26 março 2012

william carlos williams / soneto em busca de um autor





Os corpos nus como troncos sem casca
exalam às vezes um odor tão
doce, homem e mulher

debaixo das árvores loucamente
em harmonia com o tapete de

aromáticas folhas de pinheiro
bordadas com videira virgem
disso poderia fazer-se um soneto

Disso poderia fazer-se um soneto! louco odor
odor de agulhas de pinheiro, odor de
troncos sem casca, somente odor
de videira virgem que

não sem odor, odor de mulher nua
por vezes, odor de homem





william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993



24 março 2012

samuel beckett / rondel





pela praia fora
ao final do dia
só som de passos
longo som só
que inesperado fica
som nenhum depois
pela praia fora
longo som nenhum
que inesperado parte
só som de passos
longo som só
pela praia fora
ao final do dia

1976




samuel beckett
relâmpago” nr.13
trad. manuel portela
10/2003




23 março 2012

paulo teixeira / auto-de-fé

  


Quando o amor é como os papéis velhos
e anseia por mais arte que a do poema
o coração é o forno onde ardem palavras.

                    *

Nesse dia  elas foram, amarradas com barbante,
viúvas precipitando-se dentro da pira.
Fiquei a vê-las abrirem-se como pétalas
para  logo definharem a meus olhos
numa florescência não cumprida.
O seu frémito era ainda uma ânsia minha.

Remexi as cinzas, agitei o ar com as mãos.
Vi como um poema se mostra servil ante o fogo.
E pensei: ardessem também os meus dedos!
Para que o poema não deixe crias ao morrer
e não mais confira o direito à vida
do que nele vai escrito.

                    *

Porque o amor é a arte que fica além do poema,
no dia em que não escrever mais poemas
sei que o amor resgatará o meu corpo da chama.





paulo teixeira
autobiografia cautelar
gótica
2001




22 março 2012

mendes de carvalho / psicose






Não vou sair daqui.
Nada de obrigações.
Hoje sou clandestino,
sou evadido das horas
e  dos caminhos de tudo.


Levantei-me cedo
para ver nascer
e morrer o sol
no fundo do horizonte.


Música no violino do velho
(que é realmente cego, por acaso).

Hoje não tenho pressa para nada
desta vida  ou sequer da outra.
Vou deixar de olhar para o relógio
(de resto anda sempre por acertar)
e vou perder todos os comboios
certos ou mesmo atrasados.
Vou ficar aqui a apanhar
este solzinho de Outono acolhedor.

Tombam folhas da música do violino.

Passam pessoas apressadas
a cruzar em todos os sentidos,
com direcções únicas e certas
ou erradas (nada tenho com isso).
Passam operários sujos, costureiras,
corretores de bolsa, directores,
senhores obesos de automóvel,
senhoras muito bem vestidas,
senhoras muito bem senhoras,
marçanos, vendedores de jornais,
pessoas honestas, pessoas traidoras
(nada têm que dar-me conta dos seus actos),

          pessoas pessoas pessoas
          numa parada de gestos,
          numa parada de fatos,
          numa parada de sentimentos,
          numa parada de verdades,
          numa parada de mentiras,
          numa parada de sonhos,
          numa parada de certezas,

para o grande espectáculo do teatro quotidiano
com artistas certos nos seus verdadeiros papéis
certos ou errados — isso é lá com eles
(hoje fechei o coração ao sentimentalismo).


Música agitada no violino do velho
Hoje não! nem sequer o almoço.
Que o ponham na mesa e fiquem à espera
da minha presença física.
Que telefonem para a polícia,
para os hospitais, para a Morgue
a perguntar por mim.
(Nunca ninguém perguntou por mim,
excepto eu, já se vê).
Que dêem todos os meus sinais
(nunca serão completos — serão mesmo falsos,
posso garantir.
Além disso não trago a gravata branca.
Deitei-a fora e abri o colarinho.
não me podem descobrir pela coleira).


Todos vão para suas casas:
costureiras, operários,
colegiais, professores,
empregados, marçanos,
«manicures», polícias, toda a gente
                                         toda a gente
                                         toda a gente
                                         — e até os cães vadios
No doce regresso ao lar.

Música de família no violino do velho.

Saem e entram a barra grandes navios.
Cai a noite e vêm vultos.
E eu uma sombra
identificada com a noite sem lua.

