10 novembro 2016

wallace stevens / o vento muda



É assim que muda o vento:
Como os pensamentos de um velho humano,
Que pensa ainda ardentemente,
Desesperadamente.
O vento muda assim:
Como uma humana sem ilusões,
Que sente ainda coisas irracionais dentro de si.
O vento muda assim:
Como humanos chegando irritadamente.
É assim que muda o vento:
Como um humano, pesado, pesado,
Que quer lá saber.


wallace stevens
harmónio
trad. jorge fazenda lourenço
relógio d´água
2006



09 novembro 2016

julio cortázar / instruções para dar corda ao relógio



Lá bem no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, com dois dedos na roda da corda, suavemente faça-a rodar. Um outro tempo começa, perdem as árvores as folhas, os barcos voam, como um leque enche-se o tempo de si mesmo, dele brotam o ar, a brisa da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.

Quer mais alguma coisa? Aperte-o ao pulso, deixe-o correr em liberdade. Imite-o sôfrego. O medo enferruja as rodas, tudo o que se poderia alcançar e foi esquecido vai correr as veias do relógio, grangrenando o frio sangue dos seus pequenos rubis. E lá bem no fundo está a morte se não corrermos e chegarmos antes para compreender que já não interessa nada.



júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973





08 novembro 2016

maria azenha / hóspedes da névoa







Que mãos são estas que retiram do solo
uma infinita tristeza?
Que sombras confere a luz das estrelas?
Que vozes de água vertem as lágrimas
desta mulher jovem?
São estes os destroços da névoa?

Tudo tão perto.
Tudo tão cego.

Corpos transparentes e submersos
feitos de entrega.



maria azenha
a casa de ler no escuro
editora urutau
2016




07 novembro 2016

elena bono / os cantos da montanha



Só quem todos os dias vai morrer
pode cantar assim.
Era como cantariam
As torrentes
as grandes ervas bravas
a montanha.
O vosso coração continha udo
dentro de si:
ervas, águas, montanha,
humano coração
maior que a morte.


elena bono
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
trad. jorge de sena
assírio & alvim
2001



06 novembro 2016

álvaro de campos / aviso por causa da moral



Quando o público soube que os estudantes de Lisboa, nos intervalos de dizer obscenidades às senhoras que passam, estavam empenhados em moralizar toda a gente, teve uma exclamação de impaciência. Sim — exactamente a exclamação que acaba de escapar ao leitor...

Ser novo é não ser velho. Ser velho é ter opiniões. Ser novo é não querer saber de opiniões para nada. Ser novo é deixar os outros ir em paz para o Diabo com as opiniões que têm, boas ou más — boas ou más, que a gente nunca sabe com quais é que vai para o Diabo.

Os moços da vida das escolas intrometem-se com os escritores que não passam pela mesma razão porque se intrometem com as senhoras que passam. Se não sabem a razão antes de lha dizer, também a não saberiam depois. Se a pudessem saber, não se intrometeriam nem com as senhoras nem com os escritores.

Bolas para a gente ter que aturar isto! Ó meninos: estudem, divirtam-se e calem-se. Estudem ciências, se estudam ciências; estudem artes, se estudam artes; estudem letras, se estudam letras. Divirtam-se com mulheres, se gostam de mulheres; divirtam-se de outra maneira, se preferem outra. Tudo está certo, porque não passa do corpo de quem se diverte.

Mas quanto ao resto, calem-se. Calem-se o mais silenciosamente possível.

Porque há só duas maneiras de se ter razão. Uma é calar-se, que é a que convém aos novos. A outra é contradizer-se, mas só alguém de mais idade a pode cometer.

Tudo mais é uma grande maçada para quem está presente por acaso. E a sociedade em que nascemos é o lugar onde mais por acaso estamos presentes.

Europa , 1923

1922


fernando pessoa
textos de crítica e de intervenção
ática
1980


05 novembro 2016

rui coias / a ordem do mundo



25.

