17 agosto 2012

amadeu baptista / a noite de pavese






Raras vezes me franquearam a porta  
e me deixaram entrar. A febre  
sitia-me a alma e quem me vê  
assusta-se do aspecto do meu rosto,  
esta barba por fazer onde um rouxinol  
se esconde. E mais ainda assusta  
a minha altura, este lugar de vertigem  
e palavras poderosas, a presença  
de ilimitados segredos que ninguém quer conhecer,  
o estremecimento que corre nos meus ombros.  
Embora nada peça, sabem que sou um pedinte.  
E quando entro nas casas os meus gestos  
afeiçoam-se a alguma coisa enigmática  
que contorna o pavor e o entrega  
por não se saber que espécie de vida ou de morte  
vem comigo. Obviamente, eu abençoo  
quem me deixa entrar, dou a entender  
que alguma coisa brilha nas minhas mãos  
e posso matar a fome com uma ou outra palavra  
próxima do amor, um dedo nos cabelos  
de quem me recebe. Subi as escadas que vão dar a esta casa  
em silêncio e em silêncio aceitei que me aguardassem  
com as inefáveis sombras que vejo nos outros  
e tento decifrar para meu contentamento.  
Mandaram-me sentar e deram-me de beber.  
Esse álcool reconfortou-me a alma.  
E a minha gratidão expressa-se deste modo, limpo  
e nítido, observando a mulher nesse sem fim  
das coisas, onde todos os mistérios avançam  
para uma explicação que a qualquer momento  
pode irromper do espírito como uma explosão.  
Olho-te nos olhos e recebo as duas moedas  
que me ofereces, o teu rosto é-me familiar  
se recuar à infância e subitamente perceber  
que também pertenci ao exercício desta árvore   
que nesta sala se levanta. Em frente,  
na fotografia que o meu olhar alcança  
porque me alcança o olhar que dela se desprende,  
inscreve-se o enigma que me fez aqui chegar,  
mais que um rumor ou um fio ténue  
com o nome de todas as coisas inesperadas  
que me aconteceram na vida, sempre  
que me franquearam a porta e me deixaram entrar.  
Agora, com a memória de ter estado em tua casa  
e ter recebido a graça de alguma atenção,  
eu, que sou pedinte embora nada peça,  
entrego-te este sulco da desordem  
sobre a página em branco e agradeço-te  
com o conhecimento de um outro mundo  
ainda mais inexplicável.  
Não tendo havido despedida, sabe que permaneço  
e na encruzilhada das dores que me couberam viver  
não esquecerei o teu nome no dia em que também tiver partido  
e mais nenhuma luz houver além daquela  
que ilumina o teu rosto na solidão da noite.  
Os anjos esperam-me. Não me é possível demorar.  
Que me seja a alba a tua tolerância. 




amadeu baptista


16 agosto 2012

josé alberto oliveira / lema





Depois alguém morreu;
a estada tornou-se penosa,
o verão parecia não ter fim.
Era tempo de fazer malas
e projectos, de trocar
pautas por desacertos,
como, no último trimestre
do liceu, quem se apaixona
e arrepende da solidão que perdeu.
Assim chegou o outono
─  depois alguém morreu.




josé alberto oliveira
resumo a poesia em 2011
assírio & alvim
2012





15 agosto 2012

jean genet / paro esta ferida —






     Paro esta ferida —
     incurável porque ele próprio, em pessoa —
     e nesta solidão,
     é que ele deve morrer;

     pode aí desencantar a força,
     a audácia e a destreza necessárias à sua arte.


     Vou pedir-te um pouco de atenção.
     E vê lá bem: para te entregares melhor à Morte,
     fazer que more em ti com a mais rigorosa exactidão,
     tens de estar sempre de boa saúde.
     A doença mais insignificante iria devolver-te à nossa vida.
     Partir esse bloco de ausência que vais ser.
     Uma espécie de humidade com bolores
     haveria de invadir-te. Vigia a saúde.