Não irei sequer bater à porta dela
(por que hei-de  ser sempre eu a ir ter com ela?).
Que se pinte, solte os cabelos,
vista o «robe de chambre» cor de rosa,
transparente, decotado e sensual.
Ponha no corpo esbelto e moreno
perfumes de estranhos orientes
e aguarde que eu chegue amante
e desespere e chore, se quiser.
Hoje fico indiferente à sua carne.

Música de amor no violino do velho.

Não! ainda não vou para casa.
Vou assistir agora a um grande espectáculo
de sombras do outro mundo,
ao grande espectáculo sem encenação.
Há-de passar Rogogine
com Natacha Fílipovna morta nos seus braços.
Há-de passar Nero com incêndios nos olhos,
Otelo louco de vingança,
Hamlet declamando uma única frase:
                        «To be or not to be»,
Ofélia cantando e morrendo flor,
Fernando Pessoa lendo em voz sonolenta
os seus «Thirty five sonnets»,
Sá-Carneiro na sua última casaca,
Voltaire em sinistras gargalhadas,
Fausto montado numa vassoura de 2 cornos,
D. Quixote correndo atrás dos moinhos de vento,
Cleópatra com uma víbora nos seios,
Edgar Pöe e um corvo sinistro,
Byron de braço dado em 1800
com a linda Margaret Parker,
Algernon Swinburne todo vestido de fogo,
Lorca entre «la guardia civil»,
Beethoven cheio de música nos cabelos,
Castro Alves e uma multidão de escravos,
Dante seguindo Beatrice entre nuvens.
Hão-de passar todos os grandes amorosos,
todos os grandes aventureiros,
todos os grandes loucos
para a grande peça trágico-cómico-dramática,
vestidos de todas as cores,
falando todas as línguas,
tocando todas as músicas
─ numa  confusão de loucura.


Música triste e alegre,
lenta e vertiginosa no violino do velho.


E depois, oh! depois, sim!
levantar-me-ei daqui.
Irei bater a todas as portas,
chamarei toda a gente para a rua
(ninguém ficará na cama:
nem velhos, nem coxos, nem cegos.
Ninguém!)
e farei as apresentações na língua de Rimbaud:
Monsieur Castro — Monsieur Goethe.
Monsieur Silva —  Monsieur Dostojevski.
Comment? Vous ne vous comprenez pas?
Par1ez fort, plus fort! Críez! Criez!

Ah! hei-de místurá-Ios todos, todos, todos
— numa confusão diabólica.
Chamarei todos os velhos dos violinos
para o estranho concerto sem partitura.

E depois, oh! depois, sim!
vou para casa e vou pôr-me à janela
para anunciar o primeiro e o último espectáculo
da peça sem autor,
o grande espectáculo das marionettes humanas.

E haverá música
                 músíca
                 músíca
                 música
no violino do tempo.


Quebrarei a ampulheta do tempo!




mendes de carvalho
satírica
circulo de leitores
1974




21 março 2012

gil t. sousa / epitáfio





48

amei com palavras grandes
e secretas

amei com versos limpos



gil t. sousa
falso lugar
2004





20 março 2012

daniel faria / houvesse um sinal a conduzir-nos





Houvesse um sinal a conduzir-nos
E unicamente ao movimento de crescer nos guiasse. Termos das árvores
A incomparável paciência de procurar o alto
A verde bondade de permanecer
E orientar os pássaros





daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998



19 março 2012

herberto helder / as musas cegas (ii)





Apagaram-se as luzes. É a primavera cercada
pelas vozes.
E enquanto dorme o leite, a minha casa
pousa no silêncio e arde pouco a pouco.
No círculo de pétalas veementes cai a cabeça -
e as palavras nascem.
 - Límpidas, amargas.


Eis um tempo que começa: este é o tempo.
E se alguém morre num lugar de searas imperfeitas,
é o pensamento que verga de flores actuais e frias.
A confusão espalha sobre a carne o recôndito peso do ouro.
E estrelas algures aniquilam-se para um campo sublevado
de seivas, para a noite que estremece
fundamente.


Melancolia com sua forma severa e arguta,
com maçãs dobradas à sombra do rubor.
Aqui está a primavera entre luas excepcionais e pedras soando
com a primeira música de água.
Apagaram-se as luzes. E eu sorrio, leve e destruído,
com esta coroa recente de ideias, esta mão
que na treva procura o vinho dos mortos, a mesa
onde o coração se consome devagar.


