12 abril 2015

alexandre o'neill / a noite ordinária




Que bela noite ordinária que eu passei!


Foi isso há tempos
num quarto defendido pelas pulgas
e vigiado por um vento carteirista
que morava (disseste)
mesmo ali ao pé.

O problema da luz foi o primeiro
(que resolvemos apagando-a)
depois o das torneiras
depois o do marinheiro
que queria entrar nos nossos problemas
depois o teu
o teu problema já na cama
- na cama com mais paciência que encontrei!

Depois
falaste com as torneiras
e eu gritei

Gritei por calculado amor
por brilhantina
por miséria
gritei até pela vitória
(supremo humor!)
dos que se batem contra a Cara-Alegre
gritei p'ra não parar de gritar
gritei «Chapultepec!» e «Oaxaca!»
(nomes por excelência afrodisíacos)
gritei até descobrir
o sítio em que te «escondias»
e então deixei-te gritar...

Quando a noite resignada
abria a última pálpebra
gritei ainda: «Mas é isto o espelho!»

E o dia levantou-se como um cão
(imagem acessível à família...)
da bela noite ordinária
que passei...



alexandre o'neill




11 abril 2015

ricardo reis / vivem em nós, inúmeros



Vivem em nós, inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem eu sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.

  

ricardo reis



10 abril 2015

josé ángel cilleruelo / um senhor de azul



e de barba por fazer. Aproveita
a época baixa, o desdém
de algum jovem desiludido
para tentar, uma vez mais, o amor.
Passeia sem ninguém a acompanhá-lo.
Dorme pouco. Não teve nada e agora,
na cidade, basta estender a mão:
os livros estão todos, corpos sempre
aguardam nesse bar conhecido.
Basta passar a porta que o faça feliz.
Por isso ano atrás de ano se veste
de azul, descuida o seu aspecto, fuma,
e regressa na época baixa
ao lugar afastado. Tal como então.




josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




09 abril 2015

cecília meireles / é preciso não esquecer nada



É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de actos,
a ideia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos connosco, pois o resto não nos pertence.

  

cecilia meireles





08 abril 2015

gonçalo m. tavares / a cabeça



Esta cabeça que aceita tudo como os pobres,
impossível desligá-la, fazer uma muralha,
fechar o sítio de onde sai o que se pensa.
Mas os acontecimentos exteriores ainda assustam,
ou divertem,
      e não consigo parar.
A carne se fosse metal seria melhor,
              mas não é melhor,
nunca é melhor.

  

gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004




07 abril 2015

cesare pavese / a velhice – ou a maturidade…



6 de dezembro de 1938

A velhice – ou a maturidade desce também sobre o mundo exterior. A rígida e transparente noite invernal, que desenha as silhuetas das casas num céu que espere a neve, tocava outrora o coração e abria um mundo de angústia heroica.

Com o tempo, não é necessário movermo-nos no mundo exterior para vivermos a angústia que ele provoca: basta um rápido aceno, saber que existe e existe em nós, e esperar um mundo inteiramente feito de vida interior, que adquiriu agora a novidade e a fecundidade da Natureza. A maturidade é também o seguinte: não procurar fora, mas deixar que fale, com o seu ritmo (que é o único que conta), a vida interior. Daqui em diante, o mundo exterior é material e pobre perante a inesperada e profunda autoridade das recordações. Também o nosso sangue e o nosso corpo amadureceram e ficaram impregnados de espiritualidade, de ritmo largo.

Renasce, como corolário, o antigo pensamento de que o génio é fecundidade ─ oitenta tragédias, vinte romances, trinta óperas, etc. porque o génio não é descobrir um tema exterior e dar-lhe um tratamento literário brilhante, mas conseguir finalmente possuir a nossa própria experiência, o nosso próprio corpo, as nossas próprias recordações, o nosso próprio ritmo ─  e exprimir, exprimir este ritmo, fora dos limites dos enredos, da matéria, na perene fecundidade de um pensamento que, por definição, não tem fundo.

A juventude não tem génio e não é fecunda.


  

cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004




06 abril 2015

maria do rosário pedreira / os amantes aparecem no verão


                                                                  para João Guímarães


Os amantes aparecem no verão, quando os amigos partiram
para o sul à sua procura, deixando um lugar vago
à mesa, um bilhete entalado na porta, as plantas,
o canário, um beijo e um livro emprestado: a memória
das suas biografias incompletas. Os amigos

desaparecem em agosto. Consomem-nos as labaredas do sol
e os amantes que chegam ao fim da tarde
jantam e de manhã ajudam a regar as raízes das avencas
que os amigos confiaram até setembro, quando regressam

trazem saudades e um romance novo debaixo da língua.
Levam um beijo, os vasos, as gaiolas e os amantes
deixam um lugar vago na memória, cabelos na almofada,
uma carta, desculpas, e um livro de cabeceira que os
amigos lêem, pacientes, ocupando o seu lugar à mesa.
  



maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro os livros
gótica
2002





05 abril 2015

miguel torga / ressurreição



Porque a forma das coisas lhe fugia,
O poeta deitou-se e teve sono.
Mais nenhuma ilusão apetecia,
Mais nenhum coração era seu dono.

