04 dezembro 2013

m. s. lourenço / alfa


I

flutuo
no ar
esguelho sobre um dos lados
oblíqua em baixo uma superfície
lateral uma paisagem aberta
interior exterior
fronteira a separá-las
no centro palavras desligadas
juntas às vezes
a escorregar no sentido a frase
deslisa num vento
um remoinho no nó sintáctico
(voltar com barras a ligá-las!)
corpos cá dentro chove
alheios olham a corrente

troncos de árvore lamacenta
desço até terra firme
sem molde orgânica ou padrão
ou motus animi continuus
as pás rodam

ou esquema nublado de uma rima
um metro regular
a frase solta aponta para fora
move-se o verbo
sem avistar as outras partes

toco o chão pulveriza-se o sentido
poeira e chuva invadem o meu casaco
saltam as cabras pobre poeta
destruo os telhados com o vento
fugiram há muito alguns traços

escondidos para lá da aldeia
levanto procuro leste
sem sentido ainda
a proposição no seu conjunto
ocasional ao fundo um arco-íris


m. s. lourenço
arte combinatória
1971



03 dezembro 2013

àlex susanna / programa dos festejos



Fechemo-nos em casa
desliguemos o telefone,
destruamos o império
da televisão
jantemos perto da lareira,
ouvindo, calando;
olhamos os quadros
que souberam acompanhar-nos,
ouvimos também alguma
música esquecida,
e então, lentamente,
podemos adormecer
nos braços um do outro
que um mesmo sonho
nos leve para longe:
que nunca nada nem ninguém
ouse interferir                           
nesta nossa frágil
mas plena felicidade:
construamos com ela                                                           
um bastião inexpugnável.


àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves




02 dezembro 2013

gil t. sousa / luto



22

atravessava a morte
com a lentidão rigorosa dos amantes

e voltava
voltava sempre

trazia em pedaços de papel
coisas cada vez maiores

que já só podia arrumar no coração


gil t. sousa
água forte
2005



01 dezembro 2013

al berto / sida



"aqueles que têm nome e nos telefonam
um dia emagrecem - partem
deixam-nos dobrados ao abandono
no interior duma dor inútil muda
e voraz

arquivámos o amor no abismo do tempo
e para lá da pele negra do desgosto
pressentimos vivo
o passageiro ardente das areias - o viajante
que irradia um cheiro a violetas nocturnas

acendemos então uma labareda nos dedos
acordamos trémulos confusos - a mão queimada
junto ao coração

e mais nada se move na centrifugação
dos segundos - tudo nos falta

nem a vida nem o que dela resta nos consola
e a ausência fulgura na aurora das manhãs
e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos
o rumor do corpo a encher-se de mágoa

assim guardamos as nuvens breves os gestos
os invernos o repouso a sonolência
o vento
arrastando para longe as imagens difusas
daqueles que amámos mas não voltaram
a telefonar"


al berto
horto de  incêndio
assírio & alvim
1997




30 novembro 2013

stella zagatto paterniani / entre magias



mágico é ter fome todos os dias e saciá-la;
mágico é um cãozinho latir em sol maior;
magia: cubro-me com a lona do circo
e ainda assim sinto frio.

porque sinto meus pelos e poros, um a um,
sei: é mágico meu corpo, ele sabe (e me diz
que não vai amanhecer sol de cegar).

é fácil prever o caminho da formiga:
ela não vai entrar no meu umbigo.
é mágico como as estrelas não caem
e somem e aparecem e somem aparecem e aparecem
quando não olho e olho
elas somem

(nem vai passar o cheiro de merda e mijo,
— meu nariz sabe e mesmo assim durmo)

as lágrimas se formam atrás dos olhos e explodem
                                                      [enquanto grito

sob a lona-cobertor e meus pelos,
um a um, se amansam.

ouço um murmurinho, alguém vem trazer pinga.
durmo bem, acordo quente e com o maior coração do
                                                                  [mundo.



stella zagatto paterniani
euOnça
ano_um_volume_um
editora medita
2013


29 novembro 2013

samuel beckett / algo ali



algo ali
onde
ali fora
ali onde
fora

o quê
a cabeça que algo senão
algo algures ali fora
a cabeça

ao mais leve mais breve som
já não está e o globo ocular
ainda não nu
o olho abre-se muito
muito
até que por fim
nada mais
o volta a cerrar

assim às vezes
ali fora
algures ali fora
tal como se
como se
algo não a vida
necessariamente

1974



samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago” nr.13
10/2003



28 novembro 2013

margarida vale de gato / christina rossetti



meigos grandes nada cépticos secos
os olhos de corça esgarçada à roda
lança

longos louros soltos em vagas
breves nunca crispadas cabelos
esparge

Christina mansa mente amante
pré-rafaelita ao leito recolhe se cobre
semelha

receio tolhe branca túnica
tersa forma de seios ao canto
paira

aflora sobre auréola a sombra
de Gabriel o irmão. também faz versos
concita

com-paixão.

   

margarida vale de gato




27 novembro 2013

martín lópez-vega / laranja




Alguém a deixou sobre a mesa do jardim, a laranja.
Agora é um símbolo da tarde, essa fruta
brilhando por entre o confuso calor deste fim de dia
luminoso como uma recordação amorosa da adolescência,
como a primeira laranja,
como as mãos que cheiram a laranja.