     (Se o aconselho a evitar luxos na vida privada,
     se o aconselho a andar meio sujo, usar roupa desleixada,
     sapatos cambados,
     é para ter menos à-vontade de noite,
     toda a esperança do dia se exaltar na aproximação da festa,
     a distância de uma miséria aparente
     à mais esplendorosa das aparições
     dimanar tensão tamanha
     que a dança funcione como a descarga de um grito,
     para a realidade do Circo se preservar
     nesta metamorfose em poeira de ouro,
     mas sobretudo aquele que deve suscitar imagem tão admirável
     ser morto ou, se preferirmos, arrastado pelo chão
     como o derradeiro e mais desprezível homem.

     Chego ao ponto de o aconselhar a ser manco,
     cobrir-se de andrajos, piolhos, e a cheirar mal.
     Que o seu corpo cada ‘vez se apague mais para deixar cintilar,
     ser cada vez mais brilhante,
     a imagem a que me refiro, habitada por um morto.

     Que acabe por existir só na sua aparição.)

     (...)




jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984


14 agosto 2012

rui baião / um homem duplo cego





Um homem duplo cego
aposta o limite. Um homem que se preze
presume uns degraus abaixo
do limiar da pobreza. Um homem
a ver gente vencida pelo silêncio,
a morrer aos bocados.
Um homem à beira
do fim.





rui baião
ladrador
averno
2012



13 agosto 2012

emilio adolfo westphalen / poema






Amarrado à sua sombra o bosque
Abria caminho às pegadas ardentes
Os faunos carreavam os regatos
E nos cornos da Lua uma flauta trilava
A ninfa na encosta sobre o braço descansava
Estios de florais prestígios
Entreteciam desenredavam as brisas
Nas têmporas da bela adormecida
Como se dois meninos com ele folgassem
Tantas voltas dava o mundo
De mão em mão se via percorrido
De vermes com chapéu de copa e dignidade
Os rios não se atreviam
A tocar a orla das cidades
De longe as cantavam e em surdina
Para não quebrar a quietação das muralhas
Ou turvar no recinto
A clara canção dos menestréis
Ali aparecia a bela adormecida coberta de sóis
Os seus ardentes passos tanto mediam o solo
Como o firmamento
Uma sombra de oliveiras sob os olhos
Murmúrios de água para as mãos
No mar esses olhos flutuavam sempre
E esta rama de loureiro de horizonte a horizonte
Adorno dos sonhos pendentes do céu
Não viste um sorriso fiar uma paisagem
A moçoila rindo com o céu gotejando de suas mãos
Mais sombra me davam as pestanas dela
Que uma alameda sob o triplo peso
De folhas ventos e céus
Não viste entreabrir-se a alvorada
Sobre as neves como uma fronte
Alumiando o sol e as estrelas
E a mão mais clara que a água com seu rumor
Assim me atravessaram desde a manhã à noite
As músicas geladas os dedos de aço
Com cercaduras novas seu rosto não descansava
Já sobre a dália ou sobre a nevada
Já na brisa ou no próprio coração do inverno
E na outra mão o ceptro do estio
E no outro pé o sol do outono
Os olhares carregados de resplendores de oceanos ensolarados
Cruzando o Mediterrâneo os golfinhos saltavam
Nos ares quedavam-se as tartarugas
A moçoila não despertara ainda
A flor era a plenitude dos espaços.



  


emilio adolfo westphalen
abolición de la muerte
1935
tradução de nicolau saião



11 agosto 2012

stéphane mallarmé / brisa marinha




Triste carne, ai de mim! Já li os livros todos.
Fugir! Longe fugir! As aves sinto a modos
De ser ébrias de espuma entre o mistério e os céus!
Nada, nem os jardins espelhados nos meus
Olhos, o coração retém quase afogado,
Ó noites! nem da lâmpada a ausente claridade
No branco do papel que o vazio rejeita
E nem a jovem mãe que ao peito o filho aleita.
Hei-de partir! Veleiro a mastrear, tu, larga
As amarras, demanda outra exótica plaga!
Um Tédio, desolado por esperanças cruéis,
Crê ainda nos lenços molhados dos adeus!
E talvez que esses mastros atraindo os presságios
Sejam dos que o tufão verga sobre os naufrágios
Perdidos, já sem mastros, em estéreis ilhéus...
Mas os marujos cantam, ouve, coração meu!




