19 março 2015

carlos de oliveira / dunas



Contar os grãos de areia destas dunas é o meu ofício actual. Nunca julguei que fossem tão parecidos, na pequenez imponderável, na cintilação de sal e oiro que me desgasta os olhos. O inventor de jogos meu amigo veio encontrar-me quase cego. Entre a névoa radiosa da praia mal o conheci. Falou com a exactidão de sempre:

«O que lhe falta é um microscópio. Arranje-o depressa, transforme os grãos imperceptíveis em grandes massas orográficas, em astros, e instale-se num deles. Analise os vales, as montanhas, aproveite a energia desse fulgor de vidro esmigalhado para enviar à Terra dados científicos seguros. Escolha depois uma sombra confortável e espere que os astronautas o acordem».



carlos de oliveira
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987




18 março 2015

mário cesariny / autografia



[…]
M.C. - «Queria de ti um país de bondade e de bruma
queria de ti um mar de uma rosa de espuma».
Olha, eu não sei se realmente era isso que eu queria…
não sei… posso tê-lo querido. Posso ter desejado isso
diante de algumas adversidades. O poema também é
verdade, não te vou dizer mais que o que está lá escrito.
É aquilo! Fomos sempre lunáticos, lunáticos do passado
e lunáticos do futuro, não há nenhum país que esteja
quatrocentos anos à espera que um rei reapareça. Não
existe. E depois aparece um borra-botas, é ele!
Trezentos anos depois! Isto é fantástico, isto é bonito
até. É um povo menino, um povo criança, não é?
Mas depois não dá para ser país. Como a Alemanha.
Não dá… E querem que sejamos, querem-nos…
A CEE quer isso. Que sejamos. Que cresçamos.
Há uma coisa muito bonita, eu não sei alemão, e em
inglês também não averiguei, eu tenho ali um
dicionário de marinha, isto é assim, o barco assim,
a vela assado, depois há uma expressão que diz assim:
«dar a volta ao mundo», que é uma operação no alto
mar, mas tu sabes o que isto é? É fazer uma rotação
completa com o barco. Quer dizer, o mundo são eles,
não é o que está fora.
Mas suspeito muito de que isto só cá. Dar a volta ao
mundo é ir a Berlim e a Pequim, não é? Não, não, não.
É dar uma volta a esta cadeira onde eu estou, dei a
Volta ao mundo, porque o mundo sou eu.

M.C - Não, não pode ser dor. Pode-se ter saudade
de um paraíso, sabes? Saudades do inferno é que
ninguém tem. E o Pascoaes disse isso, que a saudade
é uma conjunção, um anel, um anseio de um passado
já desaparecido e de um futuro também, a chegar.
São duas coisas juntas. Porque tornar presente uma
coisa que já passou, já é de alguma maneira futurá-la,
não é?
Tenho ali muitos livros sobre a saudade… agora, é
uma coisa um bocado portuguesa, não é? Porque
somos um país aqui do extremo da Europa, aqui à
beira-mar… não temos muitas hipóteses. Então,
sonhamos, sonhamos muito. Muito sonhadores…
quer dizer… tenho saudades de comer uma grande
lagosta, tenho saudades de quê? De?...
olha, tenho saudades de voar! Ah! Isso tenho!
Porque eu, não sei desde quando, mas quase desde
miúdo, até aos cinquenta anos, todas as noites,
eu já adormecia a sorrir de gozo, porque sonhava
SEMPRE que voava, e era uma coisa tão boa,
tão boa… uiiiii!
E eu orientava-me! E depois não tinha… quer dizer,
não havia paisagem. Era o espaço puro… não se via
nada. Maravilha.
[…]


autografia
um filme de miguel gonçalves mendes
a phala 1#2007
de s. jerónimo a cesariny





17 março 2015

luiza neto jorge / as casas vieram de noite



As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir

Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios

As casas fluem de noite
sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas

Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas



luiza neto jorge
os sítios sitiados
plátano. lisboa
1973 




16 março 2015

jefferson hansen / poema da democracia



já nos vimos
a pensar ter sido
eles
a convocar manifestações
contra dissidentes
de um eles
anterior



jefferson hansen
poesia do mundo
tradução de maria irene ramalho
edições afrontamento
1995





15 março 2015

antónio pedro / ode

     

                ao almada negreiros

  
  Maravilhosa plástica das coisas!
  Tudo no seu lugar, as cores e os olhos
  Lá no lugar de cada coisa, a vê-la
  Com seu aspecto natural e próprio.

