12 janeiro 2012

samuel beckett / o calmante




Não sei quando morri. Sempre me pareceu que morri velho, por volta dos noventa anos, e que anos, e que o meu corpo o comprovava, da cabeça aos pés. No entanto, neste final de tarde, sozinho na minha cama gelada, sinto que vou ser mais velho do que o dia, do que a noite em que o céu caiu com todas as suas luzes sobre mim, o mesmo céu que tantas vezes olhei, desde que vagueava pela terra longínqua. Porque hoje tenho medo demais para me ouvir apodrecer, para esperar pelos grandes e violentos baques do coração, pelas contorções do ceco sem saída e para esperar que se cumpram na minha cabeça os longos assassínios, o assalto aos pilares inquebrantáveis, o amor com os cadáveres. Vou portanto contar a mim mesmo uma história, vou portanto tentar contar mais uma vez a mim mesmo uma história, para tentar acalmar-me, e é nessa história que sinto que serei velho, muito velho, ainda mais velho do que no dia em que caí, clamando por socorro, e o socorro chegou. Ou talvez nessa história eu tenha regressado à terra, depois de morrer. Não, não é o meu género, regressar à terra, depois de morrer.
(…)




samuel beckett
novelas e textos para nada
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2006

   


11 janeiro 2012

matija beckovic / dois mundos





A todo o momento esse dia está a chegar:
Enviaremos petições a todos os guardas prisionais

Pedindo-lhes que nos salvem de medo liberdade inverno
E nos permitam cumprir a nossa pena.

Quando finalmente nos puserem as algemas
Que o mundo perca o seu equilíbrio vergonhoso.

Entre as duas metades que formam o mundo,
Que a dos condenados possa tornar-se a maior

E os guardas, com vergonha e medo,
Uma noite destas, peçam para ficar connosco.







matija beckovic
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001





10 janeiro 2012

luís filipe castro mendes / memento mori




                                                            Death is not in life
                                                            (Wittgenstein)




Eu vi morrer  três pessoas
a uma acompanhei até ao fim,
no que seria talvez o que lhe restava de vida
ou porventura o que lhe sobrava de morrer;
outra morreu quando eu dormia,
longe do hospital:
e tive que atravessar pela madrugada
uma cidade estrangeira
para chegar à sua morte;
e meu Pai, enquanto eu ia
comprar-lhe uma garrafa de oxigénio,
que nunca soube a quem serviu depois.

Nós nunca vemos ninguém morrer,
porque morrer é por dentro de cada um,
como talvez tudo o que tenha algum sentido,
como talvez amor.

O que verdadeiramente importa
é opaco ao nosso olhar
e cada prova que vivemos
é só e única:
morrer ou ver morrer

e o amor também.





luís filipe castro mendes
relâmpago
revista de poesia
nr. 27 outubro
2010




09 janeiro 2012

gil t. sousa / história de amor




44

é sempre
uma história de amor:

a árvore
que se afeiçoa ao pássaro

o sol
que se liga à água

os olhos
que se prendem ao mar




gil t. sousa
falso lugar
2004





07 janeiro 2012

m. campos / o poeta




Castrava-o antes de o deixar sair.
Uns milímetros por dia, quando acordava a tempo.
A lima das unhas, a faca dos frangos,
a lâmina de se rapar por baixo,
qualquer coisa servia.
Ele não protestava, ainda era apenas uma questão de fé:
com o tempo talvez chegasse a ser pago.




m. campos

06 janeiro 2012

adolfo casais monteiro / a palavra impossível





Deram-me o silêncio para eu guardar dentro de mim
A vida que não se troca por palavras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
As vozes que só em mim são verdadeiras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
A impossível palavra da verdade.

Deram-me o silêncio como uma palavra impossível,
Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível,
Para eu guardar dentro de mim,
Para eu ignorar dentro de mim
A única palavra sem disfarce -
A Palavra que nunca se profere.





adolfo casais monteiro
noite aberta aos quatro ventos
inquérito
1959.



