18 agosto 2017

fernando pinto do amaral / lisboa-94




Descri  do tempo: a vida arrependeu-se
de todas as promessas, dia a dia
irrompendo e rompendo o infinito
do que chamamos febre, labareda
acesa desde sempre. Neste corpo
há um princípio de alma a respirar
como fogo roubado a outro a fogo
que mais ninguém conhece – ergueu-se a chama
e ondula ainda em cada gesto meu
a decompor-se ao longo de mil gestos
das pessoas autómatas, varrendo
a atmosfera das ruas, o prazer
de repetir retratos entre as curvas
da pálida cidade boquiaberta
em fim de quarta-feira. De improviso
a memória atravessa uma abertura
pelo meio de portas mal fechadas,
caleidoscópio histérico de encontros
em bares e restaurantes sob as luzes
cada vez mais à deriva. O pensamento
dilui-se ao ritmo dos lugares-comuns
no quase inútil mapa dos sorrisos
agora sobrepostos – engrenagens
nocturnas, reticências prolongando
as falas sempre vãs dos vãos amigos,
poeira de mil sonhos dissipados,
melodia espectral, oásis mudo,
palácio em ruínas, coração.



fernando pinto do amaral
o lento apocalipse do sangue
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000




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