  (Tudo para cada um, na variedade
  Dos olhos de quem se admite na paisagem,
  Ou como espectador,
  Ou como actor,
  Ambas as coisas uma, no concerto
  Magnífico do mundo.)

  ...Sem memória, ou com memória a sê-la
  Nos olhos a olhar completamente
  Sem nenhum pensamento reservado:

                      - Olhos dados a cada coisa, ou tida

                      Cada coisa p'los olhos que se deram!...

  Vaivém de tudo e nada, desse nada
  Profético de tudo - e o tudo enorme
  De cada nada afeiçoado e olhado
  À feição de quem olha possuindo
  E possuído, na maravilhosa
  Cópula grande dos Artistas todos...

  Maravilha de ter-se e ter-se dado,
  Em cada olhar olhado,
  E em cada cor e em cada flor mantido,
  Bolindo e vendo
  O sonho de se ir tendo
  Realizado.



antónio pedro
antologia poética
obras clássicas da literatura portuguesa séc. xx
edição de fernando matos oliveira
angelus novus, editora
1998




14 março 2015

álvaro de campos / barrow-on-furness


    I
    Sou vil, sou reles, como toda a gente 
    Não tenho ideais, mas não os tem ninguém. 
    Quem diz que os tem é como eu, mas mente. 
    Quem diz que busca é porque não os tem. 
    É com a imaginação que eu amo o bem.   
    Meu baixo ser porém não mo consente.   
    Passo, fantasma do meu ser presente,  
    Ébrio, por intervalos, de um Além. 

    Como todos não creio no que creio. 
    Talvez possa morrer por esse ideal. 
    Mas, enquanto não morro, falo c leio. 

   Justificar-me?  Sou quem todos são... 
    Modificar-me?  Para meu igual?... 
    - Acaba lá com isso, ó coração! 


    II
    Deuses, forças, almas de ciência ou fé,  
    Eh! Tanta explicação que nada explica!   
    Estou sentado no cais, numa barrica,  
    E não compreendo mais do que de pé. 
    Por que o havia de compreender? 
    Pois sim, mas também por que o não havia?  
    Águia do rio, correndo suja e fria, 
    Eu passo como tu, sem mais valer... 

    Ó universo, novelo emaranhado, 
    Que paciência de dedos de quem pensa  
    Em outras cousa te põe separado? 

    Deixa de ser novelo o que nos fica... 
    A que brincar?  Ao amor?, à indif'rença?   
    Por mim, só me levanto da barrica. 


    III
    Corre, raio de rio, e leva ao mar  
    A minha indiferença subjectiva! 
    Qual "leva ao mar"!  Tua presença esquiva  
    Que tem comigo e com o meu pensar? 
    Lesma de sorte!  Vivo a cavalgar 
    A sombra de um jumento.  A vida viva 
    Vive a dar nomes ao que não se activa, 
    Morre a pôr etiquetas ao grande ar... 

    Escancarado Furness, mais três dias  
    Te, aturarei, pobre engenheiro preso  
    A sucessibilíssimas vistorias... 

    Depois, ir-me-ei embora, eu e o desprezo  
    (E tu irás do mesmo modo que ias),  
    Qualquer, na gare, de cigarro aceso... 

    IV
    Conclusão a sucata! ... Fiz o cálculo, 
    Saiu-me certo, fui elogiado... 
    Meu coração é um enorme estrado 
    Onde se expõe um pequeno animálculo 
    A microscópio de desilusões 
    Findei, prolixo nas minúcias fúteis... 
    Minhas conclusões Dráticas, inúteis... 
    Minhas conclusões teóricas, confusões... 

    Que teorias há para quem sente 
    o cérebro quebrar-se, como um dente 
    Dum pente de mendigo que emigrou? 

