03 janeiro 2016

josé gomes ferreira / comício



Vivam, apenas.

Sejam bons como o sol.
Livres como o vento.
Naturais como as fontes.

Imitem as árvores dos caminhos
que dão flores e frutos
sem complicações.

Mas não queiram convencer os cardos
a transformar os espinhos
em rosas e canções.

E principalmente não pensem na Morte.
Não sofram por causa dos cadáveres
que só são belos
quando se desenham na terra em flores.

Vivam, apenas.
A Morte é para os mortos!


josé gomes ferreira
comício 1934
poesia I
portugália
1972




02 janeiro 2016

franco loi / dióspiros, frutos de deus sobre manteiga de neve,



Dióspiros, frutos de Deus sobre manteiga de neve,
como maçãs-laranjas que um envidraçado ar de pensamentos
baloiça no mar de nuvens dos telhados;
e os peixinhos dourados trocam palavras vãs
presos na turvação do tanque;
e o Bobi, negro cachorro, cão nojento
que lambe merda e vai, como os cegos
que te passam rente com o frio dos mortos;
e, de lazeira, a tartaruga
procura, esgravatando a terra,
a flor do paraíso, a hortênsia, as libélulas
que voam feitas prata para o azedo da uva
ao longo do muro encantado com o sol;
e Meri, horizonte feito de tristeza,
a senhora dos cães, rapariguinha que, do céu
ciosa, roubava o frio de janeiro
às estrelas de pedra sob os dióspiros luarentos;
tu, Meri,
que uma criada deu à luz,
pássaro de esconder, vestido que passava
entre as grades e as glicínias, olhos de sol,
e a sombra do jardim parecia ela,
passarinho,
envelhecida por três metros de nuvens entrevistos
no gelo das vidraças, pensamentos de chaminés,
a fronte que esquecia os chamamentos
ao sonhar-se, o bando de garotos pelas ruas de neve;
Meri das flores,
mestra de garotada,
aparição de amor que, aos dezoito anos,
com teus silêncios e teu frio saber,
num morrer precipitado e ansioso nos deixaste
a nós, fátuos, a nós, fanfarrões e malacabados como tu,
quando, sobre o longínquo alcatrão de uma estrada qualquer,
o céu era mortalha de fingidas nuvens.


franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993




01 janeiro 2016

alberto caeiro / se eu morrer novo



Se eu morrer novo,
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva —
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo (E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão —
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.


alberto caeiro
poemas inconjuntos




31 dezembro 2015

mário cesariny / estado segundo



VII

Dorme meu filho
dezenas de mãos femininas trabalham
a atmosfera
onde os namorados pensam
cartazes simples
um por exemplo
minúsculo crustáceo denominado ciclope
por baixo da pele ou entre os músculos

Dorme meu filho
o amor
será
uma arma esquecida
um pano qualquer como um lenço
sobre o gelo das ruas





mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982




30 dezembro 2015

jorge de sena / aviso de porta de livraria



Não leiam delicados este livro,
sobretudo os heróis do palavrão doméstico,
as ninfas machas, as vestais do puro,
os que andam aos pulinhos num pé só,
com as duas castas mãos uma atrás e outra adiante,
enquanto com a terceira vão tapando a boca
dos que andam com dois pés sem medo das palavras.
E quem de amor não sabe fuja dele:
qualquer amor desde o da carne àquele
que só de si se move, não movido
de prémio vil, mas alto e quase eterno.
De amor e de poesia e de ter pátria
aqui se trata: que a ralé não passe
este limiar sagrado e não se atreva
a encher de ratos este espaço livre
onde se morre em dignidade humana
a dor de haver nascido em Portugal
sem mais remédio que trazê-lo n’alma.

25/1/1972


jorge de sena
exorcismos
poesia III
1978




29 dezembro 2015

harold pinter /paris


A cortina branca às pregas
Ela dá dois passos e volta-se,
A cortina imóvel, a luz
Vacila nos seus olhos.

Os candeeiros são dourados.
A tarde inclina-se, em silêncio.
Ela dança na minha vida.
O dia branco arde.

1975


harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006




28 dezembro 2015

mário de sá-carneiro / álcool


IV

Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longamente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas de auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Descem-me na alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo -
Luto, estrebucho...Em vão! Silvo pra além...

Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de oiro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio de inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eternizo?

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante -
Manhã tão forte que me anoiteceu.


                                       Paris 1913 - maio 4


mário de sá-carneiro
poemas completos
edição fernando cabral martins
assírio & alvim
2001




27 dezembro 2015

herberto helder / o poema


II

A palavra erguia-se como um candelabro,
a voz ardia como um inesperado campo de giestas.
E nós sustínhamos em nossos dois ombros o fulgor
e a tristeza divina. Quando os arbustos
eram bichos iluminando as regiões do céu e ao rés
da terra as pedras cantavam e os mitos davam
a forma das coisas.
Quando colhíamos o espanto nas mãos dolorosas
e em frente ao povo íamos cantando
a fábula e o próprio rosto do milagre.
Quem se assenta à nossa mesa? — dizíamos. — Quem
sobre a mesa coloca um beijo sem peso e sem mácula?

