13 agosto 2013

alberto augusto miranda / organon das profecias



  1

  Do século em seus espaços e tempos eu via
  Para lá do eixo funcional dos limites
  Animal de quinta dimensão mantido
  Ao choro unido sem quebra, cabra
  Indomável palavra em figura perpassando
  Sua digna continuada emoção.
  Subia a hortícola saia para me garantir
  Fazedora do esquecido vento em cada pulo


  2

  Passeava a cegueira pelo meu sorriso de fé
  Eu hostiava as sombras para as contentar de luz
  E tinha tanta verdade em meus olhos esplendida
  Que já nada temia do ameaçador espelho
  Afinal meu consolo, meu feito ser.
  Assim o levo nos meus bolsos e peitilhos
  Como documento de firmeza sempre preparado
  A saltar às conversas desditosas e às dúvidas
  A mim própria saltando. Mais do que a prece
  O espelho, o construído espelho, inquebrável
  Salvação, a minha alegria do divino.


  3

  Procurava os perdidos de nome e uma traviata
  Reconhecidos de mim nas águas dos extremos
  Arca de Noé, eu seria aparição no desespero
  Até no esquecido desespero de uma apática entrega
  Ao tridentino dono, industrial da lavoura dos nervos.
  Mais e melhor entrega eu lhes era dizer na boca
  O amor que nenhum lupanário conhece à vontade
  De Deus corpo no corpo do corpo sou e aos homens
  De membro em riste apenas os cerco de imagens
  As coxas, os seios, o sexo, deitados em mãos de nuvem
  E chuva do futuro em cada abandonante do presente
  O ósculo sagrado, o beijo da comunhão.


  4

  Não há verbo nacarado que consiga
  O aroma dos meus braços voantes e abertos
  À recolha da solidão e do desastre, os meninos
  Todos para mim, explosão de afecto em minha ara.
  Não há verbo, precisamos do silêncio para dizer
  Precisamos de sentir para falar em cada dedo
  Sulcando o meu ventre pelo escuro da origem
  Viajando até ao luar dos olhos compreendidos
  Sinais de todos os músculos e de outras forças
  De que me faço e me fazem embarcação
  Dos nautas que não desistiram do infinito.


  5

  Não faço todas estas coisas por Ele ou para Ele
  Em soma vos quero dizer: Ele não é meu
  Chulo! É por mim que tudo faço até na renúncia
  De omitir à cidade e a mim mesma omitir
  A minha sensualidade que julgo ser muita mas não quero
  Saber, tenho medo, tenho medo, tenho muito medo
  Da sua Revelação, não aguentaria a dupla fatalidade:
  Ser agnóstica sensual ou vulgar ninfeta
  Incapaz de ser única, tal a Vida seria.
  Tenho medo, tenho medo, tenho muito medo
  De a mim própria me nomear pássaro e não voar.
  Ó mãe, ó meu resíduo: é a parte do pai que fala.


  6

  Por inteiro, sem parábolas me prontifico
  A lavar-me de manchas para nos outros as lavar.
  Um primeiro quente me acaricia o rosto
  Na missão de ligar as almas ao Supremo
  Ao inacreditável, ao impossível, a todos os signos
  Prefixados de negação: sou-vos afirmativa,
  De mim corre e escorre tudo o que é meu
  Fonte vossa, nosso resultado, espiral
  Penteando os cabelos dos acessos difíceis
  Meu máximo gosto, minha máxima razão é
  Minha máxima culpa, meu máximo ser
  Clareando em perigo uma pequenina célula
  Locatária do escuro e meu máximo triunfo.


  7

  Algures, em retiro, sentava-me no areal
  E soprava na flauta de bisel edulcorantes sons
  Como virtuosa hameline seduzindo
  Pequenas multidões prontas de brancura atrás
  De mim, oásis em regaço sem miragem
  Hamsters abandonando o jogo da caça
  Alegres do Sol, primevas claridades
  Agora recuperadas na água baptismal
  Todo o passado apagando por esta tigela de alumínio
  Com que os faço nascer, lhes confiro um nome
  E pelo livre arbítrio os torno diferentes
  Em seus corpos inscrevendo
  Uma oração comum no discurso da semelhança.