Já não tarda o novíssimo tempo
 – de que se espantarão os crentes e amados
e os que bendito voto juraram,
e os penitentes e noviços e também os bailadores,
e os que em sua arte se consagram, e do futuro duvidam,
e nós todos por ele em desgraça
e com o mistério da palavra corrompido.
Já não tarda o novíssimo tempo –
quando não mais chegar o desejo inspirador,
quando não mais entre mãos nos perdoarmos,
quando soarem em cracóvia os carrilhões,
se nada ofuscar na hora solitária,
quando for mais tarde – for mais tarde.
Então ímpios seremos e impuro há-de ser o nosso anjo,
o outrora das paragens atento e guardião, o
os afectos servindo-se para combalir o nosso ânimo,
galgar as arcadas com o beiço de um símio
e o fedor espalhar nas terras em que jurou deus.
Dizer que prosperámos sob céus férteis – qual acreditará
qual presenciou a terra lisa, e os seus vales, e
o amor dormente que de tão esguio nem vulto leva?
Dizer que fomos ditosos – será em vão,
a quem for dado o pavor insigne, em nada crerá,
e do dia para a noite, sob as construções,
enquanto ao caridoso acorremos, que mais acorrerá,
os acossados pregadores assomarão incólumes
dizendo: «como jurar-te se
jamais de entre nós se alentará o rosto – senhor,
como proclamar-te?».
E os que tomarão o disfarce de apóstolos,
dos nefastos distritos a chegar,
notarão os sinais para declarar o juízo – e
não haverá clemência com os mártires
 – e neles lastrará a pestilência!,
pois sete vezes os sete dementes anjos
devassaram o corpo e sangue do cordeiro.




rui coias
a ordem do mundo
quasi edições
2005




04 novembro 2016

thiago magalhães / espelho





  
#
Vindo das auréolas do vento
Em brumas indecifráveis de olhar misterioso
Num ímpeto amoroso que alucina presenças
Forças que navegam para o último recanto
Arrastado por ganchos sintáticos
Ultrajado perante um coro e ouriços marinhos

Existe aí qualquer coisa de tentador
Qualquer coisa de fome
Digno de fome
Ainda serei esse sopro de imaculadas palavras
A sacudir no tempo
A cena desastrosa de mim mesmo
Arrebentando frutos e moradas


Eu sou uma promessa
E sob minha sombra
Talvez uma alvorada



thiago magalhães
resiliência
editora urutau
2015





03 novembro 2016

mário dionísio / deixais só a bela nuvem



48
Deixais só a bela nuvem
isso que é doce e assustadiço
de claridade desdenhada
isso que queria devolver-vos
à vossa imagem


isso dorme em vós
por vós asfixiado


mário dionísio
poesia completa
le feu qui dort 1967
(o fogo adormecido
versão portuguesa de regina guimarães 2015)
imprensa nacional-casa da moeda
2016



02 novembro 2016

joão habitualmente / rede virtual 2.



Mágoas?
Só de alguns amigos
se terem deixado confundir


pelo tempo à pressa
pelo brilho dos ecrãs
pela borboleta na lâmpada
pelos enredos das redes


antissociais



joão habitualmente
poemas físicos
da frente para a retaguarda
na curva interior da estrada
edições apuro
2016




01 novembro 2016

carla carbatti / condenação







caminho silenciosamente
neste resto de outono
as montanhas longas
espreitam meus sonhos


                    fujo dos nomes
          e das origens
     da palavra que oprime
só sei do tempo que agora nasce suave
                                                      aqui feito ave
       

o corpo fatigado e tímido
vence as ladeiras escarpadas
              em busca de ninguém
                                          de nada

     vejo muitas janelas abertas para receber o dia
                que sentencia um azul profundo
        como se fosse a jura dos seus olhos
              como o mar


                      ah! o mar
eu sigo condenada às coisas líquidas e salgadas
                                        gozo
                             suor
                  e lágrimas



carla carbatti
na cadência do caos
editora urutau
2016









31 outubro 2016

juan-eduardo cirlot / as chaves



As chaves
Desfazem-se quando chegam as ruínas.

O céu quebra as grandes ramagens dos ventos imóveis,
                rói os mosteiros das ervas que sangram.



juan-eduardo cirlot
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985





30 outubro 2016

bernardo soares / diário lúcido



A minha vida, tragédia caída sob a pateada dos anjos e de que só o primeiro acto se representou.

Amigos, nenhum. Só uns conhecidos que julgam que simpatizam comigo e teriam talvez pena se um comboio me passasse por cima e o enterro fosse em dia de chuva.

