28 março 2019

isabel meyreles / todos os poetas fazem versos




Todos os poetas fazem versos.
Não eu.
A minha máquina de fabricar palavras
utiliza um alfabeto protoplásmico
que reproduz a tua imagem
incansavelmente
assim eu digo
é tempo que tu partas
e me deixes fazer poemas
como toda gente.



isabel meyreles
poesia
o rosto deserto 1966
tradução de natália correia
quasi
2004






27 março 2019

josé miguel silva / mudar de casa



Para a Renata Botelho



É bom mudar de casa, de janela,
arrumar de outra maneira as ilusões,
tratar de coisas parvas como tintas
e sofás, pôr ordem entre os livros
e a vida, simular a liberdade.

Parece-nos possível voltar a acreditar
na mão que nos estende um pé de salsa,
na pechincha da beleza quando passa
no poente da razão.

Apetece cometer uma loucura,
comprar um telescópio, decorar
o canto nono dos Lusíadas,
subir uma escada do avesso,
pensar que nunca mais teremos frio.


josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014






26 março 2019

charles bukowski / vitória




as promessas que fizemos
honramo-las
e
quando formos cercados
pelos cães das horas
nada
nos poderá ser confiscado
a não ser
as nossas vidas.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018







25 março 2019

léo ferré / a desordem é a ordem menos o poder




[…]

A desordem é a ordem menos o poder!

Já não há nada

Sou um preto branco que come graxa
Porque se chateia de ser branco, este preto,
Fartou-se que lhe dissessem: «Branco de merda!»

Em Marselha, a sardinha que entope o porto
Estava recheada de heroína
E os homens-rãs não regressaram…
Libertai as sardinhas
E acabam-se os peixeiros!

Se soubesses o que eu sei
Apontavam-te o dedo na rua
Mais vale então que nada saibas
Assim, ao menos, ficas numa boa, anónimo, Cidadão!

Tens direito, Cidadão, ao mínimo decente
À publicidade das enzimas e do charme
Ao tráfico de dólares e aos traficantes de armas
Que arrastam os jornais na lama e no sangue

[…]


léo ferré
il n´y a plus rien / já não há nada
trad. antónio ferreira, luísa mariante e maria paiva
ler devagar
2017








24 março 2019

ricardo reis / cada um cumpre o destino que lhe cumpre.




Cada um cumpre o destino que lhe cumpre.
E deseja o destino que deseja;
                Nem cumpre o que deseja,
                Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
                Que a Sorte nos fez postos
                Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
                Cumpramos o que somos.
                Nada mais nos é dado.

29-7-1923




fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946







23 março 2019

emily dickinson / à luz da luz que parte




À luz da luz que parte
Vemos melhor, de facto,
Que à do pavio que fica.
Há algo na partida
Que a visão clarifica
E os raios aviva.



emily dickinson
duzentos poemas
trad. ana luísa amaral
relógio d´água
2014







22 março 2019

josé saramago / regra




Tão pouco damos quando apenas muito
De nós na cama ou na mesa pomos:
Há que dar sem medida, como o sol,
Imagem rigorosa do que somos.


josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018














21 março 2019

josé de almada negreiros / se é dever dizer o que




Se é dever dizer o que
sem mestre aprendi da
vida digo:
a natureza tem tudo
mas cada coisa de
sua vez.
É simultânea como o
conhecimento:
sabe-se bem uma coisa
por causa de várias
que se sabem mal.
E tive paz quando
soube que antigos
me tinham deixado
isto mesmo.



josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017








20 março 2019

federico garcia lorca / o silêncio



Ouve, meu filho, o silêncio.
É um silêncio ondulado,
um silêncio
donde resvalam ecos e vales,
e que inclina a fronte
para o chão.



federico garcia lorca
poemas
trad. de eugènio de andrade
assírio & alvim
2013









19 março 2019

steve klepetar / o filho da bebedora de café




Ele trabalha à sombra, arrastando
uma enxada à volta de um canteiro de lírios

enquanto ela beberrica com o coração desfeito,
desejando ser uma rã

aferrando-se à lama, o corpo
verde escondido nas ervas molhadas



steve klepetar
o filho da bebedora de café
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018







18 março 2019

julio martínez mesanza / os sonhos do guerreiro




Se à meia-noite te desperto, amada,
é por ter visto sombras doutro tempo.
Deves beijar-me então e escudar-me
sem perguntar por que me treme a boca
nem de onde este sangue que me suja
ou este terror imenso dimanam.
Prescreve a vitória, não a lembrança
da primeira ferida que nos culpa.



julio martínez mesanza
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998







17 março 2019

alberto caeiro / como um grande borrão de fogo sujo



XXXVII

Como um grande borrão de fogo sujo
O sol-posto demora-se nas nuvens que ficam.
Vem um silvo vago de longe na tarde muito calma.
Deve ser dum comboio longínquo.


Neste momento vem-me uma vaga saudade
E um vago desejo plácido
Que aparece e desaparece.


Também às vezes, à flor dos ribeiros
Formam-se bolhas na água
Que nascem e se desmancham.
E não têm sentido nenhum
Salvo serem bolhas de água
Que nascem e se desmancham.

s.d.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946






16 março 2019

eugénio de andrade / matéria solar


  
39

Nesses lugares,
nesses lugares onde o ar
perde a mão,
os meus amigos começam a morrer.

Falar tornou-se insuportável.
Falar dessa luz queimada.
Deserta.

Que fazer desta boca,
do olhar,
tão perto outrora de ser música?



eugénio de andrade
matéria solar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000