05 janeiro 2012

sylvia plath / 39º de febre






Pura? O que significa isso?
As línguas do inferno
São enfadonhas, enfadonhas como a língua

Tripla do enfadonho e gordo Cérbero
Que arqueja ao portão. Incapaz
De lamber como deve ser

O tendão febril, o pecado, o pecado.
O pavio chora.
O cheiro persistente

De uma vela que se apagou!
Amor, amor, os fumos evolam-se
De mim como os lenços de Isadora, estou com medo

Que um lenço se prenda à roda e fique lá agarrado.
Esses fumos amarelos e sombrios
Erguem o seu próprio elemento. Não vão elevar-se no ar,

Mas girar à volta do globo
A sufocar os  mais velhos e submissos,
O indefeso

Bebé de estufa no seu berço,
A pálida orquídea
Que suspende no ar o seu jardim suspenso,

Leopardo demoníaco!
A radiação tornou-a branca
E matou-a numa hora.

A engordar os corpos dos adúlteros
Como a cinza de Hiroshima e a corroer.
O pecado. O pecado.

Querido, toda a noite
Trémula neste apagar-acender, apagar-acender.
Os lençóis ficam mais pesados do que o beijo de um devasso.

Três dias. Três noites.
Água com limão, água
De galinha, a água dá-me vómitos.

Sou demasiado pura para ti ou para qualquer outro.
O teu corpo
Magoa-me como o mundo magoa Deus. Sou uma lanterna -

A minha cabeça uma lua
De papel japonês, a minha pele lustrada de ouro
Infinitamente delicada e infinitamente cara.

Será que o meu calor não te atordoa? Nem a minha luz?
A sós comigo sou uma camélia enorme
A brilhar e a ir e vir, a cada renascer.

Creio que vou subir,
Creio poder elevar-me -
As bolhas de metal quente voam, e eu, amor, eu

Uma virgem
De puro acetileno
Tratada por rosas,

Por beijos, por querubins,
Seja o que for que significam estas coisas cor-de-rosa.
Tu não, nem aquele

Nem esse, nem o outro
(Os meus egos dissolvendo-se, saiotes de puta velha) -
A caminho do Paraíso.




sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




04 janeiro 2012

abbas kiarostami / un lupo in agguato










Traço vermelho sobre o branco da neve,
presa ferida
que coxeia

Um potro branco
nasceu
de uma égua negra
ao alvorecer

O vento levará consigo
flores de cerejeira
até à alvura das nuvens

Por cada onda alta
três ondas baixas,
por cada três ondas baixas
uma onda alta

Acompanhei
a lua
ao coração de uma nuvem escura,
bebi vinho e adormeci

Quando regressei à terra natal
a casa paterna
já não existia nem a voz de minha mãe

O céu
pertence-me,
a terra
pertence-me

como sou rico!

Um mendicante
acordou sobre a margem de um regato
um sedento
acordou sobre um tesouro




abbas kiarostami
«un lupo in agguato» (um lobo ao ataque)
ed. einaudi tascabili
tradução de mário rui de oliveira.
e a tradução do texto persa é da responsabilidade de ricardo zipoli.


03 janeiro 2012

maria gabriela llansol / estas árvores balouçam na sua hesitação




190



____________ Estas árvores balouçam na sua hesitação
Mas prosseguem. Os ramos mais altos precipitam-se,
Abrem no ar pousadas. Os mais baixos ocupam. Sol não
Falta. Há apenas a curva do caminho com incidências
Drásticas na sua respiração. Sim, há ainda as concorrentes,
As sementes ininterruptas, e o incompreensível desprezo
Dos humanos. Parasceve não diz. Se o cortarem, não
Reagirá. «Por que não entendeis a leveza de prosseguir?»




maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003




02 janeiro 2012

paul éluard / anel de paz




Passei as portas do frio
Pelas portas da minha amargura
Para vir beijar teus lábios

Cidade reduzida ao nosso quarto
Onde a absurda maré do mal
Deixa uma espuma tranquilizante

Anel de paz só te tenho a ti
Ensinas-me e volto a saber
O que é um ser humano e a desistir

De saber se tenho semelhantes.





paul éluard
últimos poemas de amor
roupeiras ligeiras
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002



31 dezembro 2011

clarice lispector / feliz ano novo



(Texto publicado (Folha de São Paulo) originalmente em forma corrida
(prosa) e "rearrumado" em versos livres, sem a autorização do autor,
mas como homenagem ao intenso conteúdo poético, por
Soares Feitosa.)




