06 setembro 2014

antónio maria lisboa / o amor de arthur rimbaud o mestre do silêncio




Na montanha onde moram as estrelas
bosques que existem há mil anos
de cabelos negros como o luar e a brisa da tarde
quando entra branda entre as pétalas das flores
que se inclinam sobre o morto que dorme
e misteriosamente repete:

"Sur l'onde calme et noire où dorme les étoiles
Un chant mystérieux tombe des astres d'or"
semi-saído da terra com um olho infinito aberto
morto há um ano ao nascer da lua
morto há um dia ao nascer da rosa
morto há um sonho, morto há um gesto
frente ao sopro das árvores da noite
tocou o seio infante numa primavera
e misteriosamente repete:

"O pâle Ophélia! belle comme la neige!
Ciel! Amour! Liberté! Quel rêve, ô pauvre Folle!"
transparente sobre a terra mole de lava de estrela
sobre cabelos idênticos aos dos mortos desolados
morto há mil anos repete:

"La blanche Ophélia flotte comme un grand lys"

o morto misteriosamente diz:

"Il y a une horloge qui ne sonne pas"



antónio maria lisboa
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




05 setembro 2014

josé régio / sucata




I

Fecha esses olhos, fecha-os,
Que a sua luz ofende.
Mas não! arranca-os, deixa-os
Na praça em que se vende
Toda a sucata inútil.
Quiçá os compre um velho poeta fútil.

II

A sua luza ofende, humilha.
Não compartilha
Das pequeninas luzes
Que alumiam os vários alcatruzes
De cada nova nora.
Fecha esses olhos, fecha-os, ou arranca-os, deita-os fora!
Não vês que vão perdendo todo o emprego?
Desfaz-te de eles, ─ fica cego.

III

Na praça em que se vende
Toda a sucata inútil,
Quiçá os compre um velho poeta fútil.
Já nada, a este, ofende.
Servir-lhe-ão
Talvez de claridade,
Talvez de companhia ou diversão.
Coitado! Vive ao pé da Eternidade.




josé régio
cântico suspenso
portugália editora
1968



04 setembro 2014

john ashbery / mas afinal foi a nossa escolha…



4.

Mas afinal foi a nossa escolha que nos incitou aos efeitos da imaginação.
Agora, silenciosamente como quem sobe uma escada, emergimos para a luz
e, ao fazê-lo, privamos o tempo de mais reféns,
Para acabar com a hostilidade que a história há muito tempo iniciou.

Agora, silenciosamente, como quem sobe uma escada, emergimos para a luz,
Mas ela está amortalhada, velada: devemos ter cometido um erro pavoroso.
Para acabar com a hostilidade que a história há muito tempo iniciou
teremos que confiar eternamente, até à perversidade?

Mas ela está amortalhada, velada: devemos ter cometido um erro pavoroso.
Esfregas a testa com uma rosa, recomendando os seus espinhos.
Teremos que confiar eternamente, até à perversidade?
Ao certo, só a noite o sabe; com ela, o segredo está seguro.

Esfregas a testa com uma rosa, recomendando os seus espinhos.
A investigação mostra que as baladas eram produzidas por toda uma sociedade;
ao certo, só a noite o sabe. Com ela, o segredo está seguro:
As pessoas então sabiam o que queriam e como o obter.



john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992




03 setembro 2014

filipe marinheiro / é enquanto as estrelas…




é enquanto as estrelas tocam nas luzes abertas umas nas outras
que o meu corpo se afunda nas bagas de lume pendido
sobre a pele do mar

e cantassem as estrelas em uníssono em cima de um girassol
envelhecido pela poeira inflamável

eu esqueceria que tenho colinas de incêndios nas mãos
mãos que bailam ou cantam…




filipe marinheiro
noutros rostos
chiado editora
2014






02 setembro 2014

alberto caeiro / xxv - as bolas de sabão



As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
Amigas dos olhos como as cousas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser.

Algumas mal se vêem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.



alberto caeiro






01 setembro 2014

carlos eurico da costa / a cidade de palaguin




            Será pelo simples facto de uma criança loira
  desfilar por um corredor sombrio - olhos brilhantes
  a ver um rio na sua mais alta profundidade;
  será pelo facto de haver uma espinha dorsal
  de montanhas arroxeadas, assombradas à noite
  pelo meu fantasma nu a vaguear
  em procura do grande silêncio que eu,
  simultânea e homogeneamente a cidade de Palaguin,
  a biciclete de pano verde, o planeta Uclon
  e Tu meu supremo mito,
  flor molhada de lágrimas violentas,
  acaricio duas silhuetas esguias e grito.


