22 fevereiro 2020

fernando echevarría / em certas casas



Em certas casas o silêncio quase
reduz as estruturas à evidência,
de forma a os alicerces lhes fundarem
aquela irredutível diferença
que as institui. E desentranha a habitável
capacidade de luz e de paciência.
Porque o silêncio as sabe
translúcidas. Sua substância entra
com um alento de subtilidade.
E por dentro dos poros a sustenta.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998








21 fevereiro 2020

manuel antónio pina / palavras



Palavras perpetradas em silêncio
na cama, lugar de assassinos.
Escondo-me para morrer. Nenhuma lógica é mais mortal
que esta estúpida perversão, esta morte.

Estúpidos lençóis; escrita de
corpos grosseiros; crimes passionais.
Falta-me uma palavra essencial,
um som perverso para morrer: um sonho.

Contraem-se os músculos na vigília.
Preciso do sono e do movimento dos corpos
para dirigir devidamente o pequeno crime
da tua morte. Agora calo-me um pouco.


manuel antónio pina
rebis
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992




20 fevereiro 2020

josé gomes ferreira / viver sempre também cansa!



Viver sempre também cansa!

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase verde…
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida…

E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
«Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
Por uma bagatela.»

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosse acordar
a Morte ainda menina no meu colo…



josé gomes ferreira
viver sempre também cansa! 1931
poesia I
portugália
1972




19 fevereiro 2020

cesare pavese / o tempo passa



Uma vez, um homem velho, sentado na erva,
esperava que o filho regressasse com o frango
mal esganado e pespegou-lhe duas bofetadas. Pelo caminho
– iam de madrugada por aqueles montes –
explicava-lhe que os frangos se esganam com a unha
– entre os dedos – do polegar, sem ruído.
Empanturrados de fruta, caminhavam debaixo das árvores
no fresco amanhecer e o rapaz levava
ao ombro uma cabaça amarelada. O velho
dizia que as dádivas da natureza são de quem delas precisa,
é tanto verdade que não nascem debaixo de telha. Primeiro olha-se
bem à volta e depois escolhe-se com calma a videira mais escura,
e sentamo-nos à sombra dela, sem bulir, enquanto não estivermos
                                                                                    atestados.

Na cidade há quem coma frangos. Nas ruas
não se encontram frangos. Encontra-se o velhote mirrado
– é tudo quanto resta do outro homem velho –
que, sentado à esquina, olha para quem passa
e, quem quer, lança-lhe duas moedas. Não abre a boca
o velhote: estar sempre a falar faz sede
e na cidade não há tonéis entornados,
nem em Outubro nem nunca. Há a grade do tasco
que cheira a mosto, especialmente à noite.
No Outono, à noite, o velhote caminha,
mas já não tem a cabaça, e as portas defumadas
dos tascos expelem bêbados que falam sozinhos.
É uma gente que só bebe à noite
(pensam nisso logo de manhã) e assim se embebeda.
O velhote, em rapaz, bebia com calma;
agora, só de o cheirar, treme-lhe a barba:
por fim, mete um pau entre os pés dum bêbado
e derruba-o. Ajuda-o a levantar-se, esvazia-lhe os bolsos
(ao bêbado às vezes resta-lhe qualquer coisa),
e às duas expulsam-no também a ele
do tasco cheio de fumo, pois canta, pois grita
e que quer a cabaça e deitar-se à sombra das videiras.


cesare pavese
cidade no campo
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997





18 fevereiro 2020

nuno / par coeur



                                                             O homem pode o seu coração
                                                                                   Manuel de Castro


Anda comigo,
vamos ver paisagens caran d´ache,
– dizias.

Arrefecias no chão
um coração incandescente
em anamnese lacónica
de nós

Anda comigo,
tenho ainda escuridão para ti,
– dizia.


nuno
livro de visitas
díptico
ed. do autor
2019





17 fevereiro 2020

manuel resende / uma palavra


Longe de mim querer corromper a juventude,
É um trabalho que sobreleva as
Minhas capacidades.
Antes cicuta.
Mas tenho de explicar o sentido
Da palavra “desesperança”.

É uma esperança negativa.
A gente senta-se num cais
E deixa o sol trabalhar.
O sol minúsculo, isto é, o calor na pele.
Chamo a isto a experiência mínima.

