Antes que chegue ao fim diga-se por que param os olhos diante da luz. Excessivo fulgor, um espelho demente? Ouve-se um grito no interior dos céus quando a amendoeira despenha as suas pérolas.
josé agostinho baptista biografia assírio & alvim 2000
Acontece que a ondulação destas cortinas Está cheia de largos movimentos; como o lento Esvaziar da distância; ou como nuvens Inseparáveis das suas tardes; Ou a mudança da luz, o gotejar Do silêncio; o sono largo e a solidão Da noite, em que todo o movimento Está para alem de nós, à medida que o firmamento, Subindo e descendo, desvela A imensidão final, ousada visão. wallace stevens harmónio trad. jorge fazenda lourenço relógio d´água 2006
Hei-de morrer inocente exactamente como nasci. Sem nunca ter descoberto o que há de falso ou de certo no que vi.
Entre mim e a Evidência paira uma névoa cinzenta. Uma forma de inocência, que apoquenta. Mais que apoquenta: enregela como um gume vertical. E uma espécie de ciúme de não poder ver igual. antónio gedeão
um outro que não eu bem mais voraz concreto e subtil te poderá depois talvez contar destes momentos cúmplices de agora perfeitos na intimidade da vaga dor de cabeça não te posso adiar por minha culpa não te posso invocar por excesso de altruísmo ou de rancor arquitectura fria dum gesto quase orgulho do que já lá não coube se nutre a tua imagem mais fácil do que tudo seria perdoar-me perde-se o vício por falta de virtude luis amorim de sousa signo da balança 1968
Na lista dos teus fins venho no fim de uma página nunca publicada, e é justo que assim seja. Embora saiba mexer palavras, e doer de frente, e tenha esse talento conhecido de acordar de manhã, dormir à noite, e ser, o dia todo, como gente, nunca curei, como previa, a lepra, nem decifrei o delicado enigma da letra morta que nos antecede. Por muito te querer, talvez pudesses dar-me um lugar qualquer mais adiante, despir-te de pudor por um instante e deixá-lo cobrir-me como um manto. antónio franco alexandre poemas assírio & alvim 1996
"Quando ponho de parte os meus artifícios e arrumo a um canto, com um cuidado cheio de carinho - com vontade de lhes dar beijos - os meus brinquedos, as palavras, as imagens, as frases - fico tão pequeno e inofensivo, tão só num quarto tão grande e tão triste, tão profundamente triste!... Afinal eu quem sou, quando não brinco? Um pobre órfão abandonado nas ruas das sensações, tiritando de frio às esquinas da Realidade, tendo que dormir nos degraus da Tristeza e comer o pão dado da Fantasia. De meu pai sei o nome; disseram-me que se chamava Deus, mas o nome não me dá ideia de nada. Às vezes, na noite, quando me sinto só, chamo por ele e choro, e faço-me uma ideia dele a que possa amar... Mas depois penso que o não conheço, que talvez ele não seja assim, que talvez seja nunca esse o pai da minha alma... Quando acabará isso tudo, estas ruas onde arrasto a minha miséria, e estes degraus onde encolho o meu frio e sinto as mãos da noite por entre os meus farrapos? Se um dia Deus me viesse buscar e me levasse para a sua casa e me desse calor e afeição... Às vezes penso isto e choro com alegria a pensar que o posso pensar... Mas o vento arrasta-se pela rua fora e as folhas caem no passeio... Ergo os olhos e vejo as estrelas que não têm sentido nenhum... E de tudo isto fico apenas eu, uma pobre criança abandonada, que nenhum Amor quis para seu filho adoptivo, nem nenhuma Amizade para seu companheiro de brinquedos. Tenho frio de mais. Estou tão cansado no meu abandono. Vai buscar, ó Vento, a minha Mãe. Leva-me na Noite para a casa que não conheci... Torna a dar-me, ó Silêncio imenso, a minha ama e o meu berço e a minha canção com que eu dormia..." fernando pessoa livro do desassossego por bernardo soares ática 1982
Feliz aquele que administra sabiamente a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará Oh! como é triste envelhecer à porta entretecer nas mãos um coração tardio Oh! como é triste arriscar em humanos regressos o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão ao longo do mar transbordante de nós no demorado adeus da nossa condição É triste no jardim a solidão do sol vê-lo desde o rumor e as casas da cidade até uma vaga promessa de rio e a pequenina vida que se concede às unhas Mais triste é termos de nascer e morrer e haver árvores ao fim da rua É triste ir pela vida como quem regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro É triste no outono concluir que era o verão a única estação Passou o solidário vento e não o conhecemos e não soubemos ir até ao fundo da verdura como rios que sabem onde encontrar o mar e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver através de palavras de uma água para sempre dita Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã Triste é comprar castanhas depois da tourada entre o fumo e o domingo na tarde de novembro e ter como futuro o asfalto e muita gente e atrás a vida sem nenhuma infância revendo tudo isto algum tempo depois A tarde morre pelos dias fora É muito triste andar por entre Deus ausente Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente ruy belo o problema da habitação 1962
A Louis Aragon «Pouco antes da meia-noite perto do cais. «Se uma mulher desgrenhada te seguir não te importes. «É o azul. Nada deves temer do azul. «Haverá grandes rendas de seda numa árvore. «O campanário da aldeia de cores esbatidas «Vai servir-te de ponto de referência. Aproveita a ocasião, «Não esqueças. O geyser escuro que lança contra o céu rebentos de feto «Saúda-te.» A carta lacrada com três peixes Passava agora na luz dos subúrbios Como um cartaz de domador. De resto A bela, a vítima, aquela a quem chamavam No bairro a pequena pirâmide de resedá Descosia só para si uma nuvem tal qual Um saquitel de piedade. Mais tarde a armadura branca Que se ocupava entre outros dos trabalhos domésticos Cada vez mais à vontade agarrava com força O menino da concha, aquele que ia ser... Mas silêncio. Um braseiro já dava ensejo No seu seio a um arrebatador romance de capa E espada. Sobre a ponte, à mesma hora, Assim a cabeça de gata do orvalho baloiçava. A noite, - e as ilusões estariam perdidas. Eis os frades brancos que voltam das vésperas Com uma grande chave por cima da cabeça. Eis os arautos pardos; eis por fim a carta Ou os lábios: meu coração é um cuco de Deus. Mas enquanto ela fala, só fica uma parede A bater contra um túmulo como uma vela mestra. A eternidade procura um relógio de pulso. Pouco antes da meia-noite perto do cais. andre breton clair de terre, 1923 poemas trad. de ernesto sampaio assírio & alvim 1994
Quem sou eu? De onde venho? Sou Antonin Artaud e basta eu dizê-lo como só eu o sei dizer e imediatamente verão meu corpo actual voar em pedaços e se juntar sob dez mil aspectos notórios um novo corpo no qual nunca mais me poderão esquecer. antonin artaud frança, 1896-1948
Que fizeste das palavras? Que contas darás tu dessas vogais de um azul tão apaziguado? E das consoantes, que lhes dirás, ardendo entre o fulgor das laranjas e o sol dos cavalos? Que lhes dirás, quando te perguntarem pelas minúsculas sementes que te confiaram? eugénio de andrade