21 maio 2012

hans-ulrich treichel / como joyce em trieste






Desço de carro pela margem do Arno,
com o livro de alemão sobre os joelhos, como
Joyce em Trieste, atravesso distraído
zonas de peões, vejo os meus ombros
em todas as montras, e é tudo, nem
danças nas praças, nem raparigas
com vestidos de seda, nos arbustos, Ulisses,
com ar de parvo, sorri embaraçado,
de que me servem as palavras?, tusso,
agradeço, isto não vale um chocolate,
e entro num café para morrer.




hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994



20 maio 2012

emilio adolfo westphalen / tristemente…






Tristemente deixei descansar a minha cabeça
Na sombra que cai do ruído dos teus passos
Voltando à outra margem
Imponente como a noite para te negar
Abandonei as manhãs e as árvores cravadas na minha garganta
Deixei até a estrela que galopava entre os meus ossos
Larguei mesmo o meu corpo
Como o náufrago as barcas
Ou as lembranças quando as marés se vão
E espalham estranhos olhos sobre as orlas do mar
Abandonei o corpo
Como um cobertor para com a mão liberta
Apertar o cerne de uma estrela molhada
Não me ouves sou mais leve que as folhas
Porque me livrei de toda a ramaria
E o ar não consegue aprisionar-me
Nem as águas tampouco me detêm
Não me ouves chegar mais poderoso que a noite
E as portas que ao meu sopro não resistem
E as cidades quietas para que não note as suas presenças
E o bosque entreaberto como a madrugada
Que busca apertar o mundo entre os seus braços
Ave belíssima que no paraíso irá cair
A tua fuga derribou todas as tendas
E eis que os meus braços fecharam as muralhas
E até os ramos se inclinam para te impedir a passagem
Frágil corça deves temer a terra
E o ruído dos teus passos em cima do meu peito
Já se cerraram os cercos
E o peso da minha ansiedade far-te-á cair
Os teus olhos irão fechar-se sobre os meus
E a tua doçura brotará como os chifres novos
E a tua meiguice crescerá como a sombra que me envolve
A cabeça deixei que rodasse
O coração deixei que caísse
Já nada tenho que me assegure que irei alcançar-te
Pois que tens pressa e tremes como a noite
Talvez eu não atinja a outra margem
Porque não tenho mãos que abarquem o espaço
Entre o que está desperto e o que vai morrendo
Nem pés que pesem sobre o esquecimento
De tantos ossos e tantas flores mortas
Talvez eu não alcance a outra margem
Se a última folha já foi por nós lida
E a música entreteceu a luz em que hás-de cair
E os rios te impedem o caminho
E as flores te chamam mas com a minha voz
Rosa imensa chegou a hora de deter-te
O estio ressoa como degelo para os corações
E as madrugadas tremem como árvores ao acordar

Todas as saídas estão guardadas
Rosa imensa não irás tombar?





emilio adolfo westphalen
abolición de la muerte
1935
tradução de nicolau saião




19 maio 2012

rui costa / a nuvem prateada das pessoas graves


   


Nem sempre se deve desconfiar das pessoas
graves, aquelas que caminham com o pescoço inclinado para baixo,
os olhos delas a tocar pela primeira vez o caminho que os pés confirmarão
depois.
Às vezes elas vêem o céu do outro lado do caminho que é o que lhes fica por baixo
dos pés e por isso do outro lado do mundo.
O outro lado do mundo das pessoas graves parece portanto um sítio longe dos pés
e mais longe ainda das mãos
que também caem nos dias em que o ar pode ser mais pesado e os ossos
se enchem de uma substância morna que não se sabe bem o que é.
Na gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, com que nos são alheias
quando as olhamos de frente rumo ao lado útil do caminho que escolhemos, essas
pessoas arrastam uma nuvem prateada que a cada passo larga uma imagem daquilo
que foram ou das pessoas que amaram.
Essas imagens podem desaparecer para sempre se forem pisadas quando caem no
chão. A gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, dessas
pessoas, é, por isso, uma subtil forma de cuidado.

