05 setembro 2019

luís falcão / envelhecemos avaliando perdas



Envelhecemos avaliando perdas
corroídos pela solidão e pelo medo
tocamo-nos, retemo-nos
como azáleas doentes
cujas ossos
escuríssimos e inacessíveis
procuram uma aliança de fogo branco



luís falcão
bruma luminosíssima
artefacto
2016










04 setembro 2019

joão luís barreto guimarães / um quarto de hotel em madrid




Não se chega a pertencer nunca a
quarto de hotel. Não se lhe ganha afecto (não
é nosso por inteiro) se é
certo que amanhã outro dono estará
emoldurado
ao espelho. Não se chega a confiar nele
(não se lhe lega segredos) sequer a
palavra impudica expurgada
da pele
pela toalha de banho. Não chega a
ser nossa a cama (não se molda
a nosso jeito) melhor que
nem te despeças dessa alcova pela manhã
quando sabes como é lesta a
entregar-se ao próximo viandante
por dinheiro.




joão luís barreto guimarães
você está aqui (2013)
o tempo avança por sílabas
poemas escolhidos
quetzal
2019






03 setembro 2019

tomas tranströmer / passagem para peões



Vento gélido contra os olhos, raios solares dançam
no caleidoscópio das lágrimas quando atravesso
a rua, rua que me tem seguido tanto tempo,
e onde o verão gronelandês brilha nas suas poças d´água.

Ao meu redor rodopia toda a força da rua,
de que nada se recorda e nada quer.
No subsolo, bem no fundo, sob o trânsito,
espera aí há mil anos a floresta por nascer.

Ocorre-me que a rua olha para mim.
O seu olhar é tão suspeito que até o sol
parece uma meada cinzenta no escuro do céu.
Neste instante sou eu que brilho. A rua vê-me!




tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012






02 setembro 2019

jacques brel / a minha infância




A minha infância passou
Entre tédios e silêncios
Entre falsas mesuras
E batalhas que não houve
De Inverno no ventre
Daquela grande casa
Que tinha ancorado
A norte por entre os juncos
De Verão meio nu
Mas modesto por inteiro
Tornava-me índio
Embora já convicto
De que meus tios cevados
Me tinham roubado o Far West

A minha infância passou
As mulheres nas cozinhas
Onde eu sonhava com a China
Envelheciam em cozinhados
Os homens ao queijo
Envolviam-se em tabaco
Flamengos calados e ponderados
E não me conheciam
Eu que todas as noites
Ajoelhado por nada
Arpejava o meu desgosto
Aos pés da cama imensa
Queria apanhar um comboio
Que jamais apanhei

A minha infância passou
De criada em criada
Admirava-me já
Não serem elas plantas
Admiravam-me ainda
Essas rodas de família
Flanando de defunto em defunto
E que o luto cobre
Admirava-me sobretudo
Vir eu de tal rebanho
Que me ensinava a chorar
Que eu conhecia demais
O meu olhar era de pastor
Mas o coração de cordeiro

A minha infância estourou
Chegou a adolescência
E o muro do silêncio
Uma manhã ruiu
Foi a primeira flor
E a primeira namorada
A primeira gentil
E o primeiro medo
Eu até voei eu juro
Eu juro que até voei
O meu coração abria os braços
Era o fim da barbárie

E a guerra chegou

E eis-nos agora aqui



jacques brel
antologia poética
trad. eduardo maia
assírio & alvim
1997





01 setembro 2019

byron / neste dia completo o meu 36.º aniversário




É tempo deste coração permanecer insensível
porque já não pode comover o dos outros:
mas, se por ninguém eu posso ser amado,
ainda quero amar!

Os meus dias estão nas folhas já caídas;
as flores e os frutos do amor abandonaram-me;
o verme, o cancro, o profundo desgosto
a ninguém mais pertencem!

Como uma ilha vulcânica, sozinho
o fogo vem consumir-se no meu peito;
não há nenhum lume que aí se reacenda
– uma chama funerária!

A esperança, o temor e o ciúme,
tudo o que é excessivo no sofrimento,
e o poder do amor, não posso compartilhar,
só lhes sofro as cadeias.

Mas não é assim – e não é neste lugar –
que deviam estes pensamentos abalar-me, nem agora
quando a glória decora o túmulo do herói
ou lhe coroa a fronte.

A espada, a insígnia e o campo de batalha,
a glória e a Grécia, contemplo à minha volta!
O guerreiro espartano, erguido sobre o escudo,
Não era mais livre.

Desperta (que a Grécia, ela está acordada!)
Desperta, meu espírito! Pensa naquele
cujo sangue vital corre para o lago materno
e encontra o seu destino.

