Arte dos dias arte das noites
A balança das feridas que se chama Perdoa
Balança vermelha e sensível ao peso de um voo de ave
Quando as amazonas de gola de neve de mãos vazias
Empurram os seus carros de vapor por cima dos prados
Essa balança incessantemente enlouquecida eu a vejo
Vejo a íbis com belas maneiras que regressa do tanque laçado no meu
coração
As rodas do sonho enfeitiçam os esplêndidos trilhos
Que se levantam muito alto sobre as conchas dos seus vestidos
E o pasmo salta daqui dali por sobre o mar
Parte minha querida aurora não esqueças nada da minha vida
Toma estas rosas que trepam no poço dos espelhos
Toma as palpitações de todas as pestanas
Toma até mesmo os fios eu sustêm os passos dos funâmbulos e das gotas
de água
Arte dos dias arte das noites
Estou à janela muito longe numa cidade cheia de pavor
Lá fora homens de cartola seguem-se a intervalos regulares
Semelhantes às chuvas que eu amava
Quando precisamente o tempo estava tão bom
«Na raiva de Deus» é o nome de um cabaré onde eu ontem entrei
Está escrito na frontaria branca em letras mais pálidas
Mas as mulheres-marinheiros que deslizam por detrás das vidraças
São demasiado felizes para serem medrosas
Aqui jamais corpos sempre o assassinato sem provas
Jamais o céu sempre o silêncio
Jamais a liberdade a não ser pela liberdade.
andré breton
«Non-lieu», Le Revolver à cheveux
blancs (1932)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras 165
2003