14 fevereiro 2012

mário cesariny / corpo visível





A esta hora entre os blocos de prédios enevoados
     a bela mancha
diurna dos calceteiros na praça
e os dois amantes que hoje não dormiram vão partir nos
     braços da sua estrela
à beira do caminho ladeado de sebes de espinheiro
uma carta
uma letra muito fina      extremamente caligráfica
onde a aventura do homem que devolve as palavras que
     lhe são remetidas
deixou a sua marca
e o duque da terceira levanta o braço
comentando seguido pelas aves que acordam a duzentos e
     mais metros de altura
o que não é ainda a grande altura
sim sim
                 não são
                                 quem sabe


Dentro do grande túnel digo-te a vida
esta nuvem que vai para o centro da cidade leve e rosada
     como a proa de um barco
bateira que me trás os dados e a roleta onde no branco
     ou no preto devo jogar
jogando-me contigo
bem-me-quer
malmequer
ou muito     ou pouco
                                    ou nada
o que só com as mãos pode ser soletrado
só nos teus olhos nos teus olhos escrito


Dentro do grande túnel digo-te a vida
o moço que há uma hora não fazia senão fumar cigarros
o mesmo que julgou ter a noite perdida que maçada
sempre encontrou o seu par lá vão eles já no extremo do
     outro lado da praça
ilustrando uma tese velha da idade do sol um tanto im-
     pertinente e desde logo
minha
segundo a qual no amor toda a entoação da voz humana
     tende a reduzir o indivíduo receptor ao estado de
     serpente fascinada
sem que daí advenha a petrificação estrela cadente
ou qualquer outra espécie de perturbação durável
Eu digo que há tambores
mapa louco riscado sobre a areia
há o desenho de onda que atravessa o dorso da cigarra
há o gato tão limpo e ainda e sempre a lavar-se à soleira
     da porta – a tua porta
quando olhas para mim, a trave mais segura, dizes tu, da
     viagem ─
e no vitral de tudo o que eu mais adoro
─ a dez mil metros de profundidade lá onde a carpa
     avança sem deixar qualquer rasto
há o campo selvagem dos teus ombros
espreitando contra a luz      na orla do rio      a nuvem
     de corsários
que sou eu
vestido de andaluz para o baile em chamas ─  digo: o
     grande baile do século na ilha


O havermo-nos encontrado na horrível sala dos passos
     perdidos
é o que levarei mil anos a decifrar
o teu cabelo mapa onde tudo reflecte a ronda luminosa
     dos meus dedos
é o santo e a senha do percurso na sombra
o gesto com que voltas de repente a cabeça interrompendo
     o fio da meada sem que é engraçado hajam batido
     à porta entrado ou saído alguém
são os astros o sangue e os jardins de Brauner
e a tua mão posta em arco sobre a minha boca
é uma nova rosácea sobre o mar
Livres
digo livres
e isso é não só a grande rua sem fim por onde vamos
viemos
ao encontro um do outro
a esta casa dorso de todas as casas e no entanto a única
     perfeita silenciosa fresca
mas e também as chamas que acendemos na terra
da floresta humana
não só ao longo dos álamos gigantes e das clareiras mais
     espectaculares ─  aí a memória é fácil ─
mas na erosão física de cada folha no vento
tudo o que teve terá a sua vez connosco
a haver de nós a mesma dádiva recíproca
porque tu vês
de costas para a janela      tu que disseste:
                              “vai haver uma grande guerra”
                              “nenhum de nós eu sei escapará vivo”
vês tão bem como eu o pouco que isso vale, na muralha
     da china onde ainda estamos
nada é de molde a tapar por completo a figura de bronze
enterrada na areia
o écran que floresce
como tu      como eu      nos tubos que dissemos
fizemos
faremos      acordar
                                                e até quando?