Algumas noites amei enquanto rodavam ribeiras
antigas, degrau a degrau subi o corpo daquela que se enchera
de minúsculas folhas eternas como uma árvore.
Degrau a degrau devorei a alegria -
eu, de garganta aberta como quem vai morrer entre águas
desvairadas, entre jarros transbordando
húmidos astros.


Algumas vezes amei lentamente porque havia de morrer
com os olhos queimados pelo poder da lua.
Por isso é de noite, é primavera de noite, e ao longe
procuro no meu silêncio uma outra forma
dos séculos. Esta é a alegria coberta de pólen, é
a casa ligeira colocada num espaço
de profundo fogo.
                                  E apagaram-se as luzes.


- Onde aguardas por mim, espécie de ar transparente
para levantar as mãos? onde te pões sobre a minha palavra,
espécie de boca recolhida no começo?
E é tão certo o dia que se elabora.
Então eu beijo, degrau a degrau, a escadaria daquele corpo.
E não chames mais por mim,
pensamento agachado nas ogivas da noite.


É primavera. Arde além rodeada pelo sal,
por inúmeras laranjas.
Hoje descubro as grandes razões da loucura,
os dias que nunca se cortarão como hastes sazonadas.
Há lugares onde esperar a primavera
como tendo na alma o corpo todo nu.
Apagaram-se as luzes: é o tempo sôfrego
que principia. - É preciso cantar como se alguém
soubesse como cantar.



 
herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996




17 março 2012

clarice Lispector / a paixão segundo g. h.




Mas há alguma coisa que é preciso ser dita, é preciso ser dita.
— Vou te dizer o que eu nunca te disse antes, talvez seja isso o que está faltando: ter dito. Se eu não disse, não foi por avareza de dizer, nem por minha mudez de barata que tem mais olhos que boca. Se eu não disse é porque não sabia que sabia — mas agora sei. Vou-te dizer que eu te amo. Sei que te disse isso antes, e que também era verdade quando te disse, mas é que só agora estou realmente dizendo. Estou precisando dizer antes que eu... Oh, mas é a barata que vai morrer, não eu! não preciso desta carta de condenado numa cela...
— Não, não quero te dar o susto do meu amor. Se te assustares comigo, eu me assustarei comigo. Não tenhas medo da dor. Tenho agora tanta certeza assim como a certeza de que naquele quarto eu estava viva e a barata estava viva: tenho a certeza disto: de que as coisas todas se passam acima ou abaixo da dor. A dor não é o nome verdadeiro disso que a gente chama de dor. Ouve: estou tendo a certeza disso.
Pois, agora que não estava mais me debatendo, eu sabia quietamente que uma batata era aquela, que dor não era dor.
Ah, tivesse eu sabido do que ia acontecer no quarto, e teria pegado mais cigarros antes de entrar: eu me consumia na vontade de fumar.
—Ah, se eu pudesse te transmitir a lembrança, só agora viva, do que nós dois já vivemos sem saber. Queres te lembrar comigo? oh, sei que é difícil: mas vamos para nós. Em vez de superar-nos. Não tenhas medo agora, estás a salvo porque pelo menos já aconteceu, a menos que vejas perigo cm saber que aconteceu.
É que, quando amávamos, eu não sabia que o amor estava acontecendo muito mais exactamente quando não havia o que chamávamos de amor. O neutro do amor, era isso o que nós vivíamos e desprezávamos.
Estou falando é de quando não acontecia nada, e a esse não acontecer nada chamávamos de intervalo. Mas como era esse intervalo?
Era a enorme flor se abrindo, tudo inchado de si mesmo, minha visão toda grande e trémula. O que eu olhava, logo se coagulava ao meu olhar e se tornava meu — mas não um coágulo permanente se eu o apertasse nas mãos, como a um pedaço de sangue coagulado, a solidificação se liquefazia de novo em sangue por entre os dedos.
E só não era o tempo todo líquido porque, para eu poder colher as coisas com as mãos, as coisas tinham que se coagular como frutas. Nos intervalos que nós chamávamos de vazios e tranquilos, e quando pensávamos que o amor parara...
Lembro-me de minhas dores de garganta de então: as amígdalas inchadas, a coagulação em mim era rápida. E facilmente se liquefazia: minha dor de garganta passou, dizia-te eu. Como geleiras no verão, e liquefeitos os rios correm. Cada palavra nossa — no tempo que chamávamos de vazio — cada palavra era tão leve e vazia como uma borboleta: a palavra de dentro esvoaçava de encontro à boca, as palavras eram ditas mas nem as ouvíamos porque as geleiras liquefeitas faziam muito barulho enquanto corriam. No meio do fragor líquido, nossas bocas se mexiam dizendo, e na verdade só víamos as bocas mexendo-se mas não as ouvíamos — olhávamos um para a boca do outro, vendo-a falar, e pouco importava que não ouvíssemos, oh, em nome de Deus pouco importava.
E em nome nosso, bastava ver que a boca falava, e nós ríamos porque mal prestávamos atenção. E no entanto chamávamos esse não-ouvir de desinteresse e de falta de amor.
Mas na verdade como dizíamos! dizíamos o nada. No entanto tudo tremeluzia como quando lágrimas grossas não se desprendem dos olhos; por isso tudo tremeluzia.
Nesses Intervalos nós pensávamos que estávamos descansando de um ser o outro. Na verdade era o grande prazer de um não ser o outro: pois assim cada um de nós tinha dois. Tudo iria acabar, quando acabasse o que chamávamos de intervalo de amor; e por que ia acabar; pesava trémulo com o próprio peso de seu fim já em si. Lembro-me de tudo isso como através de um tremor de água.
Ah, será que nós originalmente não éramos humanos? e que, por necessidade prática, nos tornamos humanos? isso me horroriza, como a ti. Pois a barata me olhava com sua carapaça de escaravelho, com seu corpo rebentado que é todo feito de canos e de antenas e de mole cimento — e aquilo era inegavelmente uma verdade anterior a nossas palavras, aquilo era inegavelmente a vida que até então eu não quisera.
— Então — então pela porta da danação, eu comi a vida e fui comida pela vida. Eu entendia que meu reino é deste mundo. E isto eu entendia pelo lado do inferno em mim. Pois em mim mesma eu vi corno é o inferno.