Feito isto:
Venha de lá então
Essa catástrofe.



manuel resende
poesia reunida
edições cotovia
2018






16 fevereiro 2020

álvaro de campos / há mais de meia-hora



Há mais de meia hora
Que estou sentado à secretária
Com o único intuito
De olhar para ela.
(Estes versos estão fora do meu ritmo.
Eu também estou fora do meu ritmo).
Tinteiro grande à frente.
Canetas com aparos novos à frente.
Mais para cá papel muito limpo.
Ao lado esquerdo um volume da «Enciclopédia Britânica».
Ao lado direito —
Ah, ao lado direito!
A faca de papel com que ontem
Não tive paciência para abrir completamente
O livro que me interessava e não lerei.
Quem pudesse sintonizar tudo isto!

3-1-1935



fernando pessoa
poesias de álvaro de campos
edições ática
1944






15 fevereiro 2020

edmundo de bettencourt / noite vazia


Crescimento do silêncio a devorar as nuvens.
Voo incansável e monótono das aves brancas do cérebro.
Florida e ondulada suspensão da mágoa.
As ferocidades são ternuras desmaiando na estepe adivinhada.
O amor abre goelas bocejantes nos côncavos da ausência do espaço.
E a morte espreitando a lentidão
irradia baçamente a sua despedida.

Noite vazia.

As aves brancas do cérebro
inutilmente abatem as suas asas!


edmundo bettencourt
poemas surdos 1934-1940
poemas de edmundo de bettencourt
assírio & alvim
1999






14 fevereiro 2020

saint-john perse / amargos



[…]

Tu aí estás, meu amor, e só tenho lugar em ti. Elevarei para ti a fonte do meu ser, e te abrirei a minha noite de mulher, mais clara que a tua noite de homem; e a grandeza em mim de amar te ensinará talvez a graça de ser amado. Licença então aos jogos do corpo! Oferenda, oferenda, a favor de ser! Abre-te a noite uma mulher: o seu corpo, as suas angras, a sua praia; e a noite anterior onde jaz toda a memória. Dela faça o amor o seu refúgio!

[…]


saint-john perse
antologia poética
trad. carlos cunha e alfredo margarido
guimarães editores
1961




13 fevereiro 2020

vasco gato / esta música, ouves?


Esta música, ouves?

sabe que
quando nos separamos

– tu seguras uma ponta,
Eu seguro outra –

as coisas do mundo
tocam o cordel
da nossa distância.



vasco gato
um passo sobre a terra
língua morta
2018







12 fevereiro 2020

rui coias / a ordem do mundo


7.
Em qualquer momento, no começo e no fim,
mesmo na medida de toda a vida – falhos de toda a pena,
permanecemos sem amanhã nem princípio,
esbatidos na idade e na distância, saqueados na sua mentira,
apenas acumulando areia para o fundo de um recreio
a simular um amuleto contra o regresso impossível.
Não temos trégua – não podemos voltar – e afastamo-nos – sem
ruído – lá para onde de longe chamamos, no ar rarefeito
– figuras resumidas a uma branca poeira informe,
em quantas inumeráveis semelhanças com a morte.
Pressentida ruína, a do íntimo declínio disto tudo,
demais cientes na incerteza como o sinal exposto da memória,
resina que nela se abate à frente dos olhos, que
esmaga cada braçada do tempo ao seu embuste
e nos recusa a menor separação do abandono –
que por nada existimos – e só acenamos – acenamos –
senão para crer no que julgamos não ter acontecido,
senão a entender a justa aceitação da nossa vida.




rui coias
a ordem do mundo
quasi edições
2005







11 fevereiro 2020

sarah kirsch / orvalho negro


  
O acaso conduziu-me a esta planície
Onde durmo sobre juncos como sobre seda.
Na terra pantanosa vive-se sem calendário
O inverno faz-se sentir mas não se sabe o seu ano.




sarah kirsch
trad. maria teresa dias furtado
hífen 7 abril
cadernos semestrais de poesia
dias inúteis
1992









10 fevereiro 2020

pat boran / a bondade de um homem



A bondade de um homem vê-se
pelo que ele diz a um cão
quando tem de saltear da cama
a meio de uma noite de inverno
porque um maldito cão tem estado a ladrar

e vai, abre a porta
de camisola interior e boxers
e ali à frente no baldio cheio de buracos
a que chamam campo de jogos
dá com o rafeiro de pata

no ar na expectativa
e um ar que diz: Graças a Deus
por momentos pensei
que só eu estava acordado
nesta terra de merda.



pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018