  



rui costa
a nuvem prateada das pessoas graves
quasi
2005


18 maio 2012

gonzalo sánchez- terán / correndo atrás dos antílopes






Traz o vinho e as flautas, vai chover,
o nosso ofício não é a vitória, irmão,
não apagues a candeia, entre esta noite
e a tua velhice só medeia o tempo,
usa as bandeiras como mantas
e recolhe os nomes sem as suas coisas
que os naufrágios deixam nos areais,
a nossa ocupação é a derrota,
vagueia despojado nas avenidas
como um diabo tentado pela luz,
desenha-te no corpo de uma fêmea
como uma blusa molhada e demora
a tua carroça longe do mercado
enquanto choram as virgens de gesso
porque a nossa tarefa é escrever
os poemas inúteis, irmão.
Mas caia-te o sal sobre as terras,
estabeleça-se a dor à tua porta,
prosperem os traidores na tua ruína,
precedam-te os filhos na morte,
perde o gado e a tua companheira
e supliques piedade a quem te odeia
e reclames amor de quem te teme
e formes no pelotão dos tristes
e revolva a enxaqueca o teu cérebro
e os juízes injustos te persigam
se escreveres um poema desnecessário.





gonzalo sánchez-terán
desvivirse
tradução de manuel rodrigues
colección visor de poesía
madrid


17 maio 2012

àlex susanna / esgotos





Este rio poluído
onde se despejam tantos resíduos
bem se parece com a nossa alma,
com a ligeira cambiante
de que cada um é o único a saber
a massa enorme de dejectos
que tal corrente em nós transporta.




àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves




16 maio 2012

elmer diktonius / pressentimento




Uma semente germina no meu cérebro,
sugando a medula da vida e o seu fluxo.
O meu barril terá a cor do sangue, eu sei
que acabarei por enlouquecer.


O meu túmulo não terá coroa de flores,
não terá uma cruz cristã com palavras de luz.
Vento do norte. Uma noite de Inverno.
Mas debaixo do gelo a seiva há-de ferver.




elmer diktonius
(finlândia, 1896-1961)
tradução de josé agostinho baptista


15 maio 2012

antoni clapés / era a luz, era a forma de uma luz





Era a luz, era a forma de uma luz
Interior, um rumor como um véu
que cobria o silêncio e as palavras.
Era um (espaço) deserto
dilacerado em infinitos sinais fragmentados.
Era o tempo que volvia, fulgor do relâmpago
no vazio, no próprio relâmpago.
Era o poema, era o poeta do poeta.

Era a poesia habitada




antoni  clapés
poemas                                      
tradução de egito gonçalves




14 maio 2012

guy goffette / fica se vens para ficar





(...)
Não fales ainda. Escuta o que foi
lâmina na minha carne: cada passo, um riso ao longe,
o latir do cachorro, o bater da portada
e este comboio que não acaba de passar

sobre os meus ossos. Fica sem palavras: não há nada
a dizer. Deixa a chuva tornar a ser a chuva
e o vento esta maré sob as telhas, deixa

o cão gritar o seu nome na noite, a portada
bater, ir-se embora o desconhecido neste lugar nenhum
onde morro. Fica se vens para ficar.






guy goffette
l'attente
la vie promise
paris
2000



12 maio 2012

manuel antónio pina / It's allright, ma...









Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue,
o sangue vai e vem,
tenho muito sangue.
 
Não tenho é paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço, deixaste-me
pouco espaço para tanto existência).

Lembranças a menos
faziam-me bem,
e esquecimento também
e sangue e água a menos.

Teria cicatrizado
a ferida do lado,
e eu ressuscitado
pelo lado de dentro.

Que é o lado
por onde estou pregado,
sem mandamento
e sem sofrimento.

Nas tuas mãos
entrego o meu espírito,
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.

Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração,
estou só a morrer em vão



manuel antónio pina




11 maio 2012

yehuda amichai / a escola onde estudei



  


Passei pela escola onde estudei enquanto rapaz
e disse do fundo do coração: aqui aprendi certas coisas
e não aprendi outras. Toda a minha vida amei em vão
as coisas que não aprendi. Estou coberto de conhecimento,
sei tudo sobre o crescimento da árvore do conhecimento,
a forma das suas folhas, a função do seu sistema de raízes, os seus insectos parasitas.
Sou um especialista na botânica do bem e do mal,
e ainda estou a estudá-la, e continuarei a estudá-la até ao dia em que morrer.
De frente para o edifício, olhei para o seu interior. Esta é a sala
onde nos sentámos e aprendemos. As janelas de uma sala de aulas sempre
abertas
para o futuro, mas na nossa inocência pensávamos que era apenas paisagem aquilo que víamos da janela.
O recreio era estreito, pavimentado com pedras largas.
Relembro o breve tumulto de nós os dois
junto dos frágeis degraus, o tumulto
que era o início de um primeiro grande amor.
Agora ele existe para além de nós, como num museu,
como tudo o resto em Jerusalém.




yehuda amichai
(alemanha, 1924 – israel, 2000)
tradução de miguel gonçalves




10 maio 2012

herberto helder / os olhos luciferinos dos anjos





Os olhos luciferinos dos anjos.

