10 julho 2019

roberto juarroz / a sinceridade dissimulada da noite


A sinceridade dissimulada da noite
guia as gotas de chuva
até à atenção exemplar das coisas
e uma sílaba antiga,
uma gota de homem,
humedece as paredes porosas do pensamento.
Borboleta de pedra viva
que recolhe a cor de uma estrela apagada
para enunciar o tecido ardente
onde o pensamento é pasto das coisas,
torre de alimento
para a fome intersticial e alerta.

Pensar é como amar.


roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018






09 julho 2019

vasco gato / ser então impossível



Ser então impossível
desirmanar a luz
das coisas amadas,

justamente
porque tombadas
em concreta adoração,

e nunca um destroço
foi tão necessário
como existir.

  

vasco gato
um passo sobre a terra
língua morta
2018






08 julho 2019

luís falcão / no dia em que a essência sagrada




No dia em que a essência sagrada
das coisas se quebra
olhas a chuva nas flores das magnólias
e a morte
principia sobre ti o seu trabalho




luís falcão
bruma luminosíssima
artefacto
2016







07 julho 2019

bernardo soares / maneira de bem sonhar



Cuidarás primeiro em nada respeitar, em nada crer, em nada (...)

Guardarás da tua atitude ante o que não respeites, a vontade de respeitar alguma coisa; do teu desgosto ante o que não ames o desejo doloroso de amar alguém; do teu desprezo pela vida guardarás a ideia de que deve ser bom vivê-la e amá-la. E assim terás construído os alicerces do edifício dos teus sonhos.

Repara bem que a obra que te propões fazer é no mais alto de tudo. Sonhar é encontrarmo-nos. Vais ser o Colombo da tua alma. Vais buscar as suas paisagens. Cuida bem pois em que o teu rumo seja certo e não possam errar os teus instrumentos.

A arte de sonhar é difícil porque é uma arte de passividade, onde o que é de esforço é na concentração da ausência de esforço. A arte de dormir se a houvesse, deveria ser de qualquer forma parecida com esta.

Repara bem: a arte de sonhar não é a arte de orientar os sonhos. Orientar é agir. O sonhador verdadeiro entrega-se a si próprio, deixa-se possuir por si próprio.

Foge a todas as provocações materiais. Há no início a tentação de te masturbares. Há a do álcool, a do ópio, a do (...). Tudo isso é esforço e procura. Para seres um bom sonhador, tens de não ser senão sonhador. Ópio e morfina compram-se nas farmácias — como, pensando nisto queres poder sonhar através deles? Masturbação é uma coisa física — como queres tu que (...)

Que te sonhes masturbando-te, vá; que em sonhar talvez fumando ópio, recebendo morfina te embriagues da ideia do ópio (...) da morfina dos sonhos — não há senão que elogiar-te por isso: estás no teu papel áureo de sonhador perfeito.

Julga-te sempre mais triste e mais infeliz do que és. Isso não faz mal. E mesmo, por ilusão, um pouco escadas para o sonho.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990








06 julho 2019

emily dickinson / pressentimento



Pressentimento – é essa longa Sombra – na Relva –
Indicativa de que Sóis se estão a pôr –

É o aviso à Erva assombrada
Que a Escuridão – está prestes a chegar –




emily dickinson
duzentos poemas
trad. ana luísa amaral
relógio d´água
2014







05 julho 2019

carlos poças falcão / não sou um indignado



Não sou um indignado. Sei que o mundo passa
bem sem mim – o que é justo e me assinala a grande liberdade.
Procuro manter a dignidade, estou a envelhecer e no entanto
pronto a começar. Afinal está provado o sem sabor de tudo
– a não ser daquilo que começa, do que é inicial,
ou seja, desde sempre. Aí regresso a horas repentinas
muitas vezes entre um desencontro e o café.
Isso é terrível e procuro manter a dignidade.
Foi numa dessas horas que descobre que Deus
não passa bem sem mim – o que não me indigna
e também não me alivia da grande liberdade. Afinal
ser homem para Deus é o sabor inicial.



carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018






04 julho 2019

marcos foz / arca e usura


[…]
mil cambalhotas para
acabar com um anzol preso aos beiços
– alguns anos são assim –
todos os músculos ferozmente retesados
alguns relatos que nos chegam da tv
tsunamis e terramotos e a nossa cabeça
furiosa pelo trabalho da imobilidade na sua preocupação

alguns anos são assim
por vezes largam-nos de novo no charco
com uma pequena mancha vermelha a servir
de testemunha outras vezes (sad sad song)
puxam até à surpresa e deformidade

& como árvore que amadurece os seus frutos
no centro de quatro paredes em ruínas
finjo que tudo vai bem no que me rodeia
ignorando o declive da paisagem
ou a excursão de bárbaros sedentos
por sujarem um pouco mais o nosso baldio

[…]


marcos foz
arca e usura
edição do autor
2019







03 julho 2019

juan vicente piqueras / instruções para sair do deserto



Para sair deste íntimo deserto
é preciso saber que não tem saída.

Esperar, caminhar, desesperar,
cultivar a paciência até perdê-la
quando todo tu sejas já pura paciência.

É preciso sentir que o deserto és tu mesmo,
recordar com irónica ternura
aqueles dias só agora felizes
em que tivemos fé nas miragens.

Já não há mais coração do que aquele que ardeu.

Não há maneira nem água nem amanhã
nem oriente nem ocidente. Não há estrelas
que te digam onde, que te indiquem
messias ou saídas que não existem.

Até que um dia encontres
diante de ti as tuas pegadas de outros anos
e compreendas que chegaste ao teu passado,
que já estás onde estavas,
que morrerás de sede.
                                         Olha na areia
as sombras dos abutres que julgavas gaivotas.




juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019






02 julho 2019

paul éluard / a perder de vista



NO SENTIDO DO MEU CORPO


Todas as árvores com todos os ramos com todas
                                                                      [as folhas
A erva na base dos rochedos e as casas
                                                               [amontoadas
Ao longe o mar que os teus olhos banham
Estas imagens de um dia e outro dia
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A transparência dos transeuntes nas ruas do acaso
E as mulheres exaladas pelas tuas pesquisas
                                                                  [obstinadas
As tuas ideias fixas no coração de chumbo nos
                                                              [lábios virgens
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A semelhança dos olhares consentidos com os
                                                [olhares conquistados
A confusão dos corpos das fadigas dos ardores
A imitação das palavras das atitudes das ideias
Os vícios as virtudes tão imperfeitos

O amor é o homem inacabado.



paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977






01 julho 2019

octavio paz / a ponte



Entre instante e instante,
entre eu sou e tu és,
a palavra ponte.

Entras em ti mesma
ao entrar nela:
como um anel
o mundo fecha-se.

De uma margem à outra
há sempre um corpo que se estende,
um arco-íris.

Eu dormirei sob os seus arcos.


octavio paz
antologia poética
salamandra (1958-1961)
trad. luís pignatelli
publicações dom quixote
1984







30 junho 2019

carlos edmundo ory / elegia da minha mão



Olho a minha mão: é antiga
como uma planta viva
como uma gota última
de mármore
Olho a minha própria mão distribuída
pelos sítios mais tristes
… nas ocas madeiras do olvido
mão que um pouco de poalha de primeva
luz secou
Minha mão como uma
decepada mão sobre a terra
como uma obscura mão
de ninguém… de outro homem
não minha… de um louco
que a abandonou naquela mesa
… de um morto bem morto
e a quem falta a mão… ou de um homem muito novo
que a deixou esquecida sobre um corpo
de mulher



carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & alvim
1997







29 junho 2019

josé pascoal / eco



Sentes uma vontade terrível de gritar
De maneira que o eco seja ouvido
Dentro de ti.



josé pascoal
ponto infinito
editorial minerva
2018







28 junho 2019

josé saramago / opção



Antes arder ao vento como um archote
Num deserto de sombras e de medos
Que ser dócil rima do teu mote,
Um morrão de cigarro nos teus dedos.



josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018