stéphane mallarmé
(1842-1898)
poemas de mallarmé, lidos por fernando pessoa
tradução de josé augusto seabra
poemário
assírio & alvim
2000


10 agosto 2012

enrique garcía-máiquez / as armas e as letras





Aqui onde me vêem
contar a minha experiência
sou um poeta compro-
metido até às sobrancelhas
na campanha audaz
de melhorar a terra.
E, diligente, meto
─  com vontade de luta ─
mãos à obra
no que encontro ao pé.
A batalha mais dura
trava-se-me na cabeça,
e tenho que esforçar-me
─  forçar-me ─  nesta guerra
onde o que perde, ganha
e o que ganha se rende.
A luta é sem quartel,
sem mortos, sem violência,
sem inimigos, sem
armas além das letras…





enrique garcía-máiquez
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



09 agosto 2012

joan-ives casanova / que dizem as mãos erguidas…





que dizem as mãos erguidas como para sair para as ruas
onde se nos torna difícil caminhar no côncavo da história
sem território sem paz e sem pátria porque assim o queremos
para rasgar com tristeza as cores do vento e do desejo

vejo-me reflectido em outras mãos erguidas na claridade do tempo
através da sombra negra que já não pode enegrecer sem segredo
sem atalho sem cortar o pão que se come fresco
o pão pousado na mesa azul horas docemente concedidas
 
não se pensa em escrever a história muito menos falar dela
apenas deixar-se levar ao signo pela chave do tempo
e à conversão poderosa que faz do dia o sentido possível
e pode-se não acreditar em nada salvo na nudez das palmas descobertas
quando se olha a luz das nossas mãos  à beira-mar




joan-ives casanòva
poemas
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga



08 agosto 2012

josé ángel valente / consinto




Devo morrer. E, contudo, nada
morre, porque nada
tem fé suficiente
para poder morrer.

Não morre o dia,
passa;
nem uma rosa,
apaga-se;
resvala o sol,
não morre.

Somente eu, que toquei
o sol, a rosa, o dia,
e acreditei,
sou capaz de morrer.




josé ángel valente
tradução de josé bento



07 agosto 2012

daniel pennac / como um romance





11


A intimidade perdida…

Neste princípio de insónia, repenso o ritual da leitura, todas as noites, à cabeceira da cama, quando ele era pequeno, a horas fixas e com gestos imutáveis: era de certo modo como uma oração. O súbito armistício depois da balbúrdia do dia, os reencontros livres de todas as contingências, o momento de silêncio concentrado antes das primeiras palavras da história, a nossa voz que finalmente soa como de facto é, a liturgia dos episódios… Sim, a história lida todas as noites constituía a mais bela função da oração, a mais desinteressada, menos especulativa, a que dizia respeito apenas aos homens: o perdão das ofensas. Não se confessava nenhuma falta, não havia qualquer preocupação em receber uma porção de eternidade, era um momento de comunhão entre nós, a absolvição do texto, um regresso ao único paraíso que tem valor: a intimidade. Sem que o soubéssemos, descobríamos uma das funções essenciais do conto, e mais generalizadamente da arte em geral, que é impor uma trégua no combate entre os homens.

O amor ganhava um novo rosto.

E era gratuito.


12


Gratuito. Pelo menos era assim que ele o entendia. Um presente. Um momento fora de todos os momentos. Qualquer que fossem as circunstâncias. A história nocturna aligeirava-lhe o peso do dia. Largavam-se as amarras. Ia com o vento, levíssimo, o vento que era a nossa voz.

Não lhe pedíamos que pagasse a viagem, não lhe exigíamos nada, nem um centavo, não lhe pedíamos a menor contrapartida. Nem sequer era uma recompensa. (Ai as recompensas… a necessidade de alguém se mostrar recompensado!) No nosso caso, tudo era gratuito.

A gratuidade é a única moeda da arte.
 






daniel pennacc
como um romance
trad. francisco paiva boléo
edições asa
1994






06 agosto 2012

marguerite yourcenar / nunca serei vencida





Nunca serei vencida.
Não o serei
senão à força de vencer.

