18 março 2020

emily dickinson / está morta a palavra



Está morta a palavra,
Dizem alguns,
Mal é proferida.

Eu digo que só
Então nesse dia
Ela começa a vida.




emily dickinson
duzentos poemas
trad. ana luísa amaral
relógio d´água
2014








17 março 2020

eugéne guillevic / carnac (fragmentos)



5

SEJAMOS justos: sem ti
De que nos servia o espaço
E as rochas de que serviam?



guillevic
poesias de guillevic
tradução de david mourão-ferreira
editora ulisseia
1965










16 março 2020

ezra pound / soirée


Ao ser informado de que a mãe escrevia versos,
E de que o pai escrevia versos,
E de que o filho mais novo trabalhava numa editora,
E que o amigo da filha segunda estava escrevendo um
                                                                     [romance
O jovem peregrino americano
Exclamou:
                «Éta penca de gente sabida!»



ezra pound
antologia poética
personae
tradução m. faustino
editora ulisseia
1960








15 março 2020

luís vaz de camões / com que voz



Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura prisão me sepultou,
que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado?

Mas chorar não se estima neste estado,
onde suspirar nunca aproveitou;
triste quero viver, pois se mudou
em tristeza a alegria do passado.

Assi a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima o pé que o sofre e sente!

De tanto mal a causa é amor puro,
devido a quem de mi tenho ausente
por quem a vida, e bens dela, aventuro.


luís vaz de camões
sonetos






14 março 2020

manuel resende / diário de hannah arendt



A filósofa Hannah Arendt
Está a descascar cebolas na cozinha.
Pergunta: “Sabes dizer-me
O horário dos correios?”

E a amiga:
“Tu estás apaixonada…”


manuel resende
poesia reunida
edições cotovia
2018









13 março 2020

fiama hasse pais brandão / toda a literatura está não lida



Toda a literatura está não lida.
Toda a literatura foi traída.
E, além de sua natureza sempre nula,
no futuro mais será perdida.

Também o papel, que hoje
em belíssimas folhas se folheia,
entre os dedos humanos,
será roído um dia.

Outra matéria nova e, por momentos,
não vã há-de captar as vozes
dos poetas bardos, de ouvidos
mais atentos aos sons sonoros.

Assim os meus versos são o meu pó
na poeira dos livros já delidos.



fiama hasse pais brandão
hífen 8 janeiro 1994
cadernos semestrais de poesia
artes poéticas
1994





12 março 2020

daniel francoy / a lucidez de sancho pança



Ainda hoje, ao encontrar um inimigo
de outrora, abominável assassino,
cumprimentei-o alegremente:
olá, moinho de vento! Reconheço
agora a tua verdadeira natureza
e não te enfrento porque já não carrego
as armas e as loucuras de um velho.
Funciona sempre, amigo, sê
o que verdadeiramente és: moinho
do amanhã, o que transforma a água
em fogo, o que torna leves e aprazíveis
estes nossos ares pestilentos.



daniel francoy
identidade
editora urutau
2016






11 março 2020

rui caeiro / alheios à catástrofe geral



Alheios à catástrofe geral
e ao frio que faz
despimo-nos
colocamos na banca de cabeceira
o relógio a pulseira os brincos
e o mal de viver

Enquanto lá fora pela cidade
os outros (à   sua   maneira   também
alheios)
almoçam riem conversam
nós percorremos devagar as áleas
de um jardim


rui caeiro
o quarto azul e outros poemas
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019






10 março 2020

ana hatherly / 463 tisanas



97

Era uma vez um país onde a morte produzia um som igual ao do vidro que se parte. O céu parecia de papel de embrulho mas os animais eram todos de vidro, especialmente os insectos. Havia mesmo uma grande árvore totalmente habitada por uma espécie de libélulas de vidro azul-escuro. Quando algum animal morria o chão ficava todo cheio de vidros partidos, o que na época dos grandes desastres tornava os caminhos realmente intransitáveis. Os caçadores percorriam os montes munidos de orelhas de prata.


ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006







09 março 2020

mário cláudio / svyatoslav richter



Da infância viera a corrida do alce,
          o ouvido atento ao pólen
          dos lírios.

Por entre os dedos a areia te corria,
          à transparente garganta da
          ampulheta.

Diante da morte ficaste, limpo de
          lodo e de nuvens.



mário cláudio
programa de apresentação da hífen 10
pequeno auditório rivoli teatro municipal
25 de outubro de 1997






08 março 2020

josé de almada negreiros / as quatro manhãs



QUARTA MANHÃ

Um ângulo de terra diante de mim
com o vértice no meu olhar.
Ora junta em montes
ora rasa nos vales
assim segue a terra até ao mar,
e antes ainda de lá chegar
a própria terra já parece o mar.
A luz do dia mostra a natureza
e os meus olhos vêem.
A minha imaginação dá respiração à natureza
e de cor completa-a com o resto do redondo
o que além do ângulo à terra faltava.
Não só a paisagem os meus olhos viam
mas a terra inteira no seu verdadeiro tamanho,
não como a possam ver os olhos
mas como a imaginação
tem modos de medição.
E mais do que a sua própria grandeza
eu via também,
via com os olhos e a imaginação
todas as idades da terra
em toda a sua duração.
Tudo começava lá, ao princípio,
num ponto:
um simples ponto sem dimensão,
e do qual partiam depois todas as linhas
todos os ângulos, cones  e sectores
de uma esfera infinita
da qual a terra era uma pequena reprodução
e eu uma pequena reprodução da terra.
Desde o ponto inicial até mim
a linha era única
e não pertence hoje
senão a mim.
No ponto inicial nasceram todos os destinos, até os destinos sem dono.
Jamais perdi o tempo com o mistério dos outros
ainda mesmo que as nossas vidas se cruzem.
Não são as nossas vidas actuais que se comunicam
já sei
mas sim os nossos mistérios que dialogam.
E eu acabo de chegar apenas ao limiar do meu mistério.
Eu tive d'inventar-me um génio discretíssimo
para escapar através dos séculos à mecânica das actualidades.
Para chegar até aos meus próprios pensamentos,
aos meus pensamentos só meus,
eu tive muitas vezes de dar voltas ignóbeis!
Mas até que cheguei aqui
a isto que eu buscava,
e que é o principiar em mim.
Desde o ponto inicial
já tudo começou para mim
e passados séculos e séculos
eu hoje vou exactamente em mim.


                                             Escrito de 1915 a 1935
                                             Publicado em Suduoeste - 1935




josé de almada negreiros
poesia
estampa
1971






07 março 2020

reinaldo ferreira / o ponto



4
Mínimo sou,
Mas quando ao Nada empresto
A minha elementar realidade,
O Nada é só o resto.


reinaldo ferreira
poemas infernais (Livro II)
poemas
vega
1998









06 março 2020

carlos de oliveira / descida aos infernos



4
Desço
para o centro da terra,
atravessando o sono inicial
dos fetos líquidos dos lagos.

E passando, levemente acordo
os profundíssimos olhos verdes, vagos,
das águas esperando
o calor filial dos peixes.

No dorso deste espírito dorido
que flutua pelas eternas penumbras,
cavalgo devassando as fontes da vida
donde goteja um leite amargo e turvo.



carlos de oliveira
descida aos infernos
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001