13 dezembro 2019

charles bukowski / o milagre



Trabalhar com uma forma de arte
não significa
mandriar como uma ténia
de barriga cheia,
nem justifica grandeza
ou ganância, nem seriedade
a toda a hora, creio antes
que é um apelo aos melhores homens
nos seus melhores momentos,
e quando eles morrem
e outra coisa não morre,
assistimos ao milagre da imortalidade:
homens que chegaram como homens
partiram como deuses –
deuses que sabemos que aqui estiveram,
deuses que agora nos permitem continuar
quando tudo o mais nos diz para parar.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018





12 dezembro 2019

marianne moore / o retiro do mágico




de mediana altura
(que eu vi)
fosco mas lá dentro luz
tal pedra da lua
enquanto fulgia um halo
de frecha de um estore
e um brilho azul do lampião
junto à porta de entrada.
Não dava razão de queixa,
nada mais para obter,
consumadamente chão.


Um maciço de árvores negras por trás
quase tocando as caleiras
com a nitidez de Magritte,
era sobretudo discreto.




marianne moore
o pangolim e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2018





11 dezembro 2019

roberto juarroz / às vezes parece




Às vezes parece
que estamos no centro da festa.
No entanto
no centro da festa não há ninguém.
No centro da festa está o vazio.


Mas no centro do vazio há outra festa.



roberto juarroz
trad. arnaldo saraiva
hífen 7 abril
cadernos semestrais de poesia
dias inúteis
1992






10 dezembro 2019

joão almeida / só



Encontrei Georges, meio profeta
Meio cavalo, estendido no chão

Olhos inofensivos de longa vigília
Cheirava a mofo e a rim

Levantou a cabeça para me ver mijar

Lembrava-lhe a infância
As histórias do pai
Mulheres que mijavam de pé
Em aldeias extintas

Mais droga, porno e poesia
Fomos conversando.


joão almeida
canto skin
língua morta
2019





09 dezembro 2019

joão do nascimento / são poucas as coisas que são-tudo




são poucas as coisas que são-tudo. uma cadeira em equilíbrio é-definitivamente-tudo. a rua onde mora. o lembrar. as-telhas de ver porque apenas reflexo, e o silêncio da cor, que não-mais do que uma ausência muito constante de livros-à conversa com os pássaros. quando a conversa dos pássaros é tudo é-mais do que tudo. e o mar é-sempre
          porque saber mentir é semelhante a escrever nas costas-dos postais. é semelhante a demorar muito nos sítios-de passagem. é semelhante a acreditar nas árvores. no tempo de que são feitas as árvores. é quase igual a acreditar. e depois. e depois, são poucas as coisas que são-tudo. como: uma cadeira em equilíbrio é-definitivamente-tudo. e se alguma semelhança existe entre a gaveta e as coisas que guarda. a semelhança é possivelmente mais, e o mar é-sempre

15/03/01



joão do nascimento
apeadeiro
revista de atitudes literárias
n.º 2 primavera de 2002
quasi
2002





08 dezembro 2019

bernardo soares / a literatura, que é a arte casada com o pensamento,



A literatura, que é a arte casada com o pensamento, e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.

Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.

Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos. O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.

Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.

s.d.





fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982







07 dezembro 2019

cesare pavese / oficio de viver



3 de Fevereiro de 1941

Que existe afinal, na minha ideia fixa de que tudo consiste no secreto e amoroso «em si», que cada criatura oferece a quem a sabe penetrar? Nada, porque esta amorosa comunhão nunca a pude realizar.

No fundo, o segredo da vida é fazer como se tivéssemos o que mais dolorosamente nos falta. O preceito cristão está aqui inteiro. Convencermo-nos de que tudo foi criado para o bem, que a fraternidade humana existe – e se não é verdade, que importa? O conforto desta visão consiste em acreditar-se nela, não no facto de que seja real. Porque se acredito, se tu, se ele, se eles acreditam, tornar-se-á verdadeira.





cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004





06 dezembro 2019

franz kafka / diários



1911, 12 de Janeiro

Não escrevi muito sobre mim nestes dias, em parte por preguiça (durmo tão profundamente durante o dia, tenho mais peso enquanto durmo), em parte também por medo de trair o conhecimento que tenho de mim. Este medo justifica-se, porque uma pessoa só devia fixar na escrita a sua autopercepção quando o puder fazer com a maior integridade, com todas as consequências secundárias e também com toda a verdade. Porque se isto não acontecer – e eu de qualquer maneira não sou capaz de o fazer – o que está escrito irá, de acordo com a sua própria finalidade e com o poder superior do que fi fixado, tomar o lugar daquilo que se sentia apenas vagamente, de tal modo que o sentimento verdadeiro desaparecerá enquanto o não valor do que foi anotado será reconhecido tarde de mais.




franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986






05 dezembro 2019

arthur rimbaud / digo que é preciso ser-se vidente



carta para Paul Demeny, Charleville, 15 de Maio de 1871
(excerto)


[…]

          Digo que é preciso ser-se vidente, tornar-se vidente.
          O poeta torna-se vidente através de um longo, imenso e ponderado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura-se a si mesmo, ele esgota em si todos os venenos para ficar apenas com as quintessências. Inefável tortura para a qual ele precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana, através da qual ele se torna entre todos o grande demente, o grande criminoso, o grande maldito – e o Sábio supremo! – Porque ele alcançou o desconhecido! Porque ele cultivou a sua alma, já de si rica, mais do que ninguém! Ele alcança o desconhecido, e quando, aterrorizado, acabar por perder a inteligência das suas visões, ele tê-las-á visto! Que ele rebente no seu salto pelas coisas inauditas e infindáveis: outros horríveis trabalhadores virão; e começarão pelos horizontes nos quais o outro vergou!

[…]


jean-arthur rimbaud
cartas e documentos
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018






04 dezembro 2019

marcel proust / um homem que dorme…




Um homem que dorme tem em círculo à sua volta o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Consulta-os instintivamente ao acordar e neles lê num segundo o ponto da terra que ocupa, o tempo que decorreu até ao seu despertar; mas as respectivas linhas podem misturar-se, quebrar-se. Basta que, já de manhã, depois de uma insónia qualquer, o sono o invada enquanto lê, numa posição muito diferente daquela em que habitualmente dorme, basta que tenha o braço levantado para deter e fazer recuar o sol, e ao primeiro minuto depois de acordar já não saberá que horas são, julgará que mal acaba de se deitar.



marcel proust
em busca do tempo perdido
volume I do lado de swann
trad. pedro tamen
relógio d´água
2003






03 dezembro 2019

albert camus / também é importante o tema da comédia



Maio de 1935

Também é importante o tema da comédia. O que nos protege das maiores dores, é o sentimento de estarmos abandonados e sós, mas não tão sós no entanto para que os «outros» não nos «considerem» no meio da nossa dor. É nesse sentido que os nossos minutos de felicidade são por vezes aqueles em que o sentimento de abandono nos sufoca e nos arrasta para uma tristeza sem fim. É neste sentido também que muitas vezes a felicidade não é mais que o sentimento compadecido da nossa infelicidade.

Admirável para os pobres – Deus colocou a complacência ao lado do desespero como o remédio ao lado da enfermidade.



albert camus
primeiros cadernos
trad. não disponível
livros do brasil
1973





02 dezembro 2019

s. kierkegaard / que irá acontecer?



Que irá acontecer? Que trará o futuro? Não sei, não pressinto nada. Quando uma aranha, de um ponto firme, se precipita nas suas consequências, ela vê continuamente um espaço vazio à sua frente em que, por mais que se debata, não consegue encontrar ponto de apoio. Assim sucede comigo – à minha frente sempre um espaço vazio; o que me impele para diante é uma consequência que se encontra atrás de mim. Esta vida está virada ao contrário e é horrível, não se aguenta.


s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011









01 dezembro 2019

vasco graça moura / o mês de dezembro



II
mestria do silêncio dúbias rimas
a música mordida ou as catástrofes
(a arte é hipocrisia da memória)
que são as obras da maturidade

mas as rasuras deixam cicatrizes
e é doce o silvo da respiração
quando o presente aos poucos se degrada
como estas linhas lidas num espelho

podem usar-se as mais escuras sílabas
(alguns rumores que a noite devorasse)
porque é no inverno que as coisas se repetem
e a coerência do amor foi recordada



vasco graça moura
o mês de dezembro
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007