05 março 2020

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci


No aniversário de Pasolini, o magistral “As cinzas de Gramsci” da edição da Inova na colecção “O oiro do dia” em Maio de 1966, na tradução soberba de Egito Gonçalves.







As cinzas de Gramsci (mandado cremar pela cunhada, Tatian Schucht) estão recolhidas numa caixa metálica no Cemitério dos Ingleses, em Roma, perto da campa de Shelley. Assinala-as uma simples inscrição: Cinera Gramsci, seguida das datas.



I
Não pertence a Maio este ar impuro
que ainda mais escurece ou encandeia
com súbitas abertas o estrangeiro

e sombrio jardim… este céu
de espuma nos terraços amarelados
que velam, em longo anfiteatro,

as curvas do Tibre, o azul-turquesa
dos montes do Lácio… lança uma paz
mortal, sem amor, como o nosso destino,

entre as velhas muralhas, o outonal
Maio. Tem sem si o cinzento do mundo,
o final do decénio em que nos aparece

entre os escombros, terminado o fundo
e ingénuo esforço de refazer a vida;
o silêncio enxarcado e infecundo..

Tu, jovem, naquele Maio em que o erro
era ainda vida, naquele Maio italiano
que pelo menos à vida acrescentava ardor

bem menos descuidado e de saúde impura
que a dos nossos pais – não pai, irmão
humilde – já com a tua magra mão

delineavas o ideal que ilumina
(mas não para nós: tu morto, e nós
Igualmente mortos, contigo, no húmido

Jardim) este silêncio. Somente podes
– não vês? – repousar neste lugar
estranho, ainda confinado. Cerca-te

um tédio patrício. E abafado
chega apenas a ti o ruído da bigorna
das oficinas de Testaccio, adormecido

na tarde: entre armazéns pobres, montes
de lata e ferro-velho, onde, vicioso,
cantando, um rapazola já encerra
o seu dia e achuva em torno cessa.


II
Entre os dois mundos a trégua nos rejeita.
Selecção, devotamento, agora já não têm
outro som que este, do jardim mesquinho

e nobre em que a astúcia tenaz
que asfixiava a vida se mantém na morte.
Os medalhões dos sarcófagos limitam-se

a revelar a morte sobreviva
de profana gente nas laicas inscrições
destas pedras soturnas, curtas

e imponentes. Ainda de paixões
insaciáveis, sem escândalo,
os ossos dos milionários de nações

maiores; volteia, raro desaparece
a ironia dos príncipes, dos pederastas,
cujos corpos dormem ao acaso das urnas

reduzidos a cinzas e tão pouco castos.
Aqui o silêncio da morte testemunha
a quietude urbana de homens que ficaram

homens, de um tédio que no tédio
do Parque, discreto, se altera. E a cidade
que indiferente o confina, no meio

de tugúrios e igrejas, ímpias na piedade,
ali perde o seu esplendor. A terra,
rica de urtigas e legumes, faz crescer

estes magros ciprestes, esta humidade
negra que macula em torno os muros
com pálidas garatujas de buxo que a noite

suavizando apaga em tristes
odores de alga… essa erva difícil,
inodora, onde a atmosfera violeta

se aprofunda, com um arrepio de hortelã
ou feno borolento, e quieta preludia
com melancolia diurna a apagada

trepidação da noite. Áspero
de clima, de história dulcíssima, é
entre os muros o solo que segrega

um outro solo; esta humidade que
evoca outra humidade; e ressoam
– familiares de latitudes e

horizontes onde florestas inglesas coroam
no céu perdidos lagos, entre pradarias
como verdes bilhares fosforescentes ou como

esmeraldas: «And O ye Fountains,,,» - invocações
piedosas…


III
Um tecido vermelho, como aquele
que os guerrilheiros punham ao pescoço
e, perto da urna, no solo de cinza,

diversamente rubros, dois gerânios.
Estás ali, banido, de elegância severa
e não católica, registado entre mortos

estranhos: cinzas de Gramsci… Entre esperança
e antiga suspeita, aproximo-me, vindo
por mero acaso a este escasso lugar, frente

