Foi plo retrovisor que te vi. Mal entraste
naquele banco de trás
tinha mudado a minha vida. O mundo
parecia pertencer-te enquanto me fugia:
horas e horas atrás de um volante,
o olhar embaciado, os fumos desse verão,
tudo se ia afastando, misturado
com a névoa das insónias e, porém,
retendo aquele pedido, a tua voz
tão forrada de lágrimas.
Toda a minha vida era um poço de sangue
quase a explodir à luz do lusco-fusco – um sonho
a convidar-me, a desejar ser escrito
no meu diário íntimo.
Não me satisfizera o teu quartinho kitsch
e um dia combinámos um pequeno-almoço,
mas eu sabia apenas seguir-te à distância
de esquina em esquina, como se os teus passos
fossem deitando fogo a todas as memórias,
ao próprio coração. Preso àquelas semanas,
imaginei uma saída,
um acto redentor, um gesto heróico: um tiro
solitário? Alguém,
era preciso alguém que herdasse aquele amor,
que empunhasse uma arma e disparasse
anos e anos mais tarde – estes versos
são rajadas de balas a atingir-nos.
fernando pinto do amaral
seis projecções e uma despedida
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000