A poesia, não acredito que seja esse estado nervoso
tão doente e agitado. Alguns poetas parece que lhes arrancam os dentes ou
deliram numa meditação assombrosa com coisas que nos descrevem o amor e a
morte, mas não sabemos se se lhes parecem. A poesia, vou dizer-vos o que é: eu
tinha uma avó velhíssima, de quase cem anos, que perdera já a memória do
presente. Não reconhecia as filhas, que a não deixavam nunca só e a serviam
continuamente. Não reconhecia os lugares da casa, a porta chapeada de zinco que
abria para o caminho, a outra porta pequena que abria para o quinteiro. Mas, às
vezes (eu fixo-me numa ou duas em que assisti a isso), ficava atenta à chuva
que caía, e ordenava, levantando a mão tão branca e ociosa, ela que trabalhara
tanto a amassar a farinha e carregara tantas abadas de legumes e de feijão, e
carregara ao peito os filhos também. Ela disse, olhando pela janela a eira
inundada: «Vem ali o teu pai e não tem casaco. Leva-lhe um casaco para que a
chuva o não molhe.» Era uma cena que ela reproduzia fielmente passados mais de
quarenta anos, e isso era poesia.
A melhor impressão que a poesia nos pode dar é
esta: ficar de coração vagabundo, deixando a vareja estalar na janela as asas
grossas, e não dar por isso, como um cão surdo.
agustina
bessa-luís
dicionário
imperfeito
guimarães editores
2008