à tua campa, ao teu espírito que ficou
aqui em baixo, entre os livres (ou é algo
de diverso, talvez, de mais extasiado

e também mais humilde, ébria simbiose
de adolescência, se sexo e de morte…)
E neste espaço onde a tua tensão

não teve tréguas, sinto o teu erro
– aqui na calma dos túmulos – e também
a tua razão – no inquieto destino,

o nosso – de traçares as páginas maiores
durante os dias do teu assassinato…
Eis aqui, a confirmá-lo, semente

ainda não dispersa do antigo poder,
estes mortos, ligados a uma posse
que mergulha nos séculos sua grandeza

e abominação: e ao mesmo tempo, obsessivo,
o vibrar das bigornas, em surdina,
abafado e pungente – vindo do humilde

bairro – para testemunhar o fim.
Aqui estou eu próprio… pobre, vestido
com roupas que os pobres olham nas vitrinas

de grosseiro esplendor, já poídas
pelo lixo das estradas menos vistas,
por bancos de transportes que tornam estranhos

os meus dias: é cada vez mais raro
um repouso como este no tormentos
de sobreviver; e se me acontece

amar o mundo, é apenas com violento
e ingénuo amor sensual
tal como, confuso adolescente outrora

o odiei, se nele me feria a dor
burguesa de ser burguês: agora dividido
– contigo não aparece o mundo objecto

de rancor, de quase místico
desprezo, a parte que detém o poder?
No entanto, sem o teu rigor, subsisto

porque não escolho. Vivo na indiferença
do crepuscular pós-guerra: amando
o mundo que odeio – na sua miséria,

desdenhoso e perdido – por um obscuro
escândalo de consciência…


IV
Escândalo de me contradizer, de estar
contigo e contra ti; contigo no coração,
na luz, contra ti nas negras vísceras;

embora traindo o legado paterno
– no pensamento, numa sombra de acção –
sei-me ligado a ele pelo calor

dos instintos, da paixão estética;
fascinado por uma vida proletária
anterior a ti, é para mim religião

a sua alegria, não a sua luta
milenária; a sua natureza, não a sua
consciência; foi a força originária

do homem, que se perdeu no acto,
a dar-lhe a embriaguez da nostalgia,
uma luz poética: nada sei dizer

para além disto que não seja
justo mas não sincero, abstracto
amor, não simpatia pungente…

Pobre como os pobres, ligo-me
como eles a esperanças humilhantes,
como eles para viver batalho

dia a dia. Mas na desoladora
minha condição de deserdado,
eu possuo; a mais exaltante

das posses burguesas, o estado
mais absoluto. Mas tal como possuo
a história – ela me possui; ilumina-me:

mas para que me serve a luz?

V
Não falo do indivíduo, do fenómeno
da paixão sensual, sentimental…
Outros seus vícios, outro o nome

e a fatalidade do seu pecar…
E amassados neles quantos comuns
vícios, pré-natais, e quantos

pecados objectivos! Não são livres
os actos, seus ou externos, que o despertam
para a vida, não escapam a nenhuma

das religiões que na vida estão presentes,
hipoteca de morte, instituídas
para iludir a luz, dar relevo ao engano.

Destinados a serem sepultados
no Verano, os seus despojos, é católica
a sua luta contra eles: jesuíticas

as manias que no coração dispõe
e ainda mais fundo: há astúcias bíblicas
na sua consciência… irónica paixão

liberal… e rude luz, entre náuseas
de fidalgo provinciano, de provinciana
saúde… até aos ínfimos pormenores

onde se diluem, no fundo animal,
Autoridade e Anarquia… Bem protegido
da impura virtude, da embriaguez do pecado,

defendendo uma pureza de obcecado
e com que escrúpulo!, o eu vive: eu
assim vivo, iludindo a vida; no peito

o sentido duma existência que seria esquecimento
pungente, violento… Ah!, como compreendo,
mudo, atravessado pelo húmido arrepio

do vento, aqui, onde Roma silencia
entre ciprestes convulsos, fatigados,
junto de ti, a alma que soa na inscrição