  8

  Talvez seja assustador o meu extra-vento
  O tranquilo golpe da minha mirada
  O desafio de desafiar sem combate expresso
  Porque todos têm medo, muito medo
  De abandonar o refúgio do seu caos
  E saberem nas narinas o que lhes era sabido:
  O lado mordente da natureza de cada um,
  O lugar de árvore e fruto que era o seu
  O céu que queriam e a que nunca chegaram
  Por muito exercício e conquista em jejum
  Seus metaquímicos transes pudessem ser
  A palavra iniciática do profeta.


  9

  Eu de vento-rindo meu desmusculado segredo
  Pura e transparente mão do milagre ou
  Outro membro vos unte esses alimentos
  Onde cozinhais em transmitida receita
  Vosso mito por salgar
  Que hoje aprendi no organon das profecias
  Ser do profeta irredutível dever
  Falar ao ouvido das setas
  Em olhos reviravoltados.




  alberto augusto miranda
  semântica do olhar
   ed. fenda
   1997




12 agosto 2013

albano martins / cedo ou tarde



Devias saber
que é sempre tarde
que se nasce, que é
sempre cedo
que se morre. E devias
saber também
que a nenhuma árvore
é lícito escolher
o ramo onde as aves
fazem ninho e as flores
procriam.



albano martins
assim são as algas
campo das letras
2000



11 agosto 2013

bertolt brecht / há homens que lutam um dia



Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis

  

bertolt brecht



10 agosto 2013

gil t. sousa / amarração


20

todos os dias te amarro numa palavra
e quando me olho na esgotante loucura dos dias

leio-te
o infinito passo
que me transporta aos desertos maiores

mas
fico tão pobre
de já nem me chegar o infinito dos verbos!…




gil t. sousa
água forte
2005



09 agosto 2013

william carlos williams / flores à beira do mar



Quando sobre a nítida, florida orla da
pastagem, o oceano invisível e salgado

ergue a sua forma - chicória e margaridas
atadas, soltas, quase não parecem flores

mas somente cor e movimento - ou talvez a
forma - do desassossego, enquanto

fechado em círculo o mar se move tranquilamente
como uma planta sobre o caule



william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993



08 agosto 2013

alexandre o'neill / doceiras de amarante



Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para ó meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

  
alexandre o'neill
feira cabisbaixa



07 agosto 2013

edmundo de bettencourt / horas




Gelava o tempo branco do relógio.
Fundiu-se um dia o mostrador
aberto para dentro
num foco por onde as horas negras fugiram enlouqueci-
                                 das!
Lá para longe na faixa rósea da distância
recuaram ante o incessante alarido dos sinos
e logo regressaram
desesperadamente procurando em vão
o maquinismo do relógio.

Via-se o dia fechado de silêncio
num quadrado de luz amarelada
 e de novo preso o pé do jovem
quando ia para sair.


   
edmundo de bettencourt
poemas surdos
assírio & alvim
1981


06 agosto 2013

armando silva carvalho / metal e nuvens



E aqui com grande choro começo.
Porque ando à caça entre brenhas
de metal e nuvens?
Outrora os pastores lembravam-se do tempo
em que a vereda da vontade viam
e límpidos, no chão, adormeciam rústicos.
Agora sou um ser traído pela vergonha
e amanso ovelhas ruivas, retalhadas por máquinas
que a boca dos dizeres coagulou no tempo.
Estou só entre estas bestas que me chegam do espaço
e que lambem no frio as minhas mãos inertes.



armando silva carvalho
técnicas de engate 1979
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007



05 agosto 2013

andre breton / poema




Tenho na minha frente a fada de sal
cuja túnica recamada de cordeiros
desce até ao mar
Cujo véu pregueado
de queda em queda ilumina toda a montanha.

Ela brilha ao sol como um lustro de água iridiscente
E os pequenos oleiros da noite serviram-se das suas
unhas onde a lua não se reflecte
para moldar o serviço de café da beladona.

O tempo enrodilha-se miraculosamente detrás dos seus
sapatos de estrelas de neve
ao longo dum rasto perdido nas carícias
de dois arminhos.