            porque beijo na rua a mulher que quero,
  porque passo para assustar, a todas as horas,
  rodeado pelo meu séquito de loucos


            porque a minha fúria é única e eu o único ser vivo
  em paisagem povoada de animais indefinidos,
  brancos e vorazes - para me divertirem
  correm velozmente até um bloco de granito negro
  onde se esfacelam, transformando-se numa massa informe
  a crescer e a acumular-se


            espero a aniquilação,
  trespassa-me de lado a lado um estilete de vidro
  paralelo ao solo


            aguardo há vários minutos,
  porque os milénios passaram
  e já percorri o cosmos de lés-a-lés;
  porque o tempo foi uma bola de areia vinda comigo,
  envolta em algas e garrafas de Rheno


            em todas as noites nas sebes das linhas férreas
  um comboio trucida-me
  no momento em que te consigo nos meus braços
  e te encontro por todos os lados, à minha volta,
  no centro da luz que irradio,
  possuído


            nas casas altas e brancas surges na única janela
  para me apontares e fugir, olho a rua deserta, grito
  e lanças-te de cem metros para os meus braços,
  durante a queda o teu corpo torna-se amorfo,
  em poalha de neve chegas a meus pés


            olho: na mão esquerda comprimo um aro de estanho
  e junto a ele as formas de animais brancos vão crescendo




carlos eurico da costa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
de perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




31 agosto 2014

henry deluy / nesta última fotografia,



Nesta última fotografia, vais
Buscar água. – Já não virás
Para mim. – Nem mesmo alguns metros,
Nem mesmo diante da porta.

                      *

E eu, eu fico.



henry deluy
primeiras sequências
trad. colectiva Mateus, set. out. de 2000
quetzal editores
2002




30 agosto 2014

fernando lemos / mudançar



Repor
na planta da cor brancura
em pedra solicitada

Reler
por vacilação das sílabas
em escuridão afundada

Rever
por olho areado com águas
a imagem contaminada

Reter
no músculo oxigenado vaso
areal terra aterrada

Resistir
ao cântico suado no temor
a evolução revoltada

Reaver
do padre eterno esquecido
fé febril equivocada

Rematar
pontilhados no voo manual
asa de vazio blindada

Reacordar
quando o tempo do morto é
vício pele reciclada

Recomeçar
linguajar contínua marcha
vivente reinventada.



fernando lemos
cá & lá: poesia: antecedido de teclado universal
in-cm
1985



29 agosto 2014

pedro tamen / os dias


3

Naquele tempo, viver era a melhor coisa do mundo.
Quando nascia o sol todas as pessoas viam
e os homens eram crianças para além dos montes.
Era uma planície, grande como convém a todas as
                                                             planícies
E plana porque tudo estava certo.
Naquele tempo tínhamos sido criados e éramos iguais
                                                   às ervas e às flores.
Tu,
tão perfeita que era impossível não seres,
tão erguida como um riso de andorinha,
tu estavas ao meu lado, naturalmente fresca,
e não havia motivos nem razões porque sabíamos
                                                                  tudo.
A nossa teologia era o beijo da criança mais próxima
e ao deitarmo-nos na terra como folhas da mesma
                                                                 planta,
gratos, reduzidos, conscientes.
Olhando para cima, o céu abria-se e todos os Anjos
                                  vinham sentar-se no rebordo
e riam como nós pequenas gargalhadas.
Eu cantava canções mais belas do que não tendo
                                                            palavras
e ouvias-me em silêncio e de olhos abertos,
                    exactamente como a todos os sons.




pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
s/d




28 agosto 2014

sebastião da gama / céu



Tenho uma sede imensa,
mas não é de água...

Tenho uma sede imensa de beber
os soluços do Sol quando declina,
as carícias azuis do Luar de Agosto,
os tons rosa da Tarde que se fina...

É que eu seria poeta se os bebesse...
Não mais seria o cego de olhos limpos;
esse que viu a água e a não tocou,
pelo estranho pudor da sua boca
que um dia blasfemou.

E, se eu pudesse beber
esses longes de mim que vejo e quero,
em espasmos havia de os mudar
e, num desejo nunca satisfeito,
iria possuir-te, ó Mar!

Havia de cair, num beijo, sobre ti;
despir as minhas vestes de serrano,
tirar de mim aquilo que é humano,
e confundir-me em ti.

Gritem depois, embora, que eu morri;
alegre o Mundo o alívio do meu peso;
- que um dia o sol há-de surgir mais cedo
e o bom menino de olhos azuis,
de quem sou fraco arremedo,
há-de nascer, ó Mar, da nossa noite de Amor!