Shelley… Como compreendo o turbilhão
dos sentimentos, o capricho (grego
no coração do patrício, nórdico

vagabundo) que o mergulhou no cego
azul-celeste do Tirreno; a carnal
alegria da aventura, estética

e pueril: enquanto a Itália prostrada
como em enorme ventre de cigarra
alonga litorais brancos

esparsos, no Lácio, com velados grupos
de pinheiros, barrocos, com amareladas
clareiras de flora silvestre onde dorme,

com o membro inchado entre farrapos,
um sonho goethiano, o jovem camponês…
Escuras, na Maremma, manchas de ervas

medicinais, onde surgem, claras,
as nogueiras, nos caminhos que o pastor
enche com a sua juventude ignorante.

Cegamente fragrantes nas enxutas
curvas da Versília, que no enredado
mar, cego, os polidos estuques,

as incrustações suaves da sua pascal
planície inteiramente cultivada,
expões entristecida no Cinquale,

enovelada ao pé dos tórridos Apuanos
o azul-vítreo no róseo… De escolhos
derruídos, agitados, como num pânico

odorífero, na Riviera, húmida,
escarpada onde o sol luta com a brisa
para dar suprema suavidade aos óleos

do mar… Em torno adeja alegremente
o espantoso instrumento de percussão
do sexo e da luz: tão familiar

na Itália que ela não treme, como que
morta na sua vida: gritam calorosos,
de centenas de portos, o nome

do companheiro os jovens orvalhos
no moreno das faces, entre a gente
ribeirinha, ao longo de campos de cardos,

em minúsculas praias sórdidas…

Pedir-me-ás então, morto despojado,
que abandone esta desesperada paixão
de estar no mundo?


VI
Vou-me, deixo-te na noite
que embora triste cai suavemente
para nós, vivos, na luminosidade cinza

que na penumbra ao bairro adere.
E o altera. Torna-o maior, vazio,
em torno, e mais longe reacende-o

com uma vida frenética, que no rodar
rouco dos transportes, nos gritos
dialectais, humanos, elabora um concerto

abafado e absoluto. Sente-se nos seres
vivos que ao longe gritam, riem,
nos seus veículos, no mesquinho

casario onde se consuma o infiel
e expansivo dom da existência –
que essa vida é somente um arrepio;

presença carnal e colectiva;
sente-se a ausência de qualquer sincera
religião; não vida mas sobrevivência

– talvez ainda mais alegre que a vida –
como um povo de animais cujo secreto
orgasmo ignora outra paixão

que a do labor quotidiano: fervor
modesto que confere um ar de festa
à simples corrupção. Qualquer ideal

– neste vazio da história, nesta ruidosa
pausa em que a vida silencia –
quanto mais inútil melhor se manifesta

a magnífica e ardente sensualidade,
quase alexandrina, que tudo pinta
e impuramente acende, quando aqui

no mundo algo desmorona e a vida
rasteja, na penumbra, reentrando
em desertas praças, oficinas sem ânimo…

Já se acendem as luzes que constelam
a Rua Zabaglia, a Rua Franklin, todo
o Testaccio, desgrcioso, entre o sujo

e grande monte, as margens do Tibre, o negro
cenário, para lá do rio, que Monteverde
projecta ou esfuma invisível contra o céu.

