Anos 70, muito jovem ainda.
Partilhávamos os truques da resistência à ditadura fascista, espreitávamos o
mundo pelas brechas do grande muro do fado, de Fátima e do futebol. Fazíamos o
que podíamos para ler as grandes obras da literatura universal e conhecer o
mundo oculto da ideologia. Comíamos croissants inebriados pelo cheiro da tinta
no stencil denunciador dos crimes do fascismo. O pão quente era de madrugada à
porta duma padaria de bairro. Líamos Herberto Helder, íamos ao Cascais Jazz,
ouvíamos a grande música e tínhamos a certeza firme de que este país um dia
seria melhor; limpávamo-nos do bafio das sacristias e livrávamo-nos da culpa da
miséria. Nesse tempo as livrarias eram sítios onde se vendiam livros e os
livros eram mesmo livros, os escritores mesmo escritores, os poetas mesmo
poetas. E, pasme-se, os jornais eram mesmos jornais e os jornalistas eram mesmo jornalistas. Nesse
tempo, Cultura significava instrução, saber e estudo.
Lembro-me da sensação de
modernidade, de ar puro, e do modo tão novo de querermos ser portugueses assim,
sentirmo-nos assim portugueses dessa maneira tão livre e tão criativa que se
entranhava em nós depois de lermos “Os passos em volta”.
Hoje, senti-me privilegiado por
ter sido contemporâneo dum ser tão imenso, de ter podido conhecer a sua
obra no tempo exacto da sua criação e de
poder testemunhar que, por causa dela, a minha geração, e muitas outras, trouxe
a este país homens e mulheres muito melhores, muito mais justos e muito mais
livres, numa maré libertadora que inundará com certeza a nossa eternidade como
povo.
Sim, a grande revolução do século
XX português foi a Poesia de Herberto Helder.