Amor
            amor humano
amor que nos devolve tudo o que perdêssemos
amor da grande solidão povoada de pequenas figuras cin─
     tilantes
digo: a constelação de peixes rápidos
do teu corpo em sossego
seja ela a aurora halo multicor
seja o perpétuo real ceptro branco da noite
seja até porque não a luz crepuscular com o seu chapéu
     preto as suas hastes mudas


Começa a ouvir-se o canto da cigarra
sinal de que foi pisado o botão entre os limos
estão presentes ao acto todos os seres vivos e entre esses
     aqueles que nos foram queridos
na maré límpida que nos impede sabe o polvo dos mares
     até onde e se haverá regresso
em qualquer lado      a última janela fotográfica
as mãos do faroleiro
como a locomotiva no seu túnel
mas não há senão o teu rosto o teu rosto o teu rosto ainda
     e sempre o teu rosto
como é fácil      como é belo
A Vida inteira      Meu amor
                                                                 SOMOS NÓS


O cigarro do anúncio luminoso adoeceu deveras
     já não fuma o espaço
a uma certa velocidade calma
o atrito longo e agudo dos eléctricos moendo calhas
diz-nos que amanheceu
na sua torre de londres o relógio da estação do rossio adquire
     decidida importância
amanheceu      é óbvio      amanheceu
da nossa viagem ao país dos amantes já não resta senão
     esse penacho de fumo
que ameaça evoluir de acordo com a paisagem
uma fábrica      ou antes      na janela entreaberta
a mensagem do pássaro-extra-programa
que toca desafinado a fabulosa ária O Mundo Conhecido
e faz baixo cifrado com a diva local A Lágrima aos Leões
Agora somos pequenos e inúmeros e percorremos o espaço
     com gangrenas nas mãos
e intentamos chamadas telefónicas
e marcamos de novo e desligamos depressa
e tu pões uma écharpe sobre os ombros
e eu visto o meu casaco e saímos de vez
porque nós somos a multidão a que eu chamo
o homem e a mulher de todos os tempos áridos
e como sempre não há lugar para nós nesta cidade
esta ou outra qualquer que de perto ou de longe a esta se
     pareça


O regresso é sempre assinalado por esta negra actividade
     carfológica
verdadeiro sinal-emblema destes tempos
em que a evidência necessita de envólucro
para não morrer na estrada
junto às rodas do avanço a golpes de clarim reinvenção
     espantosa masculina da morte
ou nos carros do clube As Mãos no Sexo
junto ao qual      admira-te      vivemos
O problema não passa da sua fase primária:
um ─  o crocodilo
e dois ─  o clou do arame
se bem que esta velha raça de acrobatas anões
devesse dar por terminada há muito a sua nobre facécia
     sobre a cúpula em chamas
dividir o homem
pôr-lha à direita a luz a assistência aplaude pôr-lhe à
     esquerda a sombra a assistência treme
de tal modo que a meio da operação cabalística
em silêncio e miséria em medo e melancolia o homem
     atinja bravo bravo bravo a imobilidade do sepulcro
após o que rocegagem do arlequim de plumas
e iluminação de todos os fósseis mais antigos


Convenhamos meu amor convenhamos
em que estamos bem longe de ver pago todo o tributo de-
     vido à miséria deste tempo
e que enquanto um só homem um só que seja e ainda que
     seja o último existir DESFIGURADO
não haverá Figura Humana sobre a terra
─  Aa ensombração maligna de certas lágrimas quando a
     alegria é mais resplandecente
não deve ter outra origem
no centro do diamante o pequenino carvão venenoso é
     quanto basta para perder a vida
e no entanto nós meu amor partimos
livres e únicos no altar da estrela que só nós podemos
mas por este lado estamos presos à roda como a lapa não
     o está na sua rocha
e na cama-beliche desfeita da viagem floresce a sono solto
     uma flor especiosa
decor para a estrada pela esquerda alta da figura do
     Homem Sufocado
o homem que nos fala de apagador na mão doce chapéu
     cinzento rosto impermeável
impossível sair impossível passar ele quer ir connosco até
     aos confins da terra


Contra ele meu amor a invenção do teu sexo
único arco de todas as cores dos triunfos humanos
contra ele meu amor a invenção dos teus braços
maravilha longínqua obscura inexpugnável rodeada de
     água por todos os lados estéreis
contra ele meu amor a sombra que fazemos
no aqueduto grande do meu peito      O MAR




mário cesariny
lisboa
1950





assírio & alvim
fundação cupertino de miranda
2010




13 fevereiro 2012

yorgos seferis / romance




III

                               Lembra-te dos banhos em que foste afogado




Acordei com esta cabeça de mármore nas mãos
que extenua os meus cotovelos e não sei onde
          pousá-la.
Ela tombava no sonho enquanto eu saía do sonho
a nossa vida uniu-se e será muito difícil separar-se
          de novo.