Diademas de luzes que se perdem, cintilantes
e frias, de tristeza quase marinha…
Pouco falta para a hora de jantar;

brilham no bairro os raros autocarros,
com cachos de operários pendurados
e soldados vão, em grupos e sem pressa,

a caminho do monte de entre aterros
húmidos e imundícies secas oculta,
na sombra, algumas pobres putas

que esperam, iradas em cima do lixo
afrodisíaco; e por ali, entre barracas
clandestinas, nas faldas do monte ou perto

de palácios como mundos, rapazinhos
leves como andrajos brincam na brisa
agora morna, primaveril; ardentes

de estouvamento juvenil, adolescentes morenos
assobiam nos passeios, na tarde romana
e crepuscular, na festa de Maio;

tombam ruidosamente as comportas
de ferro das garagens, súbitas e alegres;
a penumbra tornou serena a tarde

e na Praça Testaccio, entre os plátanos,
o vento ao cair em frémito de trovoada
é suave, apesar de ao roçar as muralhas

e a terra do matadouro ter sorvido
o sangue podre, e por onde passa
agite detritos e o cheiro da miséria.

A vida é um murmúrio e os que nela
se perdem, perdem-na serenamente,
se ela lhes encheu o coração: ei-los

que gozam a noite, miseráveis. Neles,
tão fracos, o poderoso mito
renasce… Mas eu, com a consciência

de quem só na história encontra vida,
poderei alguma vez agir por paixão pura
se sei que a nossa história terminou?







wislawa szymborska / invento o mundo



Invento o mundo, segunda edição,
segunda edição corrigida,
no riso, para os idiotas,
no choro, para os melancólicos,
nos pentes, para os carecas,
nos sapatos, para os cães.

Um capítulo:
Fala das Plantas e dos Bichos,
onde para cada espécie
competente dicionário.
Mesmo o mais simples bom dia
que tu trocas com um peixe,
na vida te fortalece,
a ti, ao peixe e a todos.

Este improviso de bosque –
há muito pressentido
e de súbito em palavras acordado!
Esta epopeia de corujas!
Estes adágios de ouriço
compostos
quando estamos convencidos
de que está só a dormir!

O Tempo (capítulo II)
tem direito a intrometer-se
em tudo, seja no bom ou no mau.
E, contudo, o que corrói as montanhas
e afasta os mares e usa
estar presente no giro das estrelas,
não há-de ter o mais pequeno poder
sobre os amantes,
porque nus de mais,
porque abraçados de mais, o espírito
eriçado como pássaro num ombro.

A velhice é só moral
em vida de criminoso.
Por isso todos são jovens!
Sofrer (capítulo III)
não tira o peso ao corpo
e a morte
virá enquanto dormires.

E sonhares,
que afinal nem é preciso respirar,
que o silêncio sem respiração
é boa música,
és pequeno, uma faúlha,
e se te tocam apagas-te.

Morte, só uma assim. Dor maior
experimentaste ao segurar uma rosa,
e terror maior sentiste
vendo a pétala no chão.

Mundo, só um assim. Viver,
só desta maneira. E morrer, como antes visto.
Tudo o resto é como Bach
tocado em serra de circo.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998






04 março 2020

charles wright / poema quase à maneira de li ho




Todas as coisas aspiram à imponderabilidade,
     um lugar além do hábito da linguagem,
certo silêncio, certa zona de graça.

Céu branco como seda crua,
     janela que abre fustigada pelo frio a oeste,
o pôr do sol como erva morta.

Se Deus magoasse como nós magoamos,
     também ele estaria destroçado,
Inconsolável, intranquilo.

Li Ho, segundo a história, sairia de casa
Todos os dias, de madrugada, a cavalo, com o jovem criado atrás dele,
Uma velha saca bordada
Como mochila.
     Quando a inspiração o atingia, Ho escrevia
As frases e deixava-as cair na saca.
À noite voltava a casa e trabalhava as frases num poema,
Por mais desconexas e díspares que fossem.

Uma vez a sua mãe disse,
«Não irá parar até ter vomitado o coração».

E foi o que fez.
     Como John Keats,
Morreu crendo que o seu nome nunca seria escrito entre os Ilustres.
Sem esperança, pensou não ter – a pior praga – sorte.
Aos vinte e sete anos, à beira da morte, viu chegar um homem
De púrpura, cavalgando um dragão vermelho,
Com uma tábua na mão, que disse,
                                                     «Venho convocar Li Ho».
Saiu da cama e chorou.
Longe do quarto de doente, escuro de dragão, a neve assolava os
          desfiladeiros
Macacos vogavam pelas árvores do pagode
                                         e homens insensatos comiam jade branco.