  


clarice lispector
a paixão segundo g.h.
relógio d’ água
2000




15 março 2012

nuno rocha morais / ao teu lado, mudo.

   
                         Invadiu-me uma sensação de calma,
                         de tristeza e de fim.

                         virgínia woolf





Ao teu lado, mudo.
Suponho que pousei a mão
No teu ombro, não sei,
Ausentes, ambos,
Tu do ombro, eu da mão.
Lá fora, não muito longe
Do vidro, a manhã passa
E é calma, tristeza, fim.




nuno rocha morais
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010





14 março 2012

jean-arthur rimbaud / bárbara






Muito depois dos dias e das estações,
dos seres e dos países.

O estandarte de carne sangrando sobre
a seda dos mares e das flores árcticas
(que não existem).

Liberto das velhas fanfarras de he-
roísmo ─  que ainda nos assaltam o co-
ração e a mente ─  longe dos antigos
assassinos ─

Oh! O estandarte de carne sangrando
sobre a seda dos mares e das flores
árcticas (que não existem).

Os braseiros, chovendo em bátegas de
gelo ─  Doçuras! ─  os revérberos da chuva
de diamantes vindos do coração terres-
tre para nós eternamente carbonizado.
─  Ó mundo! ─

(longe das antigas retiradas e dos
velhos incêndios que ainda sentimos,
ainda ouvimos),

Braseiros e espumas. E música, revirar
de abismos e impacto de flocos de neve
nos astros.

Ó Doçuras, ó mundo, ó música! For-
Mas, suores, cabelos e olhos, flutuando.
E as lágrimas brancas, ferventes ─  ó do-
çuras! ─ e a voz feminina chegando ao
fundo dos vulcões e das grutas árcticas.


O estandarte…



   


jean-arthur rimbaud
iluminações
uma cerveja no inferno
trad. mário cesariny
estúdios cor
1972



  

13 março 2012

fiama hasse pais brandão / analogia silenciosa





Emocionava-me a analogia silenciosa
do tumulto do comboio
e do cortejo das nuvens. Via-os
e ouvia-os segundo o princípio de identidade
entre a natureza superior e inferior. Imagino
a passagem monocórdica e invisível dos ventos
que desfazem, uivam e arrastam.
Os sons nocturnos e diurnos fundem-se.
Assim como os volumes e os sulcos
no céu eram perfeitas formas celestes
que obsessivamente me lembravam
os caminhos ao rés da terra.






fiama hasse pais brandão
três rostos
âmago II (nova natureza) 1985-1987
assírio & alvim
1989


  