Vejo os olhos; nem abertos nem fechados
falo à boca que continuamente procura  falar
seguro as maçãs do rosto que ultrapassam a pele.
Já não tenho força;

as minhas mãos perdem-se e aproximam-se de mim
mutiladas.






yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993




12 fevereiro 2012

guillevic / mais tu sais trop qu´on te prefere…




Sabes de mais que todos te preferem,
Que mesmo aqueles que te deixam

Nos trigos te reencontram,
Na erva te procuram,
Na pedra te escutam,
Sem que jamais consigam agarrar-te.




guillevic
carnac (1961)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003



11 fevereiro 2012

marcel proust / o silêncio é uma força




“Já se disse que o silêncio era uma força; num sentido completamente diferente, ele é uma força, e terrível, à disposição daqueles que são amados. Uma força que aumenta a ansiedade de quem espera. Nada convida tanto alguém a aproximar-se de um ser como o que dele o separa, e que barreira existe mais intransponível que o silêncio? Já se disse também que o silêncio era um suplício, e capaz de enlouquecer aquele que nas prisões a ele estava obrigado. Mas que suplício - maior que o de guardar silêncio  - é o de sofrer o silêncio de quem se ama! Robert dizia de si para si: «Que estará ela a fazer para estar assim calada? Estará por certo a enganar-me com outros...» Dizia ainda: «Que fiz para ela estar assim calada? Provavelmente odeia-me, e para sempre.» E acusava-se a si mesmo. Assim, com efeito, o silêncio o punha louco de ciúme e de remorso. De resto, mais cruel que o das prisões, tal silêncio é ele mesmo uma prisão. Uma clausura imaterial, sem dúvida, mas impenetrável, aquela fatia interposta de atmosfera vazia, mas que os raios visuais do abandonado não podem atravessar. Haverá luz mais terrível que o silêncio, que não nos mostra uma ausente, mas mil, e cada uma delas entregando-se a alguma outra traição? Às vezes, numa brusca distensão, Robert acreditava que esse silêncio iria cessar daí a pouco, que a esperada carta iria chegar. Via-a a chegar, espiava cada ruído, a sua sede estava já saciada, murmurava: «A carta! A carta!» Depois de ter assim entrevisto um oásis imaginário de ternura tornava a dar consigo patinhando no deserto real do silêncio sem fim.
Sofria adiantadamente todas as dores, sem esquecer nenhuma, de um rompimento que em outras ocasiões julgava poder evitar, como aquelas pessoas que liquidam todos os seus assuntos na mira de uma expatriação que não irá efectuar-se, e cujo pensamento, que já não sabe onde deverá situar-se no dia seguinte se agita momentaneamente, despegado delas, semelhante a um coração que se arranca a um doente e que continua a bater, separado do resto do corpo. Em todo o caso, esta esperança de que a amante regressaria dava-lhe coragem para perseverar no rompimento, tal como a crença de poder regressar vivo do combate ajuda a enfrentar a morte. E como o hábito é, de todas as plantas humanas, aquela que menos necessidade tem para viver de um solo rico de alimento, e a primeira a aparecer no aparentemente mais desolado dos rochedos, talvez começando por praticar o rompimento a fingir acabasse por se lhe acostumar sinceramente. Mas a incerteza alimentava nele um estado que, ligado à recordação daquela mulher, se assemelhava ao amor. Forçava-se contudo a não lhe escrever (pensando acaso que o tormento era menos cruel de viver sem a amante que com ela em certas condições, ou que, depois da maneira como se haviam separado, esperar as suas desculpas era necessário para que ela conservasse o que acreditava que ela sentia por ele, senão de amor, pelo menos de estima e respeito). “





marcel proust
em busca do tempo perdido
volume III o lado de guermantes
trad. pedro tamen
relógio d´água
2003






