05 dezembro 2014

henri michaux / na noite



Na noite
Na noite
Eu uni-me à noite
À noite sem limites
À noite.

Minha, bela, minha.

Noite
Noite de nascimento
Que me enche do meu grito
Das minhas espigas.
Tu que me invades
Que marulhas, marulhas
Que marulhas a toda a volta
E fumegas, és tão densa
E muges
És a noite.
Noite que jaz, noite implacável.
E a sua fanfarra, e a sua praia
A sua praia ao alto, a sua praia em toda a parte
A sua praia bebe, a sua lei é rei, e tudo se enleia sob ela
Sob ela, sob mais fino que um fio
Sob a noite
A Noite.


henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999





04 dezembro 2014

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno


13

debaixo das nuvens e do néon sei que ainda é noite
tu que dormes sou ainda o teu corpo o teu sonho somente
a cada instante existo um pouco mais um pouco menos conforme o teu
                                                                               [ medo a tua coragem
o teu amor o teu erro
ainda olhas para mim ainda vês alguém no lugar feito para lembrança e
                                                                                          [ esquecimento
preciso de ser ríspido e veloz como um animal correndo para a transparência
despede-te da mesquinha certeza o barro frio nas mãos
não grites água! água! ao avistar as paredes a folha

ainda agora começas minúscula letra caída no meio da noite neve
e já te vejo toda vestida de memória orgulhosa da tua crueldade
aclamando a luz a luz quando é noite riscada pelos holofotes das casernas
                                                                                                  [ dos campos
contente da tua alimentação de proteínas talhos e esquartejamentos
e a invenção de um deus à mais certa medida
aqui estás já podes mostrar o mais belo centímetro de corpo
vais a caminho de coisa alguma com o mais belo prémio reservado E este
é um poema de amor a louvável ode à tua chegada

vens atrasada e limpa como compete a uma santidade urbana
falando bom francês para este meu país la sous-france
desta vez nenhum touro mais ou menos agrícola te arrasta para o mar
                                                                                              [ Que fazer
se sem razão nenhuma insisto que tua é a noite
não consigo imaginar o inferno vê-lo contudo é fácil
é esta herança deixada pelos homens Duvido chegues a tempo de salvá-la
vale-te da minha ignorância para sair enquanto é tempo
enquanto é de noite e o teu destino incerto



antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996




03 dezembro 2014

armando silva carvalho / o frio



Tocar com a língua
na cúpula do ar.

Acomodar os víveres
movimentar o vento.

Fazer deste poema
um frigorífico.

Nas prateleiras ácidas
o silêncio (duplo) dos peixes:
o choro terno e tenro
da hortaliça.

Tocar com as palavras
na cápsula do mar.

Incomodar os vivos.
Mexer na carne com dedos
subversivos.

Impor aos homens
esta abundância fria
colhida nos catálogos.

A elegância
dos ovos
em repouso.

Uma mulher serena sonha
com o frio: corre-lhe
pelo corpo o leite desnatado
e fica nos anúncios
pensativa.

No íntimo do corpo
há fendas numeradas
onde o fresco se atreve
a conservar os nervos.

Está na hora
de refrescar a boca.

Donas de casa
e pensadores diários
eis aqui uma demonstração
gratuita do frio.



armando silva carvalho
o comércio dos nervos 1968
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007





02 dezembro 2014

arsenii tarkovskii / sentia-me quente




                                   Sentia-me quente,
Desapertei o colarinho e adormeci,
As trombetas soaram, cavalos a galope, a luz
Batia suave minhas pálpebras, a mãe,
Que voava sobre o caminho, acenando,
Partiu….




arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987





01 dezembro 2014

vittorio sereni / rua scarlatti



Com mais ninguém que tu
é a conversa.
 
Curta entre dois sopros de clamor
segue, toda casas, a rua;
mas de repente abre-a um rasgão
onde irrompem dispersos
garotos e talvez o sol na primavera.
Agora dentro dela parece sempre noite.
Mais adiante é ainda mais escura,
é cinza e fumo a rua.
Mas os rostos os rostos não sei dizer:
sombra  mais sombra de cansaço e raiva.
Daquele sofrimento zomba
um bater de saltos adolescentes,
a repentina rouquidão dum dueto
de ópera numa multidão apressada.

É aqui que te espero.


vittorio sereni
gli strumenti umani
einaudi
torino 1965



(versão de stefano cortese e gil t. sousa)



30 novembro 2014

álvaro de campos / là-bas, je ne sais où...




Véspera de viagem, campainha...
Não me sobreavisem estridentemente!

Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho
Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro
Do comboio definitivo,
Antes de sentir a partida verdadeira nas goelas do estômago,
Antes de por no estribo um pé
Que nunca aprendeu a emoção sempre que teve que partir.

Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,
Estar ainda um bocado agarrado à velha vida.
Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela?
Que importa? Todo Universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela.