                O ano de ver 
                através do vidro o eclipse do sol contra a neblina
                pela janela da infância, 
                o ano de ver as primeiras imagens de
                minha mãe, 
                que era uma Greta Garbo linda 
                com ombros altos e cabelo de coque "bomba atômica" 
                e lábios vermelhos, o ano 
                da coqueluche em que meu pai me levou de avião até 4.000 metros
                para curar a tosse entre nuvens, 
 

                o ano de temer o quarto onde
                meus pais conceberiam 
                minha irmã, o ano de olhar árvores, bichos
                e gente como se eu morasse 
                fora do mundo (mistério que até hoje dura), 
                o ano do medo de levar porrada nas ruas da infância, o ano
                das pernas das mulheres, colunas altas e distantes 
                (até hoje), 
                o ano dos fantasmas do fundo do corredor, 
                o ano do cachorro
                atropelado, o ano dos meninos se comendo de solidão, 
                o ano de ficar olhando o vento no quintal, 
                o ano dos formigueiros, 
                o ano do sarampo e sua lâmpada vermelha, 
                o ano da catapora, o ano da luz azul do quarto da pneumonia de minha irmã, 
                o ano da cabeça quebrada, o ano da cara quebrada, 
                o ano de entender o porquê
                dos miseráveis do morro da Mangueira 
                perto de minha casa, 
 

                o ano de ver o primeiro filme de minha vida, o "Ladrão de Bagdá", 
                e ficar sonhando com as coxas da odalisca no tapete voador, 
                o ano dos balões no céu, o ano do Mercury "grená" de meu pai
                brilhando na luz da rua, 
                o ano do cuspe, o ano da porrada na esquina, 
                o ano dos palavrões, o ano da "merda" e da "puta que pariu", 
                o ano da inveja, o ano da bicicleta, o ano da primeira
                namorada que me tratava 
                como nada, 
                o ano de temer a Deus e de contar 
                meus crimes aos padres negros de quem eu beijava a mão,
                o ano em que um padre me deu um beijo na boca e eu fugi 
                com pânico na alma, 
                o ano do Porcolino, do Pernalonga, o ano do Hortelino Trocaletra, 
                das mil e uma noites, o ano da mula-sem-cabeça e do mendigo 
                que dava mijo para a mãe, o ano
                da camisa-de-vênus boiando na beira da praia, o ano do negro
                comendo a empregada no quarto de passar roupa, o ano da
                febre, o ano da violência dos colegas de colégio, o ano dos
                padres jesuítas sofrendo de solidão nas clausuras e o ano 
                das lâmpadas tristes das noites do colégio, 
 

                o ano das velas de cera
                na igreja, o ano dos paramentos, o ano do coroinha sem fé, o ano
                do covarde, 
                o ano do perigo de ser currado nos fundos do colégio, 
                o ano do soco na cara do mais forte e do sangue no nariz do valentão, 
                o ano 
                da descoberta do orgulho, 
                o ano do Tarzan, 
                o ano do Super-Homem, o ano da porra, 
                o ano da punheta de esguicho que ia até o teto de ladrilho 
                por causa da primeira mulher de biquíni na praia, 
                o ano da punheta pela empregada de peitos grandes e que deixava 
                quase tudo, 
                o ano da dor nos rins, o ano
                de entrar no porão com a menina, 
                o ano de sentir o gosto de cuspe da menina, 
                o ano de sentir o cheiro 
                do entrepernas da menina e ficar 
                com aquele cheiro até hoje, 
                o ano da primeira 
                mulher e, antes da primeira mulher, 
                o ano da descoberta da literatura 
                e de Rimbaud e o ano 
                de ficar escrevendo o dia inteiro
                numa febre 
                de descobrir qualquer coisa que ainda acho que vou achar, 
 