(Rodearam-na logo as formigas, esvoaçaram
em seu torno mil insectos, bailará a noite
em seu redor.) Mas agora essa laranja na tarde
supõe uma ordem, um sentido, o centro gravitacional do dia.



martín lópez-vega
árbol desconocido
tradução de ruy ventura.
visor
2002



26 novembro 2013

luiza neto jorge / noite-pétala



Posso estar aqui
eu posso estar aqu perfeitamente pobre
um círio me acendi espora aguda
o vento ritmo negro assassinou-o

posso estar aqui
─  o musgo é lento como a sombra ─
e sei de cór a voz cega das canções
 (viola de silêncio acorda-me)

que eu posso estar aqui perfeitamente pedra
insone
e um longo segredo impessoal
bordando a minha solidão



luiza neto jorge
a noite vertebrada
1960




25 novembro 2013

andre breton / o grande socorro mortífero


A estátua de Lautréamont
No pedestal de comprimidos de quinino
Em campo raso
O autor das Poesias está deitado de bruços
E perto dele vigia o helodermo suspeito
A orelha esquerda contra a terra é uma redoma
Ocupada por um relâmpago o artista não se esqueceu de
         lhe pintar por cima
o globo azul celeste em forma de cabeça de turco
O cisne de Montevideu de asas abertas sempre pronto a
         batê-las
Quando se trata de atrair do horizonte os outros cisnes
Desceram sobre o falso universo dois olhos de cores
         diferentes
Um de sulfato de ferro sobre o parreiral das pestanas o
         outro de barro diamantífero
Contempla o grande hexágono em funil onde depressa
         se crisparão as máquinas
Que o homem se obstina em cobrir de ligaduras
Reaviva com a vela de rádio as profundezas do crisol
         humano
O sexo de plumas o cérebro de papel vegetal
Preside às cerimónias duas vezes nocturnas celebradas
       para desviar o fogo e inverter os corações do homem
       e do pássaro
A qualidade de convulsionário dá-me acesso a ele
As mulheres deslumbrantes que me introduzem na
       carruagem estofada a rosas
Onde uma cama de rede entrançada com os seus cabelos
       me está reservada
Para sempre
Recomendam antes de partir que não apanhe frio a ler
       o jornal
Parece que a estátua junto da qual a grama das minhas
       terminações nervosas
Chega ao seu destino é afinada todas as noites como
       um piano


  
andre breton
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994


24 novembro 2013

herberto helder / as musas cegas


V

Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira
e a eternidade das mãos.
Esta linguagem é colocada e extrema e cobre, com suas
lâmpadas, todas as coisas.
As coisas que são uma só no plural dos nomes.
─  E nós estamos dentro, subtis, e tensos
na música.


Esta linguagem era o disposto verão das musas,
o meu único verão.
A profundidade das águas onde uma mulher
mergulha os dedos, e morre.
Onde ela ressuscita indefinidamente.
─  Porque uma mulher toma-me
em suas mãos livres e faz de mim
um dardo que atira. - Sou amado,
multiplicado, difundido. Estou secreto, secreto -
e doado às coisas mínimas.


Na treva de uma carne batida como um búzio
pelas cítaras, sou uma onda.
Escorre minha vida imemorial pelos meandros
cegos. Sou esperado contra essas veias soturnas, no meio
dos ossos quentes. Dizem o meu nome: Torre.
E de repente eu sou uma torre queimada
pelos relâmpagos. Dizem: ele é uma palavra.
E chega o verão, e eu sou exactamente uma Palavra.
─  Porque me amam até se despedaçarem todas as portas,
e por detrás de tudo, num lugar muito puro,
todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio.


Essa mulher cercou-me com duas mãos.
Vou entrando no seu tempo com essa cor de sangue,
acendo-lhe as falangetas,
faço um ruído tombado na harmonia das vísceras.
Seu rosto indica que vou brilhar perpetuamente.
Sou eterno, amado, análogo.
Destruo as coisas.


Toda a água descendo é fria, fria.
Os veios que escorrem são a imensa lembrança.  Os velozes
sóis que se quebram entre os dedos,
as pedras caídas sobre as partes mais trémulas
da carne,
tudo o que é húmido, e quente, e fecundo,
e terrivelmente belo
─  não é nada que se diga com um nome.
Sou eu, uma ardente confusão de estrela e musgo.


E eu, que levo uma cegueira completa e perfeita, acendo
lírio a lírio todo o sangue interior,
e a vida que se toca de uma escoada
recordação.


Toda a juventude é vingativa.
Deita-se, adormece, sonha alto as coisas da loucura.
Um dia acorda com toda a ciência, e canta
ou o mês antigo dos mitos, ou a cor que sobe
pelos frutos,
ou a lenta iluminação da morte como espírito
nas paisagens de uma inspiração.
A mulher pega nessa pedra tão jovem,
e atira-a para o espaço.
Sou amado. - E é uma pedra celeste.


Há gente assim, tão pura. Recolhe-se com a candeia
de uma pessoa. Pensa, esgota-se, nutre-se
desse quente silêncio.
Há gente que se apossa da loucura, e morre, e vive.
Depois levanta-se com os olhos imensos
e incendeia as casas, grita abertamente as giestas,
aniquila o mundo com o seu silêncio apaixonado.
Amam-me, multiplicam-me.
Só assim eu sou eterno.




herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



23 novembro 2013

joão rui de sousa / cliché




Incluo-me entre as vontades dolorosas
aquelas que decidem sobre o lume
aquelas que deslizam hesitantes
na vaga sensação de tanto estrume.

Em volta do seu pulso mole e débil
por dentro do seu óleo morno e roxo
para além deste limite rombo e ferido
debaixo de um telhado falso ou frouxo.

Sem nada. Sem firmeza, sem sentido,
sem gravata, sem vestido,
sem um ponto qualquer de referência.

Incapaz de ser outro mais fremente
como um cavalo opresso ou mastro fino
passeando ao escuro a indigência.




joão rui de sousa
a habitação dos dias
1962





22 novembro 2013

alberto caeiro / falas de civilização...




Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as coisas humanas postas desta maneira,
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seriam melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as coisas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!


 alberto caeiro