26 agosto 2017

fiama hasse pais brandão / na terra dói



Na Terra dói
partilhar a curta eternidade,
e só no Eterno ignoto
o tempo é todo teu,
para poderes estar só.




fiama hasse pais brandão
entre os âmagos (1983-1987)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017





25 agosto 2017

jorge de sena / fidelidade




Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
com outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?

Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos se voltassem.



jorge de sena
fidelidade  (1958)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




24 agosto 2017

rui knopfli / despedida



Tudo entre nós foi dito.
Estamos cansados e tristes
neste Outono de folhas pairando
e caindo.
Entre nós as palavras colocam um mundo
de silêncio e vazio estéril.
Os próprios sonhos se encheram de neblinas
e o tempo os amarelece.
Outono decisivo de folhas secas
e bancos abandonados de cimento frio,
onde não cantam aves
e o vento desce em brandos rodopios.
Apenas uma vaga angústia presente,
uma saudade sem recomeços,
a lembrança tépida a gelar como
veios de mármore.
Tudo entre nós foi dito,
olhamos o apodrecer do parque,
o vento, o crepitar leve das folhas
e, sem ressentimentos, dizemos adeus.


rui knopfli
1-líricas
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional-casa da moeda
1982





23 agosto 2017

julio martínez mesanza / tartária




Quando ao meu estéril coração eu volto,
pelas eternas dúvidas assolado,
penso em Tartária, em gélidos desertos,
e uma sombra começa a tomar forma
e uma forma se encarna lentamente,
enquanto me conquista a débil vontade.
Desejo então que o cavaleiro eterno,
a quem perturbam as imensas distâncias,
cheio de sobressalto, se ponha em marcha.



julio martínez mesanza
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998




22 agosto 2017

antónio franco alexandre / a rectidão da água; o crescimento



a rectidão da água; o crescimento
das avenidas, ao anoitecer, sob a nua
vibração dos faróis;

o laço, mesmo, das portas só
entreabertas, onde a luz
silenciosa se demora;

são memórias, decerto, de um anterior
esquecimento, uma inocente
fadiga das coisas,

como os corpos calados, abandonados
na véspera da guerra, o teu
jeito para

o desalinho branco das palavras,
altas as
asas de nuvens no clarão do céu

em vão rigor abrindo
o destinado enigma: assim
desconhecer-te cada dia mais

ausente de recados e colheitas,
em assustado bosque, em sombra
clareira,

ao risco dos rios frívolos descendo
seixos polidos, desinscritos,
imóveis movendo

a luz do dia;
a margem recortada, aonde vivem
ausentes e seguros, os luminosos

animais do inverno;
assim são na verdade os muros claros;
assim respira o tempo, a terra intensa.


antónio franco alexandre
poemas
a pequena face
assírio & alvim
1996







21 agosto 2017

josé gomes ferreira / e ficámos para sempre nos olhos das aves




X
E ficámos para sempre nos olhos das aves
naquela noite em que os corações das flores
bateram no chão das nossas sombras.

Mas eras tu de facto que ias a meu lado?

Ou o meu sonho de ti
num corpo aproveitado?



josé gomes ferreira
gomes leal 1948
poesia III
portugália
1971





20 agosto 2017

álvaro de campos / não ter emoções, não ter desejos, não ter vontades,



Não ter emoções, não ter desejos, não ter vontades,
Mas ser apenas, no ar sensível das coisas
Uma consciência abstracta com asas de pensamento,
Não ser desonesto nem não desonesto, separado ou junto,
Nem igual a outros, nem diferente dos outros,
Vivê-los em outrem, separar-se deles
Como quem, distraído, se esquece de si...

s.d.



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993





19 agosto 2017

antónio reis / penso se é ainda



Penso se é ainda
a  infância que dura
ao comer em silêncio
a carne no pão

E tu imitas o pai
julgando que apenas
estou a brincar


antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017





18 agosto 2017

fernando pinto do amaral / lisboa-94




Descri  do tempo: a vida arrependeu-se
de todas as promessas, dia a dia
irrompendo e rompendo o infinito
do que chamamos febre, labareda
acesa desde sempre. Neste corpo
há um princípio de alma a respirar
como fogo roubado a outro a fogo
que mais ninguém conhece – ergueu-se a chama
e ondula ainda em cada gesto meu
a decompor-se ao longo de mil gestos
das pessoas autómatas, varrendo
a atmosfera das ruas, o prazer
de repetir retratos entre as curvas
da pálida cidade boquiaberta
em fim de quarta-feira. De improviso
a memória atravessa uma abertura
pelo meio de portas mal fechadas,
caleidoscópio histérico de encontros
em bares e restaurantes sob as luzes
cada vez mais à deriva. O pensamento
dilui-se ao ritmo dos lugares-comuns
no quase inútil mapa dos sorrisos
agora sobrepostos – engrenagens
nocturnas, reticências prolongando
as falas sempre vãs dos vãos amigos,
poeira de mil sonhos dissipados,
melodia espectral, oásis mudo,
palácio em ruínas, coração.



fernando pinto do amaral
o lento apocalipse do sangue
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000




17 agosto 2017

luís miguel nava / agora que de novo




O mar voa nas rochas, como
se a manhã se formasse onde se forma o cuspo eu aproximo-me
dele e arde a pele de que a memória
vem lentamente tomar conta.

Avanço com cuidado, agora que de novo
nas praias o mar solta os cães. O que chamávamos
verão são poços através
dos quais se some a pele pela memória dentro.



luís miguel nava
como alguém disse
contexto editora
1982






16 agosto 2017

manuel francisco t. / vibram as túlipas, os meninos




Vibram as túlipas nos canaviais
Que sabem as tul do que as faz vibrar?
Deus esquece o que dispôs no banco
De mármore do jardim do império

Escreveu a morte renasce muitas vezes
Nada quer dizer as túlipas o brasão
Do silêncio e as estátuas que comandam
A descida às neves, grutas e deuses

Para lá de Belém continuam a nascer
Os meninos que sabem das túlipas
Horóscopos da paixão, pentecoste

De pequenos melros. Deus os ajude
No seu  esquecimento a ao meu menino
O traga bem, o calção de veludo, etc.




manuel francisco t.
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990







15 agosto 2017

gil t. sousa / reviver



regressar
para que um tempo suspenso
possa tocar de novo as mãos
que tudo guardaram

na água parada
a educação das pedras erguidas
declamadas em margem

nas árvores repetidas
resgatar os olhos de então




gil t. sousa





14 agosto 2017

mário cesariny / rua 1.º de dezembro




À hora X, no Café Portugal
à mesa Z, é sempre a mesma cena:
uma toupeira erga a mãozinha e acena…
dois picapaus querelam, muito entusiasmados:
que a dita dura dura que não dura
a dita dita dura – dura desdita!
Um pássaro cantor diz que isto assim é pena
e um senhor avestruz engole ovos estrelados




mário cesariny
nobilíssima visão
assírio & alvim
1991