                o ano agora sim, da primeira mulher, 
                uma aeromoça louca da Panair que parecia uma odalisca 
                caída do céu, 
                o ano do meu corpo e do corpo da mulher, 
                o ano das lágrimas quentes, o ano
                da solidão, 
                o ano das pernas cruzadas dos primeiros puteiros
                visitados, 
                o ano do Mangue, da indescritível visão do Mangue que só Segall conheceu, 
                com as mil mulheres tremendo a língua para fora e 
                de calça e sutiã nas calçadas, o ano dos bordéis antigos da luz mortiça, 
                o ano das coxas, dos peitos, o ano cabeludo, 
                o ano oleoso, o ano das peles, o ano dos vasos de louça, 
                o ano de nada entender, 
                o ano da gonorréia, o ano de Thereza e de comer o primeiro amor e de flutuar 
                de paixão a um palmo das calçadas de Copacabana, 
 

                o ano da lua dourada, do sol vermelho, o ano de Ipanema, 
                de Leila Diniz, 
                o ano dos gritos 
                da mulher amada no colchão sujo e esfiapado que era um aparelho do Partido
                Comunista numa noite de chuva, 
                o ano do amor e da revolução,
                as duas coisas se confundindo 
                ("serão as bombas ou meu coração batendo?" diria o Bogart em "Casablanca"), 
                o ano da UNE
                pegando fogo, 
                o ano dos exilados, o ano de Corisco, o ano de Tom e Vinicius, 
 

                o ano do "Carcará", o ano do cinema 
                novo da noite negra do Ato 5, o ano que não terminou, 
                o ano da boca fechada, o ano da boca no cano de descarga, o ano do nervo 
                do dente exposto na boca do torturado, o ano das unhas 
                arrancadas,
                o ano dos gritos, 
                o ano dos guerrilheiros 
                suicidas, o ano de cortar
                a barriga com a faca de bambu, o ano de cortar 
                os pulsos com gilete 
                enferrujada, 
                o ano das cabeças 
                muito loucas, o ano de viver
                perigosamente, 
 

                o ano da mescalina e do ácido, o ano das pernas e
                dos braços virando cobras na "bad trip" da beira da praia, o ano
                das ondas vermelhas e céus tangerina, 
                o ano de Copacabana
                virando gelatina colorida, 
                o ano de Janis Joplin de porre comigo
                num puteiro baiano cantando ponto de candomblé, 
                o ano da esperança nova, o ano de Nelson Rodrigues, 
                de Darlene Glória, 
                o ano das filhas nascendo dentro de um buraco estrelado, 
                o ano da esperança de sentido, 
                o ano da inocência, 
                o ano da ingenuidade, o
                ano do leite, 
                o ano do ventre molhado, o ano dos quartos escuros,
                o ano da vida, o ano do sol, o ano do jambo vermelho, 
                o ano das formigas, o ano das bonecas, 
                o ano do olho furado, o ano de ficar
                louco, 
 

                o ano do corno, o ano do babaca, o ano de comer mulher,
                o ano de chorar, o ano de aprender a viver de novo, 
                o ano do "vamos ver", o ano do "que será o amanhã?", 
                o ano do cachorro, o ano da vaca louca, o ano da cachorra no ar, 
                o ano da beira do
                abismo, 
 

                o ano da volta à democracia, o ano do não, o ano do sim,
                o ano de Collor, o ano do Itamar, o ano da hiperinflação, 
                o ano da inflação zero, 
                o ano dos Mamonas, 
                o ano dos caruarus, o ano dos carajás, 
                o ano dos genovevas, o ano dos cachorros quentes explodindo, 
                o ano dos desacontecimentos, o ano dos cabelos brancos, 
                o ano do último vôo livre de minha mãe.
                1996, 

                o ano da expectativa, 
                o ano dos adiamentos, o ano da 
                esperança, 
                o ano 
                que ainda não começou e acaba hoje. 
                1996, 
                o ano 
                que vai começar em 97, feliz ano novo...




                 clarice lispector





30 dezembro 2011

hans-ulrich treichel / regras da casa





Nunca omitir os infortúnios
e contar cada história até
ao fim. Tapar com panos
os espelhos; facas debaixo
da mesa. Consolar a coruja e
trinchar o morcego.
Nunca perder a raiva, aconteça
o que acontecer. Deixar entrar
quem quer que seja.





hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994