10 fevereiro 2012

joão almeida / parabéns






Neste Fevereiro distante
a alegria poisa devagar

não me quero lembrar de nada
entrego as botas e um a um
entramos no grande centro cultural

o último poeta foi atropelado em Braga
morreu no hospital público
com direito a névoa pela manhã

oh o barulho da responsabilidade
a expansão do deserto ao primeiro toque
começa-se por dormir vestido
e depois o pasmo
o risco de vender um verso por desfastio

que posso eu dizer
que não esteja dentro de um fungo
tantos livros
o barulho sempre nunca
ter um tecto
ter comida
e uma data de poemas na cabeça
ligados por tubos de respirar

uns acabam por morrer
e apodrecem onde estão
ali ficam como almas penadas
assombrações
outros vivem até à última gota

de ambos se faz a doença
e os planos de uma invasão




joão almeida
rumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010


09 fevereiro 2012

armando silva carvalho / poema do êxtase






Irmãos, não porque padeça de loucura precoce,
Mas sempre vos direi que haveis de procurar
alguns profetas.
Nos buracos do metro, nas locas das sentinas
e também no olhar, quantas vezes trémulo,
dessas crianças que riem no meio
dos charcos de óleo.
O pouco que dirão vos servirá.
O muito, por pouco e escasso, deixai
para outros dias.
Porque outros dias virão, esses, sim,
definitivos.
Não saberão aqueles os pesos da matéria.
Dedilham as guitarras esses povos de Deus
e de que servirá o fogo, o rei, o leão, a águia,
o número sete e as pedras do Sepulcro
àqueles que vão sonâmbulos, imagem sobre imagem,
pelo dédalo das ruas a caminho da Gruta?
Irmãos eclesiastas, deixai de ir a vós
as bibliotecas, as falas das paredes.
Deixai para os artistas a hora de saída
das marquesas, esse minuto infinito
de levar à têmpora as armas fatais.
 Essa delicada estufa em que fermenta
 a mais rasteira planta: a das paixões.
Paredes são retratos. São sa1as para serem vistas.
O precioso Vieira ergueu extensas paredes
vítreas. Cortejava o ouvido medroso
e fidalgo, julgando deste jeito,
trazer-lhes a alma à arreata,
que trazia oculta sobre as vestes.
Politico Vieira. De Deus Nosso Senhor
e Rei. E de outros nomes.
 Profetas loucos, roucos ou sem fala.
Como Chet Baker, Elisa a rapadeira.
Procurai neles o inverso da ciência,
o inferno do céu.
Procurai quem destrua estas paredes
que gritam tanta engenharia.
Buscai quem as atravesse mudo como um anjo
com fogo nos vestidos
e nas mãos todo o licor cioso
do silêncio.
Chorai, matai e sem uma pa1avra
Fazei com que Deus cresça.



armando da silva carvalho
poema do êxtase
poezz
almedina
2004


08 fevereiro 2012

adília lopes / primeiro amor






Gostava muito dele
mas nunca lhe disse isso
porque a minha criada tinha-me avisado
se gostar de um rapaz
nunca lhe diga que gosta dele
se diz
ele faz pouco de si para sempre
os rapazes são maus
eu não era bela
nem sabia quem tinha pintado Os pestíferos de Jaffa
resolvi  assim escrever-lhe cartas anónimas
escrevia o rascunho num caderno pautado
não sei hoje o que escrevia
mas sei que nunca escrevi
gosto muito de ti
e depois pedia a uma rapariga muito bonita
que passasse as cartas a limpo
eu acreditava que quem tinha uns cabelos
assim loiros e a pele assim fina
devia ter uma letra muito melhor do que a minha
agora que conto isto
vejo que deixo muitas coisas de fora
por exemplo que o meu primeiro amor
não foi este mas o Paulo
o irmão da rapariga bonita





adília lopes
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010



07 fevereiro 2012

homero aridjis / há seres que são mais imagem que matéria


   



     Há seres que são mais imagem que matéria
mais olhar do que corpo

     tão imateriais os amámos
que quase não queremos tocá-los com palavras

     desde a infância os buscamos
mais no sonho que na carne

     e sempre no limiar dos lábios
a luz da manhã parece dizê-los





homero aridjis
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001




06 fevereiro 2012

antónio osório / augúrio





Não antecipes a tristeza
de morrer: não queiras muito
às lágrimas: consola-te
bebendo-as. E sê grato ao dia
em que, vivo, as tragaste.



