No inverno, quando sinto um
torpor envolver-me, mergulho cheio de prazer nessas tão queridas páginas das
FJeurs du mal. Mal abro o meu Baudelaire sou lançado numa paisagem
surpreendente que revive aos nossos olhos com a intensidade das que têm a sua origem
no ópio ou na sua profundeza. No horizonte, ao alto, estende-se um céu lívido
de aborrecimento, com rasgões azuis neles feitos por uma Oração proscrita. No
caminho, única espécie de vegetação, penam algumas raras árvores em cuja casca,
dorida, se entrelaçam nervos despidos: o seu crescimento visível, apesar da
estranha imobilidade do ar, é interminavelmente seguido por um choro tão dilacerante
como o de violinos e que, atingida a extremidade dos ramos, sob a forma de
folhas musicais estremecesse. Assim que penetro nesse domínio, descubro
langorosos lagos dispersos corno canteiros de um eterno jardim: no granito
negro das suas cercaduras, em que se encastram pedras preciosas da India,
repousa uma água morta e metálica, com fontes de cobre maciças, onde um raio
bizarro se vem tristemente reflectir, com a graça das coisas fenecidas.
Nenhumas flores, em volta, por terra — mas apenas, de longe em longe, penas de
asas de algumas almas decaídas. O céu, que um segundo raio, logo seguido de
outros, finalmente ilumina, perde rapidamente a sua lividez e desprende o azul
claro desses dias de Outubro, magníficos, enquanto a água, o granito de ébano e
as pedras preciosas depressa flamejam como só o fazem, ao entardecer, os
pavimentos da cidade: é o Sol que se põe! E, oh prodígio!, uma vermelhidão singular,
em torno da qual alastra o odor enervante de cabeleiras que se soltam, cai em
cascata do céu obscuro! Tratar-se-á de um dilúvio de rosas corruptas de que o
pecado constituísse o único perfume? —Sangue?, ou uma pintura?— Estranho pôr do
Sol! Ou iimitar-se-á esta inundação unicamente a ser o rio das lágrimas
avermelhadas pelo fogo de artifício de um Satã saltimbanco que, escondido, mexe
os cordelinhos? Ouçam como cai com um ruído de beijos, lascivo... Por fim
trevas de tinta invadem tudo e ouve-se apenas, com o remorso e a Morte,
esvoaçar o crime. Então cubro o rosto e um choro arrancado menos da minha alma
por tal pesadelo do que por uma amarga sensação de exílio, atravessa o negro
silêncio. Pátria—O que é para nós afinal o país mais íntimo?
Fecho o livro, os olhos, e
procuro-a. Diante de mim ergue-se a aparição do sábio poeta que m’a aponta por
meio de um hino misticamente ascendente, como se fosse um lírio. O ritmo desse
canto assemelha-se à rosácea de uma velha igreja: no meio da ornamentação de
cantaria antiga, com um seráfico sorriso ultramarino que parece mais ser a oração que dos seus olhos azuis se
desprende do que o nosso costumado azul, anjos, fazendo-se acompanhar de
harpas, imitação das suas asas ou címbalos de um ouro primitivo, da brancura
das óstias o seu êxtase entoam — puros raios agora modelados como trombetas e
tamborins onde ainda ressoa a virgindade dos trovões imaturos. — As santas
trazem palmas, e embora eu não levante o olhar mais alto do que as virtudes
teologais — de tal forma a santidade do lugar é inefável —, ouço ribombar
infindavelmente o agradecimento: Aleluia!
(*) Este texto de Mallarmé, quo
aqui apenas reproduzimos parcialmente, foi publicado pela primeira vez sob a
forma de artigo» no número de 1/2/1865 do jornal L’artiste. Neste texto
Mallarmé, além de Charles Baudelaire, refere-se também a Théophile Gautier e a
Thóodore Bainville. Posteriormente Mallarmé corrigiu a redacção inicial do
«artigo», tendo anotado à margem uma nova sugestão de título: «No meu divã, com
três livros — invocação, seguida de solilóquio». (N. do T.)
stéphane mallarmé
baudelaire
escritos íntimos
tradução de fernando guerreiro
editorial estampa
1994