Quero dizer: têm uma luz — possuem a qualidade
veemente mas fria da espera, da promessa: sim?, da anunciação.

Penso nas estátuas brancas,
com seus olhos desprovidos de pupilas.
Colocadas assim nas trevas, essas estátuas
ressaltam com uma doçura dolorosa e intempestiva
e parecem indicar outro tempo: a luz, ou a treva maior,
aquela que nem somos capazes de presumir.

Deste modo é que ela surgira no pórtico,
e havia os pequenos e fortes cornos
que irrompiam ao cimo da testa,
acompanhando com maligna e rápida subtileza
o movimento da cabeleira.

Aérea, a cabeleira.
Existia ainda uma boca para todo o silêncio.
Porque se tratava de silêncio, evidentemente.
Era esse o tema — é esse o tema das aparições.

Além do longo vestido, o tema branco — que obliquamente se insinuava,
como se insinuam os múltiplos planos — no tema das trevas.

Ah, sim: era o tema branco,
e as mãos não traziam nenhum lírio pictórico,
a haste comprida, a corola consagrada à alta e luminosa
representação do angelismo.

Os braços caíam ao longo do vestido
e as mãos estavam coladas às pernas.

Era quase um emblema ambíguo — sê-lo-ia,
se o tempo houvesse parado antes,
e eu apenas tivesse ali chegado
como se chega à história antiga, ao facto de pedra:
um monumento, uma capela, um túmulo,
a casa do príncipe que criara a concentração dos seus mitos tumultuosos
na matéria adormecida.

Porque andava, eu, andava de um lado para outro,
na penumbra em que se erguia a sobreposição de cilindros,
de diâmetro cada vez menor,
conforme se levantava a vista até ao cimo — e no cimo,
no último pequeno cilindro, estava um longo mastro nu,
sem bandeira de cidade ou nação.

Era difícil pôr-se a imaginar o serviço de todos os pórticos
abertos à roda de cada cilindro — não se esperasse,
como seria possível, que em cada pórtico surgisse uma árvore
assim direita, uma figura, aquela mensagem silenciosa e vibrante
coisa mineral, vegetal: o coração dos dias desabitados.

Uma diferente figura em cada pórtico,
ou a proliferação, numa momento inflacionista,
de imagens todas iguais, como múltiplos avisos,
múltiplos sinais da trepidação interior?

Por quantos lados ressuscita a vida enterrada?

Ë apenas para que se saiba:
há muitos pórticos,
e em cada pórtico tu próprio podes aparecer,
para o primeiro passo em direcção ao teu lugar de trevas
ou à cidade de Deus.

Mas ela era só uma e tinha para si um só pórtico,
e ali estava, e a sua beleza contraditória e veloz
acabava agora mesmo de ferir-me no que eu andava:
por que eu andava de cá para lá, à frente do edifício.

Acorda-se, há um dia em que se acorda
— e então a gente põe-se a andar.

(…)


  




herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968





09 maio 2012

josé antónio almeida / ao anoitecer






Sou um velho rato celibatário
─ a lei não me permite casamento.

Outros encontram sem dificuldade
o universo pronto a vestir
  
logo de manhã, desde que nasceram.
Depois trajam todas as convenções

─ que lhes assentam bem, do colarinho
às mangas, até parece que Deus

é um alfaiate por conta deles.
A nós, a melhor roupa fica mal

─ em nenhuma loja vendem sapatos
que nos deixem ir noutra direcção,

nem anel que não faça propaganda
à ordem sempre «natural» do mundo.






josé antónio almeida
rumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010



08 maio 2012

fiama hasse pais brandão / pequeno uso para a dor






Até a dor
já tem palavras certas
expressão pequena
seja ou não seja breve


Seja ou não
por mais palavras
postas
não cede a dor
ao som

Mas dizem-se palavras
uma expressão pequena
a dor não sendo já
ou até deixar de ser




fiama hasse pais brandão
o texto de João zorro
nome lírico
editorial inova
1974