    Fecho o caderno dos apontamentos 
    E faço riscos moles e cinzentos 
    Nas costas do envelope do que sou ... 


    V
    Há quanto tempo, Portugal, há quanto 
    Vivemos separados!  Ah, mas a alma,  
    Esta alma incerta, nunca forte ou calma, 
    Não se distrai de ti, nem bem nem tanto. 
    Sonho, histérico oculto, um vão recanto... 
    O rio Furness, que é o que aqui banha, 
    Só ironicamente me acompanha, 
    Que estou parado e ele correndo tanto ... 

    Tanto?  Sim, tanto relativamente... 
    Arre, acabemos com as distinções, 
    As subtilezas, o interstício, o entre, 
    A metafísica das sensações - 

    Acabemos com isto e tudo mais ... 
    Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais!

  

    álvaro de campos




12 março 2015

miguel esteves cardoso / a vida inteira



  Não é fácil ser alma.
  Tem vantagens. Posso entrar na pessoa que quiser e fazê-la falar
  e mover-se como se fosse uma marioneta. Grande coisa.
  Para me vingar, às vezes chamo Robertos às pessoas.

  Actualmente, sou a alma dum rapaz que teve um acidente de mota e está em coma há dois anos.
  O corpo está ligado a uma máquina. Não tem grande interesse.
  O aspecto é simpático mas a postura é parada. De mais para o meu gosto.

  A alma dele, que sou eu, é generosa e boa, apesar do rancor e do medo
  que me minam de alto e baixo. Actualmente está suspensa. Livre de vaguear e não sei que mais.
  Tenho autorização. O pior é que está limitada à partida. E porquê?
  Porque esta pessoa está apaixonada. Apaixonada por uma rapariga de dezanove anos.
  Que não está apaixonada por ele. Ainda por cima. É esta a herança que o rapaz me deixou.

  A rapariga vem vê-lo todas as semanas. Chama-se Eva. Julga-se uma santa.
  Uma santa viria, pelo menos, todos os dias. Fica meia hora, com cara de quem já está no velório.
  Sente-se na obrigação. Caíram da mota porque ela queria passar um vermelho,
  tal era a ganância de chegar a casa para se ver livre dele.

  Chama-se Eva, para todos os efeitos, que não se imaginam quais sejam.
  É loura como o milho. Mas isso é desculpa? Eu acho que não.

  Tecnicamente estou apaixonada por ela, constrangida a amá-la por todos os meios ao meu alcance.
  Para mal dos meus pecados, que são muitos.
  Como alma posso entrar dentro da pessoa que eu quiser.
   A minha missão, até o rapaz recuperar ou morrer e eu poder começar uma vida nova,
  de preferência, regular, é persegui-la e tentar que ela se apaixone por mim.

  O pior é que, cada vez que mudo de corpo, sou um bocadinho contaminada por ele.
  O primado genético não existe - mas tem influência.
  Não posso entrar dentro dum roberto das barracas, malabarista por profissão,
  sem sair dele com uma certa noção de injustiça e de equilíbrio.

  Os cromossomas são como pingos de água do mar. Fazem ferrugem numa alma.
  Que me interessa ser bondosa se habito um indivíduo tão estúpido
  que não sabe pôr em prática essa bondade?
  John Steinbeck é um péssimo escritor mas gosto da história,
   pretensiosamente intitulada "Of Mice and Men", do brutamontes,
  que, sem querer, sufoca um rato com festinhas.

  A minha missão na vida é arranjar um Roberto de quem ela goste.
  O mundo é a minha ostra, como dizia o outro. Posso escolher quem quiser.
  O pior é que não conheço ninguém. Isso e uma certa falta de paciência.

  Eu sou eterna, não esqueçamos. Não sou como os outros homens,
  ou sequer como as outras mulheres, que vêm e vão-se embora,
  durando uma média de 75 anos, geralmente desperdiçados em ninharias.
  Sou alma. É de mim que falam os pensadores.
  Mesmo que não façam ideia do que falam, sabem que sou eu que importo.
  Seja Nietzche ou o padre da aldeia.