Cada armadilha estendida
fechando-me cada vez mais
no amor
que acabará por ser o meu
túmulo,
acabarei a minha vida numa cela
de vitórias.

Sozinha,
a derrota encontra chaves,
abre portas.

A morte,
para atingir o fugitivo,
tem de se pôr em movimento,
perder essa fixidez
que nos faz reconhecer
que ela é o duro contrário
da vida.

Ela dá-nos o fim do cisne
atingido em pleno voo,
de Aquiles agarrado pelos cabelos
por não sabermos que sombria Razão.

Como a mulher asfixiada no vestíbulo
da sua casa de Pompeia,
a morte não faz mais do que prolongar
no outro mundo os corredores
da fuga.

A minha morte será
de pedra.

Conheço as passagens,
as curvas,
as armadilhas,
todas as minas da Fatalidade.

Não posso perder-me.

A morte,
para me matar,
terá necessidade da minha
cumplicidade.





marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995



05 agosto 2012

eloy sánchez rosillo / supõe que ainda é agosto



                      “embora o ser amado esteja ausente, perto estão suas imagens
                               e seu doce nome ressoa em nossos ouvidos.”

                                Lucrécio



      Supõe que ainda é Agosto e não estás longe
desta cidade que ainda guarda
os últimos vestígios daquela altiva chama do verão
que lentamente foi, como tudo, morrendo;     
imagina que ainda estás aqui, comigo,
na paz desta casa que a luz torna formosa
e busca na memória o esplendor dourado
dos dias perfeitos que nela — porque assim
o desejou algum deus de olhar propício —
vivemos juntos, alheios a tudo o que não fosse
nossa própria alegria de estar juntos.

      Recorda.
                      Olha. Olha essas gloriosas
manhãs: acordaste há momentos,
e esperas em silêncio que eu abra os olhos
para me dares os bons-dias e dizeres-me — hoje também —
que és feliz.
          E apontas-me depois
esse raio de sol que entra pela janela
e aqui, junto à cama, no chão, desenha
um doce charco de ouro.
                                        Não deixes que se apaguem
de tua alma os risos desse tempo,
as palavras ardentes que soavam
como um cristal finíssimo e enchiam de música
as horas do amor: o espaço inocente
da paixão satisfeita nas radiosas noites
que nossos corpos conquistaram.

                                        Contempla estas imagens,
a esquece-te desse lugar em que agora
para teu desgosto e meu desgosto habitas:
ruas cheias de outono, gente que desconhece
nossa história, terras que não são tuas,
e esse rio que em nada se parece
a este nosso daqui, que sob o sol corre
através dos hortos.

                                Oxalá sempre leves
contigo, a cada instante, minha recordação,
e estas palavras que na noite escrevo
pensando em ti, para que tu as leias,
te ajudem a estar só,
                                 e te acompanhem.





eloy sánchez rosillo
as coisas como foram
trad. josé bento
assírio & alvim
2004


04 agosto 2012

josé agostinho baptista / o destino dos amantes





Dissipa-se, no longo nevoeiro, a cintilação de um
archote,
um rasto de imponderáveis amantes.
Quem por eles clama, clama em vão.
Já os pulsos se abriram para a desolação da terra.
Estes rios não são os seus rios.
E esta água mutilada,
esta luz que fere o amplo pátio dos invernos é a sua
água, a sua luz.
Onde o raio despedaça os ténues fios do amor uma
inesperada palavra assume o desastre.
Amaram-se e perderam-se.
De pé, sobre o convés, contemplando o fim dos
navios.
O albatroz descreve os vultos imensos da saudade.
Há, sobre o olhar dos condenados,
uma aflição de sombras,
quando o sol se afasta para os eus domínios.
A sedução dos frutos é a sedução da morte e,
seduzidos, eles demandaram o grande vale.
Um arco de som vibra eternamente no centro da
tempestade.
Eles voltam-se para fora,
para a unânime certeza da escuridão do mundo.
A alma parte.




josé agostinho baptista
biografia
assírio & alvim
2000