03 janeiro 2014

luis amorim de sousa / um outro que não eu



um outro que não eu
bem mais voraz
concreto
e subtil
te poderá depois talvez contar
destes momentos cúmplices de agora
perfeitos na intimidade
da vaga dor de cabeça

não te posso adiar por minha culpa
não te posso invocar
por excesso de altruísmo ou de rancor

arquitectura fria
dum gesto quase orgulho
do que já lá não coube
se nutre a tua imagem

mais fácil do que tudo
seria perdoar-me

perde-se o vício
por falta de virtude



luis amorim de sousa
signo da balança
1968




02 janeiro 2014

antónio franco alexandre / na lista



Na lista dos teus fins venho no fim
de uma página nunca publicada,
e é justo que assim seja. Embora saiba
mexer palavras, e doer de frente,
e tenha esse talento conhecido
de acordar de manhã, dormir à noite,
e ser, o dia todo, como gente,
nunca curei, como previa, a lepra,
nem decifrei o delicado enigma
da letra morta que nos antecede.
Por muito te querer, talvez pudesses
dar-me um lugar qualquer mais adiante,
despir-te de pudor por um instante
e deixá-lo cobrir-me como um manto.



antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996



01 janeiro 2014

fernando pessoa / livro do desassossego



"Quando ponho de parte os meus artifícios e arrumo a um canto, 
com um cuidado cheio de carinho  - com vontade de lhes dar beijos
- os meus brinquedos, as palavras, as imagens, as frases - 
fico tão pequeno e inofensivo, tão só num quarto tão grande e tão triste,
tão profundamente triste!...

Afinal eu quem sou, quando não brinco? 
Um pobre órfão abandonado nas ruas das sensações, 
tiritando de frio às esquinas da Realidade, 
tendo que dormir nos degraus da Tristeza e comer o pão dado da Fantasia. 
De meu pai sei o nome; disseram-me que se chamava Deus,
mas o nome não me dá ideia de nada. 
Às vezes, na noite, quando me sinto só, chamo por ele e choro, 
e faço-me uma ideia dele a que possa amar...
Mas depois penso que o não conheço, que talvez ele não seja assim, 
que talvez seja nunca esse o pai da minha alma...

Quando acabará isso tudo, estas ruas onde arrasto a minha miséria, 
e estes degraus onde encolho o meu frio e sinto as mãos da noite 
por entre os meus farrapos? Se um dia Deus me viesse buscar 
e me levasse para a sua casa e me desse calor e afeição...
Às vezes penso isto e choro com alegria a pensar que o posso pensar...
Mas o vento arrasta-se pela rua fora e as folhas caem no passeio...
Ergo os olhos e vejo as estrelas que não têm sentido nenhum...
E de tudo isto fico apenas eu, uma pobre criança abandonada, 
que nenhum Amor quis para seu filho adoptivo, 
nem nenhuma Amizade para seu companheiro de brinquedos.

Tenho frio de mais. 
Estou tão cansado no meu abandono. 
Vai buscar, ó Vento, a minha Mãe. 
Leva-me na Noite para a casa que não conheci...
Torna a dar-me, ó Silêncio imenso, a minha ama 
e o meu berço 
e a minha canção com que eu dormia..."



fernando pessoa
livro do desassossego
por bernardo soares
ática
1982




31 dezembro 2013

ruy belo / a mão no arado



Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente


ruy belo
o problema da habitação
1962




30 dezembro 2013

andre breton / a respeito de divindades



                                                        A Louis Aragon


«Pouco antes da meia-noite perto do cais.
«Se uma mulher desgrenhada te seguir não te importes.
«É o azul. Nada deves temer do azul.
«Haverá grandes rendas de seda numa árvore.
«O campanário da aldeia de cores esbatidas
«Vai servir-te de ponto de referência. Aproveita a ocasião,
«Não esqueças. O geyser escuro que lança contra o céu rebentos de feto
«Saúda-te.»

                 A carta lacrada com três peixes
Passava agora na luz dos subúrbios
Como um cartaz de domador.
                                          De resto
A bela, a vítima, aquela a quem chamavam
No bairro a pequena pirâmide de resedá
Descosia só para si uma nuvem tal qual
Um saquitel de piedade.
                                   Mais tarde a armadura branca
Que se ocupava entre outros dos trabalhos domésticos
Cada vez mais à vontade agarrava com força
O menino da concha, aquele que ia ser...
Mas silêncio. Um braseiro já dava ensejo
No seu seio a um arrebatador romance de capa
E espada.
              Sobre a ponte, à mesma hora,
Assim a cabeça de gata do orvalho baloiçava.
A noite, - e as ilusões estariam perdidas.