  Odeio médicos. Antigamente uma alma passava facilmente de pessoa para pessoa,
  sem se demorar muito. Não havia "máquinas".
  Não havia debates sobre a ética e o "timing" de desligá-las.
  Hoje a vida prolonga-se para além do suportável. Uma alma cansa-se.
  No meu caso, que é moderno porque o meu portador está tecnicamente vivo, é arrasante.

  Tenho uma tarefa espinhosa. A Eva. É certo que tenho direito a descansar
  - a largar o pessoal e a refugiar-me numa substância inerte,
  como uma parede ou a porta dum táxi - mas nunca posso dormir.
  Estou sempre acordada. A Eva dorme nove horas por noite e eu,
  feito mesa de cabeceira ou interruptor da luz, tenho de ficar a olhar para ela.

  Acompanho-a vinte e quatro horas por dia. Seja na forma de pessoa ou de objectos.
  Ela tem uma vida interessante, mas não há interesse
  que aguente vinte e quatro horas de vigilância. É monótono.
  Leva muito tempo a lavar os dentes. Demora uma hora a tomar banho.
  Quando estou em mim - isto é, quando sou só uma alma, etérea e feminina,
   incorporada numa cortina de chuveiro - tanto se me dá como se me deu vê-la nua.
  As almas não são fufas. Quando estou dentro dum homem, isto é,
  quando poderia tirar algum prazer, por muito vago, de vê-la nua,
  ela fecha-me sempre a porta na cara. É assim.

  A minha história é fácil de contar, mas penosa.
  No entanto é curiosa, dada a perdição em que vim a cair
  e à maneira de ser da rapariga que, vamos lá, amo do fundo de mim.


  A Eva gosta de conhecer pessoas mas não gosta de pessoas conhecidas.
  Só lhe interessa o acto de conhecer. Fala com empregados de café,
  malucos que se passeiam à beira do rio - enfim toda a gente.
  Mas não tem amigos. Nem namorados. Não liga à família.
  Não tem planos nem hábitos.
  Não faz nem recebe telefonemas, excepto sob pressão.

  O que dificulta as coisas. Como é que eu vou engatá-la?
  Quanto mais estabelecer uma relação profunda.
  Pergunto eu. Como se alguém respondesse.

  Começo comigo. Sou uma boa alma. Limitada, mas segura de mim.
  O que é que isto quer dizer, não sei.
  Tenho acessos de lirismo. Compreende- se Sou solidamente espiritual.
  Não se poderia esperar outra coisa.
  Os versos, para mim, são flocos de aveia.

  Quando entro num Roberto, mete-me nojo a materialidade das pessoas
   - os baços, as pulsões, os movimentos intestinais.
  O corpo é uma casa temporária porque é rasca
  - se Deus tivesse feito o mundo com mais jeitinho, teria arranjado seres perfeitos,
  merecedores de eternidade, isto é, capazes de acompanhar o andamento da alma.
  Mas as pessoas são básicas. No fundo, até merecem o prazer e sofrimento
  que lhes cabem na vida curta que lhes é concedida.

  Antes de entrar num Roberto, entro num crucifixo que ela traz ao pescoço.
  Como alma sei que Jesus foi apedrejado e não crucificado,
  mas como já disse um padre inglês,
  quem é que pagaria as alterações arquitectónicas nas igrejas, para não falar na joalharia?
  Quem é que gostaria de andar com pedregulhos ao pescoço? A Eva.
  Só que não tenho maneira de lhe fazer saber.

  Ela nunca tira o crucifixo. Isto é, nunca me tira. Quando me chateio, passo para a t-shirt dela.
  Doem-me os braços. Embora uma alam não tenha braços, tem imaginação.
  E só Deus sabe como dói a imaginação.

  E é assim, dolorosamente, que começa a minha história.

  É preciso ver que eles vivem num mundo adormecido. Há muito
  que desapareceram os sinais de vida. As pessoas habituaram-se de tal maneira aos hábitos
  que se esqueceram que havia outras maneiras de fazer as coisas.
  Ninguém desobedece. Ninguém ousa. É o século XXI. É o Ocidente.
  Tudo está realmente resolvido.
  Mas não resta ninguém para se irritar com isso.