O prémio natural do meu afastamento da vida foi a incapacidade, que criei nos outros, de sentirem comigo. Em torno a mim há uma auréola de frieza, um halo de gelo que repele os outros. Ainda não consegui não sofrer com a minha solidão. Tão difícil é obter aquela distinção de espírito que permita ao isolamento ser um repouso sem angústia.

Nunca dei crédito à amizade que me mostraram, como o não teria dado ao amor, se mo houvessem mostrado, o que, aliás, seria impossível. Embora nunca tivesse ilusões a respeito daqueles que se diziam meus amigos, consegui sempre sofrer desilusões com eles — tão complexo e subtil é o meu destino de sofrer.

Nunca duvidei que todos me traíssem; e pasmei sempre quando me traíram. Quando chegava o que eu esperava, era sempre inesperado para mim.

Como nunca descobri em mim qualidades que atraíssem alguém, nunca pude acreditar que alguém se sentisse atraído por mim. A opinião seria de uma modéstia estulta, se factos sobre factos — aqueles inesperados factos que eu esperava — a não viessem confirmar sempre.

Nem posso conceber que me estimem por compaixão, porque, embora fisicamente desajeitado e inaceitável, não tenho aquele grau de amarfanhamento orgânico com que entre na órbita da compaixão alheia, nem mesmo aquela simpatia que a atrai quando ela não seja patentemente merecida; e para o que em mim merece piedade, não a pode haver, porque nunca há piedade para os aleijados do espírito. De modo que caí naquele centro de gravidade do desdém alheio, em que não me inclino para a simpatia de ninguém.

Toda a minha vida tem sido querer adaptar-me a isto sem lhe sentir demasiadamente a crueza e a abjecção.

É preciso certa coragem intelectual para um indivíduo reconhecer destemidamente que não passa de um farrapo humano, abono sobre-vivente, louco ainda fora das fronteiras da internabilidade; mas é preciso ainda mais coragem de espírito para, reconhecido isso, criar uma adaptação perfeita ao seu destino, aceitar sem revolta, sem resignação, sem gesto algum, ou esboço de gesto, a maldição orgânica que a Natureza lhe impôs. Querer que não sofra com isso, é querer de mais, porque não cabe no humano o aceitar o mal, vendo-o bem, e chamar-lhe bem; e, aceitando-o como mal, não é possível não sofrer com ele.

Conceber-me de fora foi a minha desgraça — a desgraça para a minha felicidade. Vi-me como os outros me vêem, e passei a desprezar-me não tanto porque reconhecesse em mim uma tal ordem de qualidades que eu por elas merecesse desprezo, mas porque passei a ver-me como os outros me vêem e a sentir um desprezo qualquer que eles por mim sentem. Sofri a humilhação de me conhecer. Como este calvário não tem nobreza, nem ressurreição dias depois, eu não pude senão sofrer com o ignóbil disto.

Compreendi que era impossível a alguém amar-me, a não ser que lhe faltasse de todo o senso estético — e então eu o desprezaria por isso; e que mesmo simpatizar comigo não podia passar de um capricho da indiferença alheia.

Ver claro em nós e em como os outros nos vêem! Ver esta verdade frente a frente! E no fim o grito de Cristo no calvário, quando viu, frente a frente, a sua verdade: Senhor, senhor, porque me abandonaste?

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982



29 outubro 2016

marcel proust / o nosso passado



Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles que perdemos estão cativas em algum ser inferior, num animal, num vegetal, numa coisa inanimada, efectivamente perdidas para nós até ao dia, que para muitos não chega nunca, em que acontece passarmos junto da árvore, ou entrar na posse do objecto que é a sua prisão. Então elas estremecem, chamam por nós e, mal as reconhecemos, quebra-se o encanto. Libertadas para nós, venceram a morte e tornam a viver connosco.

O mesmo acontece com o nosso passado. É trabalho baldado procurarmos evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência são inúteis. Ele está escondido, fora do seu domínio e do seu alcance, em algum objecto material (na sensação que esse objecto material nos daria) de que não suspeitamos. Depende do acaso encontrarmos esse objecto antes de morrermos, ou não encontrarmos.


marcel proust
em busca do tempo perdido
volume I do lado de swann
trad. pedro tamen
relógio d´água
2003