antónio osório
casa das sementes
décima aurora
assírio & alvim
2006




04 fevereiro 2012

fiódor dostoiévski / cadernos do subterrâneo




6

Oh, se eu não fizesse nada só por preguiça! Meu Deus, que respeito teria por mim. E teria esse respeito, precisamente, porque era capaz, pelo menos, de ter preguiça; haveria em mim, pelo menos, a certeza de uma característica definida. Se perguntassem de mim: quem é? E respondessem: um mandrião — isso ser-me-ia extremamente agradável de ouvir. Quer dizer que tinha uma característica determinada, logo, era possível dizer algo de mim. «Mandrião!» — mas isso é um título, um cargo, uma carreira. Não é brincadeira, é verdade. Nesse caso, seria membro de pleno direito de um clube de primeira e passava a vida a respeitar-me. Conheci um sujeito que toda a vida se orgulhou de ser perito em champanhe Laffite. Considerava isso uma grande qualidade sua e nunca duvidava de si mesmo. Morreu, não só de consciência tranquila, mas de consciência triunfante, e tinha absoluta razão. Quanto a mim, escolheria uma carreira de mandrião e glutão, mas não de um simples e corriqueiro mandrião e glutão, antes, por exemplo, de adepto de tudo o que é belo e sublime. Que tal, na vossa opinião? Tive esta ideia há muito tempo. Muito esse «belo e sublime» me oprimiu a nuca, chegado aos meus quarenta anos; mas isso foi aos quarenta — se fosse antes, teria sido outra coisa! Teria também achado para mim, com toda a certeza, a minha correspondente actividade, como seja: beber brindando à saúde de tudo o que é belo e sublime. Não deixaria passar qualquer ocasião de verter, primeiro, uma lágrima no copo e, depois, de o emborcar em honra de tudo o que é belo e sublime. Tornar-me-ia lacrimejante como uma esponja embebida. Por exemplo, um artista pintava um quadro de Gay (1).Imediatamente eu brindava à saúde do artista que pintava um quadro de Gay, porque gosto de tudo o que é belo e sublime. Um autor escrevia que «cada um faz o que lhe dá na gana»; de imediato brindo pela saúde de «quem me dá na gana» porque gosto de todo o «belo e sublime». Exigiria que me respeitassem por isso mesmo, perseguiria quem não me mostrasse respeito. Vivo sossegado, morro solenemente — mas é uma maravilha, uma verdadeira maravilha! E que barriga deixaria crescer, que papo triplo cultivaria, que nariz de sândalo elaboraria; e qualquer um diria olhando para mim: «Este tem pinta! Tem algo de verdadeiramente positivo!» Seja como for, é extremamente simpático ouvir características destas no nosso século negativo, meus senhores.


(1) Esta frase sarcasticamente invertida refere-se ao pintor russo Nikolai Gay (1831-1894) e ao seu quadro  Última Ceia, que Dostóievski  achava transmitir uma ideia falsa.





fiódor dostoiévski
cadernos do subterrâneo
trad. nina guerra e filipe guerra
assírio & alvim
2000


03 fevereiro 2012

patrick lane / transformando-se em tempestade





Sei que é um homem branco.
Entra de lado no vento
Permitindo ao seu lado esquerdo

esquecer o que o direito
conhece como frio. Os seus ouvidos
transformam em morte o que

os seus olhos não podem ver. O dia inteiro
ele afasta-se do sol
transformando-se em tempestade. Não

o tomes pelo uivo que ouves
ou pelo rasto que pensas estar
a seguir. Encontrar um homem branco

na neve é procurar os mortos.
Ele tem sido queimado pelo vento.
Tem deixado demasiada

carne no cascalho branco do inverno
para que deixe a sua cor como sinal.
Branco frio. Carne fria. Ele encosta-se

Ao vento de lado; mata sem
piedade tudo o que esteja ao seu lado esquerdo
entrando como a loucura na neve.





patrick lane
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de cecília rego pinheiro
assírio & alvim
2001




02 fevereiro 2012

marguerite yourcenar / solidão





solidão...

não creio como eles crêem,
não vivo como eles vivem,
não amo como eles amam...

morrerei
como eles morrem.


  


marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995