Cada fruto maduro apodrecia;
Cada ninho morria de abandono;
Nada lutava e nada resistia,
Porque na cor de tudo havia outono.

Só a razão da vida via mais:
Terra, sementes, caules, animais
Descansavam apenas um momento.

E o vencido poeta despertou
Vivo como a certeza dum rebento
Na seiva do poema que sonhou.


miguel torga
libertação
1944




04 abril 2015

josé antónio almeida / monólogo da oliveira



Sobrevivo com uma pinga de água.
Um olhar de quem passa dá e sobra

muitos meses, um sorriso me basta
para reverdecer por longos anos

─ a minha copa foi feita de sonho
e de coisas exactas e tão negras

como pequeno bago de azeitona.
Sinais minúsculos e trespassados

de luz na cerração densa da morte.
Vi romanos, e moiros, e judeus:

o par de mansos olhos do Cordeiro
no meu tronco perdura até ao fim.



josé antónio almeida
rumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010



03 abril 2015

agustina bessa-luís / oliveira, manoel de







  
É um visionário. O seu lado obscuro desconcerta; o seu lado grave converte-se em humor para não ser apercebido. Eu aparento Manoel de Oliveira àqueles poetas saudosos que tivemos; Bernardim foi um deles, outro o cavaleiro Francisco Manuel de Melo. Vou dizer porquê. Porque em todos há mais determinação de fazer obra sua, do que voz do mundo.

*
Como um Bergman ou um Dreyer, ficará para sempre um mistério para os seus contemporâneos. Umas vezes é subtil, outras é sarcástico, raramente é amoroso e abandonado a um sentimento terno. Abandona-se à perfeição e nada mais. Há nele um empenho de contradição, o que faz a força da sua obra tão variada, tão inesperada e tão controversa.



agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008



02 abril 2015

álvaro alves de faria / memória



A sorte que se joga
no dado permanente
na mesa desse jogo
o gesto e a serpente.
No número desse destino
que se quer sempre de frente.
A vida e a morte,
mais que naturalmente.
A veia que se corta
no pedido mais urgente,
o corte dessa gilete
na fuga incontinente.
O que se produz na saliva,
na boca da câmara ardente,
esse espectro mais escuro
do que era evidente.

Não cabe nessa memória
nem passado nem presente.
Só cabe o que não existe,
aquilo que se pressente.



álvaro alves de faria
poesia do mundo/3
edições afrontamento
2001



01 abril 2015

david mourão-ferreira / litania da sombra



Não perguntem nada: nós estamos dentro
do aro de frio, no frio do muro,
tão longe, tão longe da feira do Tempo!
Não perguntem nada.
                                        Nós estamos mudos.

Puseram açaimes nas ventas do vento,
ergueram açudes nas águas do Mar…
Não perguntem nada: nós estamos dentro,
ou fora de tudo.
                             Não perguntem nada.

Tumulto na estrada? O bicho na concha.
Miséria na casa? O farol na montra.
Não perguntem nada, não perguntem nada:
há sempre de gládios
                                      a ríspida sombra.

Não perguntem nada: as razões são longas.
Não perguntem nada: as razões são tristes.
Não perguntem nada: nós estamos contra.
E talvez perdidos.
                                E talvez perdidos.


david mourão-ferreira
memoriam memoriae
1962




31 março 2015

lawrence durrell / je est un autre



Ele é o homem que toma notas,
O observador de chapéu alto preto,
De rosto oculto pela aba:
Em três cidades europeias
Tem-me visto a mim a olhá-lo.

À esquina de uma rua em Buda e depois
Junto aos correios, um vislumbre
Das abas do casaco sumindo-se
Deu esclarecimento igual e, examinado,
O aperto na garganta.

Outra vez, num encontro ao pé do Sena,
Com as águas um chão de estrelas a mexer,
Quando eu cheguei à porta já se fora,
Mas no pavimento, e ainda aceso,
Lá estava um dos seus habituais charutos pretos.

O encontro na escura escadaria
Onde a maré corria escorreita como um tear:
O atraiçoá-la, os beijos dela,
A tudo ele assistiu: quantas vezes
O ouço rir no quarto ao lado.

Observa-me agora trabalhando até tarde
A dar vida a um poema; os olhos
Reflectem a doença de Nerval:
Inútil é nesta velha casa interrogar
Espelhos, a sua máscara impenetrável.



lawrence durrell
leituras
poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d´água
1993