Os perigos anteriores foram ricamente repartidos
e mal extintos os carvões no abrunheiro bravo das sebes
pela serpente coral que sem custo passa
por um delgado
filete de sangue seco
na lareira profunda
sempre sempre esplendidamente negra
Esta lareira onde aprendi a ver
e sobre a qual dança sem cessar
o crepe das costas das primaveras
Aquele que é necessário lançar muito alto para dourar
a mulher em cujos cabelos encontro
o sabor que perdera
O crepe mágico o sinete voador
do amor que é nosso.



andre breton
(frança, 1896-1966)
luz da terra
tradução de nicolau saião



04 agosto 2013

josé agostinho baptista / conheci-te



conheci-te
quando eras apenas o viajante sem nome
a rapariga admirável de veracruz.

devagar
toquei a tua fronte escura — t e acuerdas?
o rosto,            a nuca húmida,            os ombros,

descendo
descendo sempre
até ao cálido refúgio,       ao centro
onde me perdi.

revejo-te na solidão de uma pátria febril,
nestas mãos de peregrino da meia idade,
no furor do meu sangue estrangeiro,
na inteligível voz de uma alma devastada.

amei-te quanto pude
sobre a terra dos antepassados,
sob o olhar ferido da águia azteca,
sobrevoando
o tempo alto e azul,
atenta sobretudo à loucura de jeremias,
o homem que sou.

tudo aconteceu assim,
invariavelmente na planície sufocante e na pura
neve dos sonhos,
na penumbra das tardes do Pacífico e no Golfo
onde renunciámos à paixão e à vida.

conheci-te
quando eras apenas o viajante sem nome
a rapariga admirável de veracruz.



josé agostinho baptista
biografia
assírio & alvim
2000



03 agosto 2013

josé tolentino mendonça / esplanadas



Um sofrimento parecia revelar
a vida ainda mais
a estranha dor de que se perca
o que facilmente se perde
o silêncio as esplanadas da tarde
a confidência dócil de certos arredores
os meses seguidos sem nenhum cálculo

por vezes é tão criminoso
não percebermos
uma palavra, uma jura, uma alegria



josé tolentino mendonça
a que distância deixaste o coração
assírio & alvim
1998


02 agosto 2013

egito gonçalves / sobre os poemas


1

Há poetas que constróem o mundo nos cafés,
outros que o fazem no claro-escuro
entre as prisões e os intervalos.

Há poetas que aguardam cartas de apresentação
nem eles sabem para onde:
para a vida que falhou?, para a manteiga
que lhes foi negada?

Mas todos têm um sonho, todos
se esforçam por valer o pão que amassam
- lançam seu delicado peso na balança.

Eles sabem, esses poetas,
que nada é eterno e imutável.


2

Tal a "Cadeia de Santo Onofre:
Copie o texto: envie a cinco amigos"...
há poetas que se multiplicam, fendem
a vaga limite, impedem o suicídio,
explicam a vida, argamassam
dedicação e raiva.

Girassóis, rodam sobre si mesmos,
indicam o ponto onde a luz se abre.


3

Há poetas cuja poesia reagrupa, fornece
uma canção à cidade, martela
os que dormem alheios, move-se
silenciosamente ao jeito das estátuas.

Pacífica vaca ruminando na linha do rumo;
rosto impreciso solidificando breve;
ténue tinta azul no papel claro...

Os poetas têm
como os peles-vermelhas do cinema
o seu fumo e os seus cobertores.


4

Há poetas que renegam cartas
de apresentação para o arrivismo;
recusam a mão ao salário da trampa;
não enfeixam o nome e a desonra
nos telegramas do medo.

Enquanto bebem o café um histrião nocturno
arenga; executa o seu número; recebe
por nova pirueta uma ajuda de custo.




egito gonçalves


01 agosto 2013

vicente aleixandre / pensamentos finais



Nasceu e não soube. Respondeu e não falou

As almas surpreendidas olham-te
quando não passas. O vento não cumpre nunca.
Teu pensamento a sós cai lentamente.
Como as fenecidas folhas caem e voltam
a cair, se o vento as dispersar.
Enquanto as espera a sóbria terra,
aberta. Calado o coração, mudos os olhos,
teu pensamento desfaz-se vagaroso
no ar. Movido suavemente. Um som de ramos
finais, um esvaído sonho de ouros vivos
se esparge…  as folhas vão caindo.



vicente aleixandre
poemas de la consumación
antologia de vicente aleixandre
trad. josé bento
editorial inova
1977