  Então a minha primeira tarefa é acordá-la. Só ela. Para que a possibilidade de amor exista.
  Nesse sentido, escolho um rapaz de treze anos,
  igual a outro por quem ela teve uma paixão quando era mais nova.
  Para não me estragar muito. Nem sequer sei como se chama.
  Sei é que, quanto mais velha e completa a pessoa em que me torne, mais eu me desgasto.
  Isto é, mais me afasto do meu portador, estendido no hospital, ligado à máquina, que se chama...
  também não sei. Sei que está apaixonado por ela. Como vêem, já estou a perder-me.
  Não é que seja uma sensação má. Mas é, no mínimo, desleal.

  Situemo-nos. Como ainda há gaivotas, e dado os meus poderes de observação,
   torno-me numa delas. Cheiram mal mas têm um bom ponto de vista e são amadas pelo público.
  Entro na cidade deles. No país morto.
  Voar é como dormir - não tem graça nenhuma depois dos primeiros cinco minutos.




 miguel esteves cardoso
 a phala / 8
 assírio & alvim
 lisboa
 1995



11 março 2015

octavio paz / trabalhos do poeta


XII
Depois de ter cortado todos os braços que se esten-
diam para mim; depois de ter entaipado todas as ja-
nelas e todas as portas; depois  de ter inundado   os
fossos com água envenenada; depois de ter edifica-
do minha casa no rochedo dum Não inacessível aos
afagos  e ao  medo; depois de ter cortado  a  língua e
logo a devorar;  depois de  ter  lançado punhados  de
silêncio  e  monossílabos de desprezo a meus amo-
res; depois de ter esquecido meu nome e o nome da
minha  terra natal; depois de me ter julgado e conde-
nado  a  perpétua  espera  e a solidão perpétua, ouvi
contra as pedras de meu calabouço de silogismos a
investida húmida, terna, insistente, da primavera.



octavio paz
trabalhos do poeta




10 março 2015

r. lino / hoje, as cidades




hoje, as cidades
ficaram um pouco mais longe
e eu não sei porquê
só sei que ficaram mais longe
               as cidades
à beira-mar, havendo por todo o globo
as duas vidas:
eleanor damortis animada de festas e de estios
ou a rapariga que vive
a mil e quinhentos paus por mês
não sabendo no armário
outros sítios de ser festa ou esperar.
(do outro lado da ribeira o velho cão
Guarda o corpo como algas
E compotas de frio às seis da tarde…)
A rapariga do armário
Mata-se na cidade
Do outro lado de ser diferente o mesmo tempo.