Como estão lúgubres as colinas do sul,
                                                         como é branco o seu desespero
sob a página azul vazia do Dezembro Tang.

De que servem as palavras – não há palavras
Para a redacção gelada de Dezembro,
                                                         para o que nos fez sentir.
Vagueamos como nuvens entre o céu e a terra,
                                                                      entre algo e nada,
Por vezes com sombras, por vezes sem.





charles wright
trad. josé alberto oliveira
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001





03 março 2020

ulla hahn / inquietante



Macio o dia surgiu
subitamente. De manhã saí
de casa farejei nada
no ar. Tu tinhas-te
esfumado nos raios de sol
reverberava a sete cores o teu pó
poisou em mim e como
ele me penetrou como nunca
antes o meu amante. Nessa manhã
fazíamos
um par inquietantemente belo.



ulla hahn
trad. joão barrento
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990





02 março 2020

konstantinos kaváfis / che fece… il gran rifiuto



Para algumas pessoas há-de chegar o instante
em que têm de dizer o grande Não ou o grande Sim.
Nessa altura se mostra qual delas tem dentro de si
pronto o Sim, qual o diz e logo segue adiante

do seu valor segura, e da sua certeza.
Quem nega não renega. E à pergunta, repetida,
“Não” diria. Porém durante toda a vida
Aquele “Não” tão certo lhe há-de ter a vida presa.

1901



konstantinos kaváfis
kosntantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017





01 março 2020

rui costa / diálogo



Não acredites: as pessoas que te falam em diálogo
querem o teu mal. Dizem que a compreensão deve
ser «cultivada» - e esperam bem sentados que te estateles ao
                                                                               comprido
na frente de uma esplanadazinha com vista para o tédio.

(Afasta de ti esse cálice!)
Eles querem o teu sangue mas depois não sabem o que fazer com
                                                                                            ele,
não fazem nada com ele,
não o bebem, não o vendem, não o poluem com o teu
olhar desvairado ante o corpo aberto dela, do seu nexo tão
carente de ti.

Que a planta tem que ser regada para crescer, ah por favor –
não compres asas novas para a eterna toupeira.
A coisa verde estende as mãos para alcançar a água –
e depois cresce para o sol, incha,
porque ela usa-o e é usada por ele, e usar e ser usado é que é
o meu desejo cheio, a amizade toda e – foi assim connosco mas
                                                                                 já não é –
a  essência do amor (essa magra celulite que tu deves alcançar pelo
                                                                                           diálogo
na demonstração diária do respeito mútuo e sabiamente partilhado!)

Ainda pensas que te darei uma definição do amor?

Dou-te apenas o que não pode ser aceite:
o meu ar luminoso e irascível!
– e nenhum deus invoco ou minimizo.

Faz o que quiseres, ou o que puderes, com o que eu te dou.
É para isso, é por isso que (o café está bom)
(e) eu gosto de ti.


rui costa
à solta no ringue
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017




29 fevereiro 2020

antonin artaud / e que o plano se inflame em volume,



E que o plano se inflame em volume,

pois o plano não tem volume,
é o volume que faz o plano;

o volume come o plano
a girar por todos os lados.


antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019






28 fevereiro 2020

john freeman / encobrimento



Se
pudéssemos
traçar um atlas
da dor, a maior
porção da terra
seria terra
incognita.



john freeman
mapas
trad. miguel cardoso
tinta da china
2019






27 fevereiro 2020

ron padgett / lá em baixo



As pessoas costumam repetir o velho conselho
«Vive todos os dias
como se fosse o último dia da tua vida».
O último dia da minha vida? O quê?
Ficaria frenético, a pular
como um canguru
com luvas de boxe
a socar o ar,
a tentar lutar contra o que quer que viesse.
O que as pessoas querem dizer é
«Estar plenamente comprometido com a vida».
Como um canguru sem luvas de boxe.


ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018






26 fevereiro 2020

jesús lizano / a verdade



É triste a verdade. É o mais triste que há.
Vivemos de verdades que nos vivem,
verdades que inventamos e se escrevem
como leis de um mundo que não existe.

A Razão, sua loucura, reveste-se
de fantasmas perdidos que recebem
nomes que nos dominam e sobrevivem
fingindo a verdade. Em que consiste

essa alucinação que determina
o domínio que a converte em deusa
senão em falso sol da nossa essência.

Foge desse feitiço que a anima,
confusa e tão sangrenta e venenosa.
Não é a verdade a luz. É a inocência.


jesús lizano
mundo real poético
antologia
trad. carlos d´abreu
barricada de livros
2019





25 fevereiro 2020

herberto helder / lugar



III
As mulheres têm uma assombrada roseira
fria espalhada no ventre.
Uma quente roseira às vezes, uma planta
de treva.
Ela sobe dos pés e atravessa
a carne quebrada.
Nasce dos pés, ou da vulva, ou do ânus —
e mistura-se nas águas,
no sonho da cabeça.
As mulheres pensam como uma impensada roseira
que pensa rosas.
Pensam de espinho para espinho,
param de nó em nó.
As mulheres dão folhas, recebem
um orvalho inocente.
Depois sua boca abre-se.
Verão, outono, a onda dolorosa e ardente
das semanas,
passam por cima. As mulheres cantam
na sua alegria terrena.

Que coisa verdadeira cantam?
Elas cantam.
São broncas e doces, mudam
de cor, anunciam a felicidade no meio da noite,
os dias brilhantes de desgraça.
Com lágrimas, sangue, antigas subtilezas
e uma suavidade amarga —
as mulheres tornam impura e magnífica
nossa límpida, estéril
vida masculina.
Porque as mulheres não pensam: abrem
rosas tenebrosas,
alagam a inteligência do poema
com o fogo podre de um sangue menstrual.
São altas essas roseiras de mulheres,
inclinadas como sinos, como violinos, dentro
do som.
Dentro da sua seiva de cinza brilhante.

O pão de aveia, as maçãs no cesto,
o vinho frio,
ou a candeia sobre o silêncio.
Ou a minha tarefa sobre o tempo.
Ou o meu espírito sobre Deus.
Digo: minha vida é para as mulheres vazias,
as mulheres dos campos, os seres
fundamentais
que cantam de encontro aos sinistros
muros de Deus.
As mulheres de ofício cantante que a Deus mostram
a boca e o ânus
e a mão vermelha lavrada sobre o sexo.

Espero que o amor enleve a minha melancolia.
E flores sazonadas estalem e apodreçam
docemente no ar.
E a suavidade e a loucura parem em mim,
e depois a europa tenha cidades antigas
que ardam na treva sua inocência lenta
e sangrenta.
Espero tirar de mim o mais veloz
apaixonamento e a inteligência mais pura.
— Porque as mulheres pensarão folhas e folhas
no campo.
Pensarão na noite molhada,
no dia luzente cheio de raios.

Vejo que a morte se inspira na carne
que a luz martela de leve.
Nessas mulheres debruçadas sobre a frescura
veemente da ilusão,
nelas — envoltas pela sua roseira em brasa —
vejo os meses que respiram.
Os meses fortes e pacientes.
Vejo os meses absorvidos pelos meses mais jovens.
Vejo meu pensamento morrendo na escarpada
treva das mulheres.

E digo: elas cantam a minha vida.
Essas mulheres estranguladas por uma beleza
incomparável.
Cantam a alegria de tudo, minha
alegria
por dentro da grande dor masculina.
Essas mulheres tornam feliz e extensa
a morte da terra.
Elas cantam a eternidade.
Cantam o sangue de uma europa exaltada.



herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996