, a uma certa distância, nos suceda um encontro extremamente odorífero com uma rapariga cujos braços durante o dia se afadigaram entre os frágeis ramos. Semelhante a uma lâmpada cuja auréola de claridade fosse de perfume, desaparece, de costas voltadas para o sol poente.

Seria sacrilégio dirigir-lhe a palavra.

Calcando a erva com as alparcatas, deixai que vos passe à frente. Quem sabe se não tereis a sorte de distinguir nos seus lábios a quimera da Noite?

         

rené char
furor e mistério
sós permanecem (1938-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000









29 julho 2020

manuel de freitas / prólogo



O tempo, esse pequeno escultor,
prolongou-te os gestos
até à exaustão, ao limite do escárnio,
ao inoportuno reclame daquele
que vai morrer e não morre
e fala demasiado sobre o silêncio do seu grito.

Paciência. Não poderia ter sido de outra
maneira. Há uma infância parada,
onde o cadáver de deus
nada quer dizer. Sim, tem chovido muito.
Mas que saberá destas mesmas horas
o gato negro que a tua mão já não encontra?

Deténs-te, usas palavras vãs. Despedes-te.
Sabes que foi sempre assim.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002