r. lino
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987



09 março 2015

pere gimferrer / associo a chuva aos mortos…




Associo a chuva aos mortos. Vem muito lenta,
com os nardos e os tubérculos, com o frio dos lírios
e os grumos pastosos da terra lavrada,
com as nervuras das folhas, as sombras,
com o voo da codorniz e o grito do mocho.
Pela terra dentro, pelo tempo dentro, no coração
do barro, quem sabe deles? Esperam porque é esse
o ciclo da fecundidade. O machado, enterrado,
brilha com a mais viva prata,  com um fogo mineral.
Essa é a lei. A chuva lava os sulcos
de rodas na terra, de tantos carros que passaram,
e passadas de humanos e cavalos. Um bafo cinza e líquido,
uma claridade afogada, como aço escuro e opaco,
sobre a terra empapada. Não ouves estas vozes,
os risos das raparigas num meio-dia de Agosto?
Não vês esta blusa vermelha? Como a raiz,
a mão ainda escava na terra húmida, dedos
como garfos, secos, de árida pele
como papel de embrulho. Não, a chuva não chega
a este reino. Cai muito lentamente, conhece
com profunda piedade o tronco da oliveira
e brune a angulosa aspereza da pedra,
e, na laguna, desbrava as águas pantanosas,
coléricas de fumo, e humedece o covil
da raposa, a lura do coelho e o ninho do rouxinol.
Mas não chega, sob a lama empapada,
sob o terrunho de humildade porosa,
de paciência e de luz, ao mais escuro reino,
ao país de rancor e secura dos mortos,
que ainda alongam mãos hostis, ferruginosas,
dentes carcomidos e sexos erectos e convulsos,
mumificados, e com avidez de unhas e de pó
rasgam a pele. Querem possuir-nos
ou apenas pedem para voltar a ser? Pedem
crispação, tremura e sofrimento?
Pedem acaso a incerteza
diária, sentirem que o desejo os sacode,
a pancada da pânico, a fúria
do domínio, o receio da derrota?
Acaso se atrevem a querer sobreviver?
Como vive a raiz, como vive o tubérculo, como vive
a erva, nunca poderão viver os homens
conciliados com um destino? Não aceitarão o céu
do tempo fecundo e o do regresso à terra?
Por tanta dor que já passou,
pelo instantâneo ardor de tantos corpos,
por tudo o que esta luz de chuva nos recorda
e este sabor da terra recém-molhada,
pela vibração do ar quando a chuva
parou há instantes e um pássaro ergue o voo
num silêncio claro, e por esta cor
do pássaro, indeciso no azul, que gorgeia
quando o céu é mais nítido, pelo sofrer
que recordamos e pelos amores de antes,
e pela humilhada inocência,
e pelos desejos nunca confessados,
por tudo isso: nunca teremos uma palavra?
A chuva entra nos palheiros das velhas casas de lavoura,
a madeira apodrece, abre sulcos de água na terra arável
e nutre os narcisos. É cor de cinza
e, nos vidros das janelas tem a cor das memórias.
Há apenas um tempo. O tempo do homem
e o tempo do animal e da planta
e o tempo da pedra são um só. Este falcão
que agora, fulminante, cai do alto do céu,
sabe onde vai, como a pedra que no fundo da cisterna
vê o seu destino num relâmpago de águas.
Subitamente o vêem, e os anula,
e os possui, e chegam ao resplendor: atingem
a fulguração do ser. Chegam assim
a ser o que são. Fiéis, silenciosos,
como o chaparral queimado pelo sol, dizem que sim,
sabem que é sim, que esta imagem
— o brilho de uma água morta, ou, ao cair da tarde,
um lugar de sombras no coração do outeiro —
é o que são, chama-os, para morrer ali,
e esta morte será um ter vivido,
não uma interrupção, nem sequer uma espera.
Dizem que sim, sentindo que não é para lamentar
nada, que nada têm a esperar, que nada se mutila
porque já tudo existia antes: Viviam
sempre o tempo do lugar de sombras
e o tempo da água morta no fundo do poço.
Quando passamos, de noite, junto ao rumor
que o vento ergue na folhagem dos choupos,
ou, na iluminada glória do meio-dia solar,
recolhemos, num cacho de uvas, a claridade,
ou semicerramos os postigos — o  sol
é um martelo nas ruas desertas — e um corpo
nos fornece um alento cálido de limões,
ou, quando, pela mata, vemos uma pedra vermelha
ou ouvimos um estalar de ramos e de águas
sabemos que tudo será esse único instante?
Acaso esperamos algo mais? Sem memória,
desapossados, o tempo já não nos ofusca
com um espelho sob o sol,
já não nos fere os olhos com luzes de feldspato.
Eu sou o meu ontem e sinto a eminência
do futuro que pulsa em cada gladíolo.
Não nos espia atrás do instante: é o instante.
Não tem o escuro rosto do nosso receio
nem deverá ser-lhe pedida piedade. Não sentíamos,
desde sempre, que o trazíamos connosco? Desejo,
tu, negro escravo com máscara de príncipe,
e tu, princesa branca e cega, paixão
que ris vestida com a claridade dos lírios,
não sentis que o instante é o vosso tempo?
Nada ganhamos, nada perdemos. Os mortos
vivem o tempo eterno e nocturno da névoa,
o instante que é todos os tempos. O tempo
do desejo e da paixão, o tempo de recordar
e o tempo de sonhar. Os vapores da névoa
e uma fumarada como a da lenha verde
informam onde estão os nossos sonhos: longe,
como os relâmpagos numa noite de estio.




pere gimferrer
quinze poetas catalães
trad. egito gonçalves
ed. limiar
1994