12 março 2012

josé tolentino mendonça / moradas provisórias





Passava aí as férias
debruçado sobre o mar
pensava se haveria no mundo
caminhos que nos conduzam

não chegava a conclusão
ou nem dava por ela
hesitante nessas moradas
de regras tão imprecisas

existe um momento
pouco importa qual
em que se reúnem ao acaso
diante de nós
todas as condições de uma vida
desesperada




josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999




10 março 2012

thomas mann / morte em veneza




Imagem e espelho! Os seus olhos abraçaram a nobre silhueta adiante, na borda do mar azul, e, num arroubo de encantamento, teve a percepção de que este relance o compenetrava da própria essência do belo, da forma como pensamento divino, da perfeição única e pura que habita o espírito e ali erigia, para adoração, uma imagem, um símbolo claro e gracioso. Era esse o seu êxtase. E o artista no declínio da vida acolheu-o sem hesitar, avidamente mesmo. O seu espírito abriu-se como que em trabalho de parto, toda a sua formação e cultura efervesceram, sofreram mutação, a sua memória fez aflorar pensamentos primitivos, transmitidos como lendas à sua juventude e até então nunca avivados por chama própria. Não estava escrito que o sol diverte a nossa atenção das coisas do intelecto para as coisas dos sentidos? Segundo se dizia, ele atordoa e enfeitiça a razão e a memória, ao ponto de a alma, afundada em prazer, esquecer totalmente o seu estado real, ficando presa em êxtase ao mais belo dos objectos iluminados pelo Sol, e então é só com a ajuda de um corpo que ela encontra forças para se elevar a contemplações mais altas. Na verdade, Amor fazia o mesmo que os matemáticos, apresentando às crianças não dotadas imagens tangíveis das formas puras: assim o deus se comprazia em servir-se também, para nos tornar visível o espiritual, da forma e cor da juventude humana, que enfeitava com todo o esplendor da beleza, para instrumento da lembrança, fazendo-nos inflamar, ao vê-la, de dor e esperança.
Assim pensava o espírito exaltado de Aschenbach; assim se revelava o poder dos seus sentimentos. E o marulhar das águas e o brilho do Sol teceram a seus olhos uma imagem encantadora. Era o velho plátano não distante das muralhas de Atenas — aquele local divinamente sombrio, cheio da fragrância das flores de agnocasto, ornado de imagens sagradas e oferendas piedosas em honra das ninfas e de Acheloo. O ribeiro caía límpido aos pés da árvore frondosa, sobre cascalho liso: os grilos cantavam. Sobre a relva, porém, que descia em declive ligeiro, onde se podia, estando deitado, manter a cabeça mais alta, estavam dois homens estendidos, ali protegidos do calor intenso do dia: um velho e um rapaz, um frio, o outro belo, a sapiência a par da graça. E, entre graças e brincadeiras espirituosas, Sócrates ilustrava Fedro acerca do desejo e da virtude. Falava-lhe do sobressalto ardente sofrido pela pessoa sensível quando esta vislumbra uma imagem da beleza eterna; falava--lhe do apetite do impuro e do mau, que não pode conceber a beleza, ao ver a sua imagem, e é incapaz de veneração; falava-lhe do temor sagrado que assalta o virtuoso à aparição de um semblante divino, um corpo perfeito — como ele estremece e se transporta, mal ousando olhar, venerando aquele que possui a beleza, sim, estando disposto a oferecer-lhe sacrifícios como a uma estátua, se não receasse passar por louco. Pois que a beleza, meu Fedro, e só ela, é digna de ser amada e visível ao mesmo tempo: ela é — nota bem! — a única forma do espiritual que recebemos através dos sentidos e que podemos suportar pelos sentidos. Ou então, o que seria de nós se, por outro lado, o divino, a razão, a virtude e a verdade se nos quisessem revelar através dos sentidos? Acaso não morreríamos e nos consumiríamos de amor, como outrora Sémele perante Zeus? Assim, a beleza é o caminho do homem sensível para o espírito — só o caminho, um meio apenas, pequeno Fedro... E em seguida proferiu o mais subtil, aquele cortejador astuto: ou seja, que o amante é mais divino que o amado, visto que naquele existe o deus e nestoutro não -- ideia que talvez seja a mais terna e a mais irónica que jamais foi pensada e da qual nasce toda a malícia e a mais secreta volúpia do desejo.





thomas mann
morte em veneza
trad. sara seruya
edit. europa-américa
1978