Nada existe que não seja inocente, e o hálito
perpassa à flor dos lábios,
a força da memória deu a alma ao vinho e o imponderável
ao primeiro sorriso. Toda a casa
acaba a noite, cria a auréola
em torno do objecto, enche cada instante
de um poder obscuro.
A delicada taça partia-se nas mãos — sangue:
um sinal, um símbolo. E cantar
era conceber uma estrela, um testemunho da mais alta
loucura. Cantar era uma razão
de morte e de alegria.

Desfaziam-se as pálpebras na jovem carne, na esfera
da luz, ou na ressonância e volúpia
do tempo. E a mão procurava o punhal,
a boca beijava a laje nua. Do braço divino
sumia-se o fogo e o archote corria sobre as águas
ou no coração da sementeira.

E era então o fogo aquilo a que o beijo,
em sua graça, firmemente aspirava.
Nenhuma vida tanto se gastou
que não seja visitada, nenhum deus
é tão grande que se não perca na substância
da sombra. — Uma flor e um grito,
um copo e um breve minuto, ou a aurora
cortando o peito, ou o primeiro respirar
de um pensamento.

Cantar onde a mão nos tocou,
o ombro se acendeu, onde se abriu o desejo.
Cantar na mesa, na árvore
sorvida pelo êxtase.
Cantar sobre o corpo da morte, pedra
a pedra, chama a chama — erguido,
                                                            amado,
                                                                          aprendido.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996




26 dezembro 2015

alberto caeiro / não me importo com as rimas


XIV

Não me importo com as rimas.  Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me 
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior 
Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado, 
E a minha poesia é natural corno o levantar-se vento...


alberto caeiro
o guardador de rebanhos




24 dezembro 2015

padre antónio vieira / sermão de santo antónio


(…)

Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande filósofo qual era a melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe. Se isto vos pregou também Santo Antônio – e foi este um dos benefícios de que vos exortou a dar graças ao Criador – bem vos pudera alegar consigo, que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens. Para fugir dos homens deixou a casa de seus pais e se recolheu a uma religião, onde professasse perpétua clausura. E porque nem aqui o deixavam os que ele tinha deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal. Para fugir e se esconder dos homens mudou o hábito, mudou o nome, e até a si mesmo se mudou, ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota, com que não fosse conhecido nem buscado, antes deixado de todos, como lhe sucedeu com seus próprios irmãos no capítulo geral de Assis. De ali se retirou a fazer vida solitária em um ermo, do qual nunca saíra, se Deus como por força o não manifestara e por fim acabou a vida em outro deserto, tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.
(…)


padre antónio vieira
sermão de santo antónio




23 dezembro 2015

mário dionísio / a casa deserta



Ah nada pior que a casa deserta,
sozinha, sozinha.


O fogão apagado e tudo sem interesse.
O mundo lá longe, para lá da floresta.
E o vento soprando
a chuva caindo
a casa deserta...


Ah nada pior que estes dias e dias,
de cachimbo aceso, com as mãos inertes,
com todas as estradas inteiramente barradas,
ouvindo a floresta.
Com tudo lá longe, na casa deserta,
o vento soprando
e a chuva caindo, na noite caindo...


Há uma cancela que range nos gonzos
um velho cão de guarda que ladra sem motivo
- parece que é gente que vem a entrar...


E é só o vento soprando, soprando
e a chuva caindo...


Mudaram muita vez as folhas da floresta.
Os olhos do homem são olhos de doido.
Fogão apagado, aceso o cachimbo, o mundo lá longe.


E o vento soprando
a chuva caindo
a casa deserta...



mário dionísio
poesia incompleta
publicações europa-américa
1982




22 dezembro 2015

stella zagatto paterniani / requiem



que me escreva cartas de amor com toda a frequência
                                                                                                 possível
mas não a frequência exata que as exima de me surpreender.

que me console e carregue e acolha
sob chuva ou arco-íris
que me pinte
(ar de rua, suor, carinho no enlace dos dedos,
penumbra, dança, insustentável força e meneios)
em cores sem nome

e me beije, que me beije como a única mulher a ti jamais
                                                                                                entregue
conhecida em alma

e teu corpo me sonha.

e que, acima de tudo meu amor
saiba quando calar.


stella zagatto paterniani
natália gregorini
deleites e ladrilhos
editora medita
2013




21 dezembro 2015

miguel torga / combate



Manhã do mundo, que não amanheces!
Tantos poetas a cantar na sombra,
E nenhuma alvorada se anuncia!
Somos nós maus profetas no degredo,
Ou és tu, sol da vida, que tens medo
De iluminar a nossa profecia?



miguel torga
diário VIII
1959