13 fevereiro 2013

edmundo de bettencourt / ar livre





Enquanto os elefantes pela floresta galopavam
no fumo do seu peso,
perto, lá andava ela nua a cavalgar o antílope,
com uma asa direita outra caída.
E a amazona seguia...
e deixava a boca no sumo das laranjas.
Os olhos verdes no mar.
O corpo em a nuvem das alturas
-  a guardadora
da sempre nova faísca incendiária!





edmundo bettencourt
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985



12 fevereiro 2013

joan-ives casanova / talvez nunca saibamos…





Talvez nunca saibamos reconhecer no calor do bronze
o gesto que as fez crescer entre oliveiras e puros vinhedos
na sombra do vale onde elas ainda dizem o pulsar da água
e a necessidade do movimento a luz amedrontada de um entardecer
 
admiro aqui pequeninas coisas em companhia dessas mulheres
coisas sensíveis como as migalhas de pão na mesa azul
como os rostos amados da serenidade do cair do dia
os que na certa vêm sem que os vejamos chegar
 
fiz-me árvore e sinceridade do alento para os tocar de leve
vi-me estendido próximo da carícia da mão
para me lembrar acabada a obra da rocha que as havia de guardar
e que seria de certo a única imagem enganadora da pele delas
 
olharei a ternura do horizonte com a queimadura dos seus olhos





joan-ives casanòva
poemas
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga




11 fevereiro 2013

pier paolo pasolini / fragmento de carta para o jovem codignola





Querido rapaz, sim, claro, vamos encontrarmo-nos,
mas não esperes nada desse encontro.
Quanto muito, mais uma decepção, mais um
vazio: daqueles que fazem bem
à dignidade narcisista, como uma dor.
Aos quarenta anos sou como era aos dezassete.
Frustrados, o homem de quarenta anos e o rapaz de dezassete
podem, decerto, encontrar-se, balbuciando
ideias convergentes, sobre questões
separadas por dois decénios, uma vida inteira,
mas que aparentemente são as mesmas.
Até que uma palavra, saída das gargantas hesitantes,
paralisada de pranto e vontade de estar só -
lhes revele a disparidade sem remédio.
E, ao mesmo tempo, terei de fazer de poeta
pai, e refugiar-me na ironia
- que te embaraçará: porque o homem de quarenta anos
é mais alegre e mais jovem do que o rapaz de dezassete,
sendo já senhor da sua vida.
Para além desta aparência, deste disfarce,
nada mais tenho a dizer-te.
Sou avarento, o pouco que possuo
está bem fechado neste meu coração diabólico.
E os dois palmos de pele entre a face e o queixo,
por baixo da boca torcida de tanto sorrir
de timidez, e o olhar que perdeu
a sua doçura, como um figo que azedou,
parecer-te-iam o retrato
fiel dessa maturidade que te faz sofrer,
uma maturidade não fraterna. De que pode servir-te
alguém da tua idade - mas entristecido
na magreza que lhe devora a carne?
O que ele deu, está dado, o resto
é árida piedade.




pier paolo pasolini
poemas
de «poesia in forma di rosa»
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005



10 fevereiro 2013

erich fried / na capital




"Quem manda aqui?"
perguntei
Responderam:
"O povo, é claro"

Eu disse:
"É claro, o povo
mas quem
manda de facto?"




erich fried
(áustria, 1921-1988)
tradução de m. f. quintão portela




09 fevereiro 2013

alberto caeiro / a água chia no púcaro…


  

A água chia no púcaro que elevo à boca.
«É um som fresco» diz-me quem me dá a bebê-la.
Sorrio. O som é só um som de chiar.
Bebo a água sem ouvir nada com a minha garganta.




alberto caeiro
poemas inconjuntos



08 fevereiro 2013

rui costa / não colher as mãos


não colher as mãos, alimentar os objectos.
tocá-los devagar, deixando o fio correr desde
o ar até à ponta dessa sombra onde repousa
o mundo. tenho a certeza de que algo se
mexe no silêncio. olho uma vez. olho uma vez.
sei que falas com as coisas. que tens um pacto
com as rãs, outros pequenos animais, certos verdes
hereditários gestos. que nem que quisesses me
poderias contar. e sei de tudo limpo e é para ti que
inclino as mãos quando percorro as cidades e as
esqueço. esta pequena saudade é uma floresta
de silêncios. sou capaz de adormecer sobre o fogo.




rui costa
a nuvem prateada das pessoas graves
quasi
2005



07 fevereiro 2013

cecília meireles / fio


  

No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.
Tu não vês o jogo perdendo-se
como as palavras de uma canção.
Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrelas na mão...
─  Para que serve o fio trêmulo
em que rola o meu coração?



cecília meireles



06 fevereiro 2013

manuel antónio pina / junto à água





Os homens temem as longas viagens
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.

Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às vontades da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.

Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz da infância, que o teu silêncio me chamasse!

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos

e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos na moldura.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.




manuel antónio pina
um sítio onde pousar a cabeça (1991)
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012



05 fevereiro 2013

gil t. sousa / troca amorosa




12

de ti
receberia o chão que me faltava

e dava-te,
punha-te janelas no coração



como pudemos ter falhado?





gil t. sousa
água forte
2005



04 fevereiro 2013

antónio ramos rosa / porque não soube merecer




Porque não soube merecer a glória, a mais suave
de me deitar a teu lado
e que o sangue a palavra 
abolisse a diferença entre o meu corpo e a minha voz
porque te perdi 
não sei quem sou



antónio ramos rosa



03 fevereiro 2013

endre kukorelly / um jardim de plantas medicinais



Quando todos os recantos do jardim
estão cintilando à frente, ou
os que ficaram para trás numa funda sombra,
quando o vento começa a agitar todas
as pequenas corolas soltas e todos
os caules escondidos e folhas
pairando caídas, e também a terra,
as pedras, os frutos do jardim que racham nas pedras,
vermelhos ou amarelos, tintos, cor
de mel, as sementes que germinam,
rompem, duras, húmidas, secando
acastanhadas, os mecanismos do
céu e da terra que vagueiam, deambulam,
assustadores, bravios e assustados,
sussurrantes, as asas rasgadas como lençóis
de casinhas de brincar, as patas

tombadas, o estalar das carapaças
azul-esverdeadas, frágeis, e também os corpos
pegajosos, tranluzentes, rasgados
surdamente-agudamente-dolorosamente,
moles e recém-esmagados, mesmo agora:
uma só nervura de brilho leitoso e verde,
isolada e fina como um cabelo
se o vento começa a agitá-la - a superfície

oscila, seca, apodrece, morre
enorme em decomposiçăo,
exala um suspiro de alma.
Alguém olha para cima e no vento este suspiro
sobe um pouco, para depois
se despenhar. Todo o jardim
olha para cima. Só para cima
olhou. Mas de cima o contemplaram.





endre kukorelly
um jardim de plantas medicinais
trad., rev., compl. e apresent. fernando pinto do amaral
poetas em mateus
quetzal
1997

02 fevereiro 2013

helder moura pereira / uma caneta contra os vidros




Eras mesmo a fonte de tudo, pelo menos
naquele dia a que chamámos perfeito.
Os dias tinham-se entranhado nos dias,
a tal ponto que a vida era só dias, dias
a seguir uns aos outros. Apenas dias.
De olhos vendados e sem bater numa única
parede, pegados a isto, ao cheiro reconhecido
só quando um dos corpos se afasta.
Sente-se a falta, eu farejo como um cão
e depois sento-me triste a um canto
com um livro na mão. Mas naquele dia
que ambos classificámos de perfeito
eu pude ver a vida ali desdobrada em duas
à minha frente. E a tua inocência poderosa
a dizer-me uma vez sem exemplo faz
de mim o que quiseres, dobra o cabo
dos trabalhos e atira-te de cabeça.




helder moura pereira
uma caneta contra os vidros
relâmpago
revista de poesia 29-30
out 2011 abril 2012



01 fevereiro 2013

josé gomes ferreira / diário dos dias cruéis




2 de agosto

Nem luz, nem destroços
deixei de passagem…
Nem a minha imagem
no rumor dos poços.
Nem um risco aberto
na cal da parede.
Nem a minha sede
no sol deserto…



josé gomes ferreira
poesia II
diário dos dias cruéis 1939
portugália
1962