E tu, Menina que eu chamava,
Menina que eu chamava e encontrei
mas abrasada de amor divino
- tu hás-de ver então que o Céu que idealizas
é o olhar azul desse menino.



sebastião da gama
serra mãe
ed. ática
1996



27 agosto 2014

antónio franco alexandre / seguramos o fósforo…



Seguramos o fósforo, e o infinito cresce
entre os astros pacientes, invisíveis, a
mancha do electrão por sobre a chapa.
Não conhecemos deus, a inexistência. Não
procuramos, alta, a vibração
do tempo. Seguramos o fósforo
e a luz é frágil, parca,
necessária.


antónio franco alexandre
a distância
d. quixote
1969




26 agosto 2014

leopoldo maría panero / pavane pour un enfant défunt



                                      À minha tia Margot


Dir-se-ia que estás ainda na balaustrada da varanda
olhando para ninguém, chorando.
Dir-se-ia que como sempre és ainda visto
que és ainda na terra uma criança defunta.
Dir-se-ia que se arrisca
o poema por alguém
como um disparo de pistola,
na noite, na noite semeada
de olhos desertos, de olhos sós
de monstros. Todos nós somos
crianças mortas, cravadas na balaustrada como por encanto,
na balaustrada frágil da varanda da infância, esperando
como apenas os mortos sabem esperar.
Dir-se-ia que morreste e que és alguém por fim,
um retrato na parede dos mortos,
um retrato de aniversário com velas para os mortos.
Mas não interessam a ninguém as crianças, os mortos,
a ninguém as crianças que viajam sós pelo país dos mortos,
e para quê, perguntas-te, abrir os olhos no país dos cegos, abrir os
olhos hoje,
amanhã, para sempre. Era melhor o Oeste, terras virgens, heróis
nos olhos
de um cinema desesperado, e os deuses que matam os homens
ferozes,
os deuses mais ferozes que os homens
os deuses cruéis da infância, os deuses
da inocente crueldade, pensavas, que se alimentam de cegos
e daqueles que mendigam o seu ser numa sordidez pícara,
se homens houver, homicida. Mas aventura não há, sabe-lo,
mais que por alguém, para alguém, como um poema,
como o arriscar de um voo no ar sem trânsito. É por causa
disso que não há infância neste país deserto. E também
por isso que ninguém poderá jamais suspeitar que conservas essa
beleza demente da infância, esse furor contra o útil do teu
corpo,
e essa mudez nos olhos, essa beleza
apenas vendável ao céu do suicídio, apenas a esses olhos: essa existência.
Mas a vida continua e tu arrastas-te como ela,
a vida continua como a ponte de Eliot2,
como uma ponte de mortos ou um fluxo
de sombras que se agarram
à mão cega no lodo para saber que estão mortos e
vivem. Essa vida de que falam
no inferno, os mortos entre si, os alucinados, os absurdos,
os orgulhosos sonâmbulos disputando com sangue
uma certeza alucinante; é um terrível deus obscuro.
Uma grosseira tragédia que fazem
a cada natal, os velhinhos, os defuntos,
com pessoas desaparecidas, com máscaras e ritos de outros tempos,
letreiros de néon e fogos fátuos: assim trabalha desde então,
desde então, essa raça
misteriosa que passa ao teu lado sem olhar-te ou olhar-se,
desde então, desde o primeiro dia
em que assomaste com pânico ao seu delírio. Desde que vivem,
talvez,
desde que não existe tempo mas destino e traço
de vida invulnerável à decisão de um olhar poderoso.
Aquele que é visto ou aquele que cai ao rio surdo
é o mesmo, é um morto
que se levanta dia após dia para
mendigar o olhar.
Porque todos levamos dentro uma criança morta, chorando,
que espera também esta manhã, esta tarde como sempre
festejar com os Outros, os invisíveis, os longínquos
algum dia finalmente o seu aniversário.


Narciso no Último Acorde das Flautas, 1979



leopoldo maría panero
antologia poética (1979/1994)
selecção, tradução e notas de jorge melícias
lume editor
2014



25 agosto 2014

joão almeida / a imensidão



Dias a dia a dia
Às duas da tarde
Alimentado a ração
E alecrim
Fez muito mais que mazelas
Na carne e no conhecimento

O que é de pouco lhe vale
Quando a noite em chão
Desconhecido se aproxima
E o metro incendeia os motores
Para estação adversa

Queimou o cartão de cidadão e os últimos vestígios
Conto com a misericórdia das mulheres
Quando cair doente disse-me
Aproxima a tua mão

Vi-o pelos campos
Ao  pé de um carro abandonado
Como um aviso


joão almeida
ladrador
averno
2012