02 janeiro 2019

carlos de oliveira / praias






               Dorme, flutua numa espécie de lago. A respiração dos seios empurra contra as paredes do quarto, em ondas lentas, o meu corpo afogado. Não consigo dormir.

                Esperarei toda a noite nessas praias de cal, desertas, verticais.



carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998








01 janeiro 2019

charles bukowski / que podes fazer?




há sempre alguém que nos corte
a madeira,
que fale de
Deus,
há sempre alguém
que nos mate a carne,
que desentupa a sanita,
há sempre alguém para te
enterrar,
há sempre animais com
olhos lindos,
e há sempre homens
como o Stanley,
inclinados sobre mim
e dizendo numa voz doce:
«sabias que o Saroyan
no fim de carreira
tinha pessoas
a escrever por ele e que ele
lhes dava vinte e cinco
por cento?»
isto era para me fazer sentir
original,
para me fazer sentir bem por ser um escritor
faminto quando as rejeições
chegavam em números recorde.
 não me fez sentir
melhor.

há sempre alguém ou algo
que faz
com que te sintas pior.

há sempre o cão morto
na auto-estrada.
há sempre um nevoeiro cheio
de lâminas
afiadas.

há sempre Cristo bêbado
na taberna com unhas
sujas.




charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018








31 dezembro 2018

mário-henrique leiria / cocktail “canadian club”




I

2/3 de Whisky “Canadian Club”
1/3 de Vermouth Italiano
Algumas gotas de “Bitter Angustura”

Beba à alegria que passa
E esqueça o pesar passado
Quem muito pensa na desgraça
Acabará desgraçado



mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018








30 dezembro 2018

eugénio de andrade / ainda sobre a pureza




                Não gostaria de insistir, mas a beleza dos jovens que se amam é melancólica. Eles não sabem ainda que o desejo da morte é o mais perverso, que só uma coisa os tornaria puros: roubar o fogo e incendiar a cidade.



eugénio de andrade
vertentes do olhar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000














29 dezembro 2018

daniel faria / explicação da distância




Mesmo que o vagar me aproximasse
Do que és
E cada dia me entregasse a outro
Dia
E a encruzilhada se desamarrasse
Em minhas mãos



daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998









28 dezembro 2018

joaquim manuel magalhães / inverno em vila real




Inverno em Vila Real. O nevão
cobria a rua do liceu.
Uma luva de cabedal amodorrado
no tampo, o vapor do alento
liga-nos à toada de um remoinho.
O meu tumulto ensombra-te.

Um pombo protegido no beiral,
a cabeça na plumagem de procela.
Tu calado, eu afeito ao silêncio, delineava-se
no papelão do compêndio uma letra
do nosso nome em conjunto,
única sílaba fora de alfabeto algum.
Que bem tão mal na confeitaria, sem o padrão ainda,
se convinha, se faltava à aula, na sediciosa ocasião
de um inaugural amor.

O foro furtivo já desagregava.
Nem te projectaria sequer
na luta em sobressalto do meu rumo.
Porém, sempre que falarem em neve
e o que for teu vier pela avenida
algo do desaparecimento, quem sabe, te recordará.




joaquim manuel magalhães
para comigo
segredo, aluvião
relógio d´água
2018






27 dezembro 2018

pat boran / mudança



                        em memória de Michael Hartnett



O calendário da secretária nas últimas folhas.
No abajur uma aranha minúscula tece
um manto de inverno.
O céu é uma única nuvem
mais carregada contudo para oeste.
O crânio de um ninho de andorinha
sorri na caleira.



pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018







26 dezembro 2018

leonard cohen / o amor é um fogo




O amor é um fogo
Queima-nos a todos
Desfigura-nos a todos
É a desculpa do mundo
para ser tão feio




leonard cohen
poemas e canções
a energia dos escravos
tradução margarida vale de gato e manuel alberto
relógio d´água
1999








25 dezembro 2018

elio pecora / desde sempre abomino as armas,




Desde sempre abomino as armas,
não sei se por soberba ou se por medo,
e quanto aos cavaleiros
prefiro os cavalos.
Amo, sim, o amor
e continuo a procurá-lo
blasfemando e sofrendo,
como se não soubesse
que estou em servidão.



elio pecora
poemas escolhidos
recinto de amor (1992)
tradução de simoneta neto
quasi
2008







24 dezembro 2018

paul éluard / onde é que eu ia?




Faz-se tarde o céu abandona o quarto
Esta noite vou vender as minhas cabras
Caminho atrás de um rebanho
De claridades delicadas
As árvores que me guiam
Fecham-se
Ficam ainda mais seguras
Hoje vou construir uma noite excepcional
A minha noite
Informe como o sol
Toda em colinas redondas sob mãos camponesas
Toda em perfeição em esquecimento de mim próprio

A dançarina imóvel e o peso das suas pernas
Se eu agora a fosse beijar
Suas frívolas cúmplices giram em torno dela
Ondulam alto nas linhas do candelabro
Marcarei de negro o soalho e o tecto
De negro e de repouso de ausência de felicidade
Entre palma e pupila a multidão do prazer
Até no sono se mantém inteira

Esta noite acenderei uma fogueira na neve



paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977







23 dezembro 2018

alberto caeiro / pouco me importa.




Pouco me importa.
Pouco me importa o quê? Não sei: pouco me importa.

24-10-1917




alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas de alberto caeiro, fernando pessoa
àtica
1946

22 dezembro 2018

fernando echevarría / na aldeia




Na aldeia, os anjos quase que ficam sendo
lugar de paração. Por onde as árvores
só desenvolvem o tempo
na poeira das quelhas sem idade.
O estio mensura-lhes o alento.
E a secura estende-se imutável
pela atenção de ver como o silêncio
isola cada ruído na sua eternidade.
Mas é nos adros, quando o calor o eixo
imobiliza da tarde,
que o anjo das aldeias nos aparece aberto
respeito onde o azul quase que range.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998






21 dezembro 2018

joão vasco coelho / discussão




Agora vejo,
mais nítido que o zero da régua,
os sábados
os domingos de pedra,
assim silenciosos
nas alturas.

Vejo
como o tempo se demora,
em movimentos mínimos,
nas vozes que farejam defeitos.

Agora vejo
o grão adverso,
o dente miúdo lavradio,
dos amores que se trancam em casa,
sem pele alguma,
a discutir viennettas.




joão vasco coelho
eufeme
magazine de poesia
n.º 8 julho/setembro 2018