Sabe-me a náusea próxima o cigarro. O comboio já partiu da outra estação...
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir-se de mim,
Minha família abstracta e impossível...
Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida,!
Ficar como um volume rotulado esquecido,
Ao canto de resguardo de passageiros do outro lado da linha.
Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida -
'E esta? Então não houve um tipo que deixou isto aqui?' -

Ficar só a pensar em partir,
Ficar e ter razão,
Ficar e morrer menos...

Vou para o futuro como para um exame difícil.
Se o comboio nunca chegasse e Deus tivesse pena de mim?

Já me vejo na estação até aqui simples metáfora.
Sou uma pessoa perfeitamente apresentável.
Vê-se - dizem - que tenho vivido no estrangeiro.
Os meus modos são de homem educado, evidentemente.
Pego na mala, rejeitando o moço, como a um vício vil.
E a mão com que pego na mala treme-me e a ela.

Partir!
Nunca voltarei.
Nunca voltarei porque nunca se volta.
O lugar a que se volta é sempre outro,
A gare a que se volta é outra.
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.

Partir! Meu Deus, partir! Tenho medo de partir!...


álvaro de campos





29 novembro 2014

paul éluard / no sentido do meu corpo



Todas as árvores com todos os ramos com todas as folhas
A erva na base dos rochedos e as casas amontoadas
Ao longe o mar que os teus olhos banham
Estas imagens de um dia e outro dia
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A transparência dos transeuntes nas ruas do acaso
E as mulheres exaladas pelas tuas pesquisas obstinadas
As tuas ideias fixas no coração de chumbo nos lábios virgens
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A semelhança dos olhares consentidos com os olhares conquistados
A confusão dos corpos das fadigas dos ardores
A imitação das palavras das atitudes das ideias
Os vícios as virtudes tão imperfeitos

O amor é o homem inacabado.


paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977





28 novembro 2014

miguel torga / letreiro



Porque não sei mentir,
Não vos engano:
Nasci subversivo.
A começar por mim – meu principal motivo
De insatisfação  –,
Diante de qualquer adoração,
Ajuízo.
Não me sei conformar.
E saio, antes de entrar,
De cada paraíso.

   

miguel torga
orfeu rebelde
1958




27 novembro 2014

josé gomes ferreira / chove...


maria do rosário pedreira / guarda tu agora



Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi
talvez para sempre - a casa e o cheiro dos livros,
a suave respiração do tempo, palavras, a verdade,
camas desfeitas algures pela manhã,
o abrigo de um corpo agitado no seu sono. Guarda-o

serenamente e sem pressa, como eu nunca soube.
E protege-o de todos os invernos - dos caminhos
de lama e das vozes mais frias. Afaga-lhe
as feridas devagar, com as mãos e os lábios,
para que jamais sangrem. E ouve, de noite,
a sua respiração cálida e ofegante
no compasso dos sonhos, que é onde se esconde
os mais escondidos medos e anseios.

Não deixes nunca que se ouça sozinho no que diz
antes de adormecer. E depois aguarda que,
na escuridão do quarto, seja ele a abraçar-te,
ainda que não te tenha revelado uma só vez que o queria.

Acorda mais cedo e demora-te a olhá-lo à luz azul
que os dias trazem à casa quando são tranquilos.
E nada lhe peças de manhã - as manhãs pertencem-lhe;
deixa-o a regar os vasos na varanda e sai,
atravessa a rua enquanto ainda houver sol. E assim
haverá sempre sol e para sempre o terás,
como para sempre o terei perdido eu, subitamente,
por assim não ter feito.


  

maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro os livros
gótica
2002




26 novembro 2014

fernando pinto do amaral / á chegada do inverno



Nem sempre a vida acolhe ou alimenta
os nomes do passado, o seu abismo
repetido num sonho, na mais lenta
assombração, no mais íntimo sismo

Do que chamamos alma. Não existo
sem essa febre mansa que relembro
enquanto as nuvens cobrem tudo isto
com o frio escuro de um dezembro

Longe de mim, de ti, de qualquer lei
ou juízo a que dêmos um sentido:
o que finjo saber é o que não sei
e as palavras colam-se ao ouvido.

  


fernando pinto do amaral
às cegas
relógio d´ água

1997




25 novembro 2014

sylvia plath / eu quero, eu quero



De boca aberta, o deus recém-nascido
imenso, calvo, embora com cabeça de criança,
gritou pela teta da mãe.
Os vulcões secos calaram e cuspiram,

a areia esfolou o lábio sem leite.
Gritou então pelo sangue paterno
que agitou a vespa, o tubarão e o lobo
e veio engendrar o bico do ganso.

De olhos secos, o inveterado patriarca
ergueu seus homens de pele e osso:
farpas sobre a coroa de fio dourado,
espinhos nas hastes sangrentas da rosa.



sylvia plath
pela água
tradução de maria de lurdes guimarães
assírio & alvim
1990





23 novembro 2014

alberto caeiro / a neve



A NEVE PÔS uma toalha calada sobre tudo.
Não se sente senão o que se passa dentro de casa.
Embrulho-me num cobertor e não penso sequer em pensar.
Sinto um gozo de animal e vagamente penso,
E adormeço sem menos utilidade que todas as acções do mundo.



alberto caeiro