Subjuga os desejos que despertam ainda,
virilidade indigna! – para ti
deveriam ser indiferentes o sorriso ou o duro
olhar da Beleza.

Para que vives, se lamentas a tua juventude?
Aqui fica o lugar de uma morte honrosa.
Caminha para a luta, e deixa que se apague
o teu último alento!

Procura – sem o procurar, tê-lo-ias encontrado –
o túmulo de um soldado, aquilo que mereces;
olha por fim à volta e prefere esta terra,
aceita o teu descanso.



byron
poesia romântica inglesa
(byron, shelley, keats)
trad. fernando guimarães
editorial inova
1977






31 agosto 2019

luis alberto de cuenca / happy family




O pai é corcunda e elegante,
magnânimo, discreto, compreensivo.
Recebe no castelo os filósofos
que não suportam o ancien regime,
enquanto a esposa, vinte anos mais nova,
manda servir o chá, vestida apenas
com o colar de pérolas que lhe trouxe,
do seu périplo pela Austrália, Cook.
Têm um filho loiro, tão cientista
ele, está destinado no futuro
a caçar borboletas por hipnose,
ou a dar uma seca na sociedade
geográfica, ou a fazer-se íntimo
de Cuvier ou Champollion. Dá-se
francamente bem a família, vê-se
por aquele costume da senhora
de lambuzar de chocolate o filho
todas as tardes sendo sete em ponto
– a nova hora taurina –,  face ao cúmplice
e orgulhoso olhar do seu paizinho.



luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018






30 agosto 2019

per aage brandt / o homem é um hóspede efémero da terra




*
o homem é um hóspede efémero da terra,
pensava o poeta asteca, mas um hóspede
nem sempre é um homem aqui na terra;
na rua, num país estrangeiro, na cama de alguém,
acontecem coisas estranhas, um coração é uma
arma eficaz, e (citação) de qualquer modo morreremos,
abandonando-nos uns aos outros, abraçados, com a língua na
orelha
de um corpo que vibra de prazer ou se alonga num grito de
guernica,
depois do encontro com alguém que passou
e desapareceu ou tomou a decisão de ficar

*



per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004






29 agosto 2019

charles bukowski / facto




poesia cautelosa
e pessoas
cautelosas
duram
apenas o suficiente
para
morrer
em segurança.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018







28 agosto 2019

charles simic / a execução



Foi o nascer do sol mais cedo
E o mais tranquilo.
Os pássaros, por razões deles,
Ficaram calados nas árvores
Cujas folhas permaneceram
Quietas o tempo todo
Um número pequeno apenas
Nos ramos mais altos
Salpicados com sangue recente.



charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018







27 agosto 2019

saint-john perse / chuvas




VII

[…]

«Lavai, lavai a história dos povos nas altas mesas da memória: os grandes anais oficiais, as grandes crónicas do Clero e as publicações académicas. Lavai as bulas e as cartas, e os Diários do Terceiro Estado; as Convenções, os Pactos de aliança e os grandes actos federativos; lavai, lavai, ó Chuvas! todos os velinos e todos os pergaminhos, cor de muros de asilo e de leprosarias, cor de marfim fóssil e de velhos dentes de mula… Lavai, lavai, ó Chuvas! as altas mesas de memória.

[…]


saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016







26 agosto 2019

eugéne guillevic / carnac (fragmentos)


1

MAR à beira do nada,
Que se mistura ao nada,

Para melhor saber o céu,
As praias, os rochedos,

Para melhor os receber.


guillevic
poesias de guillevic
tradução de david mourão-ferreira
editora ulisseia
1965








25 agosto 2019

miguel torga / pedagogia



Brinca enquanto souberes!
Tudo o que é bom e belo
Se desaprende…
A vida compra e vende
A perdição.
Alheado e feliz,
Brinca no mundo da imaginação,
Que nenhum outro mundo contradiz!

Brinca instintivamente
Como um bicho!
Fura os olhos do tempo,
E à volta do seu pasmo alvar
De cabra-cega tonta,
A saltar e a correr,
Desafronta
O adulto que hás-de ser!

Coimbra, 16 de Março de 1960



miguel torga
diário ix
1964







24 agosto 2019

tiago fabris rendelli / verdade



não podemos nos furtar do equívoco
nem esquecer que os espelhos só refletem reflexos.

desconfiai dos corretos
dos que declaram a verdade
pois são os mesmos que fuzilaram Lorca
que seguem atirando poetas em covas rasas
                                              matando sonhos
                                              cegando os pássaros
                                              cortando as asas.



cuidado
aquele que se esquiva do erro
nega o princípio da beleza.



tiago fabris rendelli
& wladimir vaz
terra seca
editora urutau
2017