[para o Zé, que nunca lerá este poema]
Negro,
trinta e dois anos,
dealer.
Pensava que a guerra
no Kosovo
tinha por motivo único
a
resistência à conversão em euros
─ e talvez
nisso tivesse, afinal, uma obscura
razão.
Noutra noite, vi-me obrigado
a
explicar-lhe o melhor que pude
o que era o
FMI - que ele decerto
interpretou
como um partido de 'tugas
vagamente
hermético. De facto, é outra
a sua
economia: contos de xamon, pastilhas,
piropos de
esquina, os dois ou três filhos
de que
apenas bêbedo se lembra.
Mas não é
bem disso que eu hoje
queria
falar. Passámos a noite
lado a lado,
no mesmo balcão.
Demorei
algum tempo a cumprimentá-Io
─ «tá-se?». Pediu logo grandes, imensas
desculpas
por não me ter visto.
Que era
«pressa de viver», garantiu-me,
aquilo que
nos torna tão cegos é
às
evidências, ao rosto desse próximo
que só por bíblico
acaso amamos
─ quando o ódio, mais discreto,
dá nome e
sentido às ruas.
Fingi
acreditar, procurei não
desmentir o
seu olhar verde
vindo de
outro qualquer planeta.
Seria
difícil explicar-lhe àquela hora
a compulsiva
demora de morrer
que me faz
sair de casa e procurar,
entre
ninguém, a pior das companhias: eu.
Acabou por
levar para a rua
uma imperial
de plástico, lembrado
talvez dos
possíveis clientes
a quem
ajudará a esquecer um emprego,
o desamor, o
calor sinistro deste Verão.
Na verdade,
pouco mais haveria
a dizer
sobre este corpo brando que
há vários
anos se encosta às minhas noites.
Serve-me de
escudo para os bárbaros mais novos
─ e protege-se, o melhor que pode,
da rusga sem
objecto a que chamamos vida.
manuel de freitas
[ sic ]
assírio
& alvim
2002