Eis os frades brancos que voltam das vésperas
Com uma grande chave por cima da cabeça.
Eis os arautos pardos; eis por fim a carta
Ou os lábios: meu coração é um cuco de Deus.

Mas enquanto ela fala, só fica uma parede
A bater contra um túmulo como uma vela mestra.
A eternidade procura um relógio de pulso.
Pouco antes da meia-noite perto do cais.


andre breton
clair de terre, 1923
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994




29 dezembro 2013

antonin artaud / post scriptum



Quem sou eu?
De onde venho?
Sou Antonin Artaud
e basta eu dizê-lo
como só eu o sei dizer
e imediatamente
verão meu corpo actual
voar em pedaços
e se juntar
sob dez mil aspectos
notórios
um novo corpo
no qual nunca mais
me poderão
esquecer.



antonin artaud
frança, 1896-1948




28 dezembro 2013

eugénio de andrade / que fizeste das palavras?



Que fizeste das palavras?
Que contas darás tu
dessas vogais
de um azul tão
apaziguado?


E das consoantes, que
lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos
cavalos?


Que lhes dirás, quando
te perguntarem pelas
minúsculas
sementes que te
confiaram?



eugénio de andrade




27 dezembro 2013

stella zagatto paterniani / em festa



os anjos que me circundam (eu sei)
são anjos desfigurados com cabelos cinzentos e
asas (como devem tê-las os anjos)
são fortes e sorriem e dançam e (também sei)
se alegram quando me ilumino.


digo, por isso às vezes
me brotam lágrimas e falta o ar
─  porque esses anjos querem
(esquecem sua condição celestial)
brindar a vida e no regozijo ─  tão se excedem
e vêm a mim todos alegres pelo tempo que há.




stella zagatto paterniani
natália gregorini
deleites e ladrilhos
editora medita
2013



26 dezembro 2013

luiza neto jorge / poema quase epitáfio



Violentamente só
desfeito em louco
- nem um gato lunar
te arranha um pouco

Morreram-te na família
irmãos mais velhos
Restam retratos de vidro
e espelhos

Entre as fêmeas bendita
não te quis
As outras mataste
(nem há sangue que te baste)

O chão do teu país
deu-te água e uma raiz
muitas pedras mas prisões

- Senhor demónio dos sós
Quando ele morrer
onde o pões?

  
luiza neto jorge
os sítios sitiados
plátano
1973




24 dezembro 2013

alberto caeiro / o pastor amoroso



O pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.  
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu.  
Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.  
Ninguém o tinha amado, afinal.
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento, 
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem, 
estão presentes.
(E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco 
nos pulmões)
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, 
uma liberdade 
no peito.

  

alberto caeiro



23 dezembro 2013

e e cummings / quando o cabelo cai e os olhos se turvam



quando o cabelo cai e os olhos se turvam. E
as coxas esquecem (quando os relógios sussurram
e a noite grita) Quando as mentes
se enrugam e os corações se tornam mais frágeis a cada
Instante (quando numa manhã a Memória se levanta,
com desajeitados e murchos dedos
vertendo a cor da juventude e o que foi
num copo sujo) Poções para as Indisposições
(uma receita contra o Riso a Virgindade a Morte)


então querida o
modo como as árvores se Fazem em folhas
as Nuvens abertas tomam o sol as montanhas
permanecem E os oceanos Não dormem não interessa
nada; então (então as únicas mãos por assim dizer são
aquelas sempre que rastejam devagar sobre qualquer
rosto numerado capaz do maior inexpressivo olhar do
menor sisudo sorriso
ou do que quer que seja que as ervas sintam e os peixes
pensem)



e.e. cummings
livrodepoemas
trad. cecília rego pinheiro
assírio & alvim
1999



22 dezembro 2013

josé régio / ignoto deo



Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu sopro tão além de quanto vemos.

Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.

Chamar-Te amante ou pai... grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,

Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
- Tu é que não desistirás de mim!




josé régio




21 dezembro 2013

al berto / a escrita é a minha primeira morada de silêncio



a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada


esta paixão pelos objectos que guardastes
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos


espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu persegui teu rasto de esperma à beira-mar


outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo

  

al berto