05 outubro 2011

marin sorescu / suicídio





Havia em mim uma vintena de gerações,
Assim pelo menos,
E nessa manhã, vá-se lá saber porquê,
Uma janela deixada aberta talvez,
Alguém se atirou para o vazio.

Então subitamente todos eles
Se puseram a saltar
Uns atrás dos outros,
À bicha, como que fazendo a chamada
Sobre um trampolim,
Segundo o princípio da desintegração dos carneiros.

Em menos de uma hora e meia
Encontrei-me totalmente despido, sem nada,
E de vergonha atirei-me para o vazio também eu,
Devo ter morrido à altura do quarto andar,
Ao décimo, em todo o caso,
A coisa estava consumada.

Tudo isto,
É um mero passante,
Quem vo-lo conta,
Um de entre nós,
Melhor dizendo,
Que terá talvez caído menos mal.




marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997




04 outubro 2011

gérad calandre / a uma lupa




Contigo vi os versos de Virgílio
As cores elementares dum torso de Piranesi
Posso simular que vejo como num sonho as árvores
e as casas que entre elas se dissimulam
Num manuscrito muito antigo

Quanto tempo mais isto me será dado

O recorte de um tê
o pedúnculo duma magnólia
o olho dum peixe de águas profundas
o cirandar dum relâmpago numa página de acaso

Abandonar-me-á uma noite a poesia

Vidro e metal e em minutos
a definitiva cegueira

Aproximo-te das letras e eis
Crescem como troncos Como troncos desaparecem
E já só resta a memória dum minuto febril.






 gérard calandre
 tradução de nicolau saião




03 outubro 2011

ivan laucik / a amargura do vento inunda





Andar,
pacificamente
entrar num dos olhos.

Como ler? Com os olhos?
Do alto das cúpulas chovem os frescos,
poeira colorida cai nos olhos.

Lugar rigoroso no ar onde parou o orador:
como quando dentro da estação silenciosa
chega o vagão-cisterna em chamas
e derrete os carris,
ilumina os campos alagados,
e a terra crepita,
sequiosa nesse inferno,
imóvel.

Pode ser que vós, envoltos em claridade,
pergunteis (espaços frios)
pelo fogo.
Por entre a chuva vistes chegar a onda
transparente.

Clareira dourada da floresta,
apenas arrepios,
vogais.





ivan laucik
mobilis in mobile
colecção poetas em mateus
trad. pedro mexia
quetzal
1999


01 outubro 2011

franco loi / sou filho de schönberg e do maestro mahler




Non vi innamorate non
credete al cuore



Sou filho de Schönberg e do maestro Mahler,
do diapasão sinfónico e diafónico,
sou o tetracorde do inferno e sou o pentacorde,
sou como a borboleta que procura
entre as ervas uma flor rara e belíssima para se apaixonar;
e sete, setenta vezes sete, infinito,
em terra, em céu, até onde pode chegar o pensamento,
é o campo de árvores e de gritos,
e timbres, perdidos sabores: como a chuva
que parece cair mas sobe,
e se alarga afundando as raízes, grave,
e, suspirando ao sol, faz caminhar
as nuvens e penetra talvez no divino
para além do universo onde
ao celeste da atmosfera parece gritar obscuramente
os esquecimentos e dissonâncias, longínqua piedade,
e alegria, indiferenças, dores, doces apelos das estrelas,
e, como diz o meu mestre, escorre
a doce matemática apaixonante
da melodia que dá a intensidade...
Meu Schönberg, meu Berg, gente que se arrisca,
que pela teia da música se aventura
procurando tacteá-la, desenleia, esquadrinha,
mistura às apalpadelas na ânsia de encontrar...
- encontrar o quê? a história de um dia alegre?
a hipocrisia de um velho que deixou de amar?
ou o pensativo planar de uma asa branca
sobre a amendoeira rescendendo a sonho?
ou o morrer de amor da juventude
que canta e passa, breve, como esquecimento?
ou a tristeza do homem que envelhece
e para quem todos os dias são para poupar?
encontrar aquelas belas canções dos que morreram?
a voz das sombras? o ressoar do sopro?
aquele som do ar e da respiração
a que chamamos espiritual, e que te parece arder?
talvez saber os nomes da consciência,
o sentido daqueles suspiros, deste brumoso caminhar
entre homens que parecem não ter cara
e máquinas com pressa de matar,
o sentido deste infeliz tormento
feito de indolência, de um dizer sem falar,
de um aipo de agonia que se embrulha no desconforto,
que sabe de roer mas não como acabar? -
... gente que chama experiência à fantasia
e que por entre os erros parece encontrar-se,
que, como rouxinol, na lua nova,
ao baloiçar de um sino quer cantar,
essa gente que ri e se diverte, se entrega à loucura
e, enganada ou não, brinca no que faz...
Amigos, mestres, marceneiros de harmónicas,
é a vida que o órgão quer fazer soar!
E a teoria é como uma caixinha
onde estão fechados os ossos que não cantam.






franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993






30 setembro 2011

samuel beckett / alba






estarás aqui antes da manhã
e Dante e o logos e todos os estratos e mistérios
e o estigma da lua
para além da planura branca de música
que hás-de instaurar aqui antes da manhã


            seda suave grave cantante
            que se curva diante do firmamento negro de areca
            chuva nos bambús flor de fumo álea de salgueiros


ainda que te curves com dedos compassivos
a endossar o pó
nada acrescentarás à tua dádiva
cuja beleza há-de ser um lençol diante de mim
a dizer-se a si mesmo um desenho na tempestade de emblemas
de forma a que não haja sol nem desvelo
nem anfitrião
apenas eu e o lençol
e morto de todo

1931




samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago nr.13
10/2003



29 setembro 2011

pedro oom / poema





Há um ar de espanto
no teu rosto em silêncio pequenas pausas
entre nós e as palavras
que desfiamos
Quando o silêncio (pausa mais longa
que nos contrai o peito)
cai bruscamente
duas mãos agitam-se meigamente as nossas
e os mendigos, todos os mendigos
espreitam ao postigo do teu pequeno apartamento
coroados de rosas e crisântemos

É o momento
em que afirmamos a realidade das coisas
não a que vemos na rua
e que sabemos fictícia

mas a outra

aurora cintilante
que põe estrelas no teu sorriso
quando acordas de manhã
com um sol de angústia na garganta

acredita
nada nos distingue
entre a multidão anónima a que pertencemos
embora
o fotógrafo teime sempre
em nos oferecer uma esperança
- fluido imaterial que nem mil anos
poderão condensar -

O nosso rasto
mal se apercebe na areia
condenados ao fracasso
pequena glória dos pequenos heróis deste tempo
ainda aspiramos
no entanto
a ser o índice deste século
único sinal humano, florescente e salubre
de contrário
seremos apenas
um halo de vento
arco-íris de luto
ou estrada para sedentários
É ocioso
preparar a objectiva
que nos vai condenar a um número
nesta cidade onde cada homem
é escravo de uma arma
Ocioso
avivar as flores do cenário
encher de luar o jardim do nosso afecto
Só um acaso
nos poderá revelar
por isso
fechemos o rosto
meu amor       




pedro oom
sacavém, março de 1973





28 setembro 2011

w. s. merwin / quando partes





Quando o vento roda para o norte
Os pintores trabalham todo o dia mas ao sol-pôr a tinta cai
Descobrindo as paredes negras
O relógio bate repetidamente a mesma hora
Que não tem lugar nos anos

E à noite acobertado na cama de cinzas
Acordo de repente
É a altura em que a barba dos mortos está a crescer
Eu recordo que caio
Que sou o culpado
E que as minhas palavras revestem o que nunca serei
Como a manga enrolada de um rapaz sem braço.







w. s. merwin
trad. josé alberto oliveira
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001





27 setembro 2011

juan bonilla / o viajante





Ali de onde venho ninguém me retinha.
Sei que ninguém me espera aí para onde vou.

Pela janela desfilam imóveis as paisagens.
Seria maravilhoso não chegar a sítio nenhum.

Permanecer assim:
viajando de um lugar que já não existe
para outro que nunca existirá.







juan bonilla
defensa personal
antologia poética 1992-2006
sevilha
2009




26 setembro 2011

abelardo linares / ofício do costume






Do amor às palavras apenas resta costume.
Faz-se rito o mistério e um deus inútil
silencioso visita a paisagem devastada dos nossos sonhos.
Em espelhos a arder olhamos o nosso rosto
e a mão segura uma flor que é de gelo e cinza.
Se nesse entardecer um pássaro cego cantar,
que nos devolverá o seu canto se já a noite aguarda
para arrancar dos nossos olhos a luz última do mundo?






abelardo linares
trípticos espanhóis 1º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998





23 setembro 2011

antónio manuel pires cabral / recado aos corvos





Levai tudo:
o brilho fácil das pratas,
o acre toque das sedas.

Deixai só a incomensurável
memória das labaredas





antónio manuel pires cabral
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




22 setembro 2011

fernando assis pacheco / desversos





2

A minha proposta reduz-se a isto
nem mais um aluno para os liceus
o verdadeiro ensino está na vida
da pá e pica aos moinhos de vento

que sensaboria a História Antiga
com os seus heróis e os seus reis
tanto estudante a fingir que estuda
e faltam braços para o pastoreio

as artes nobres: varrer sachar empar
e outras: bordar coser fazer renda
não tenho nada contra a poesia
mas é mais útil a limpeza a seco





fernando assis pacheco
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
1990



20 setembro 2011

douglas dunn / mudança de terry street





Numa carroça a ranger eles empurram o costume:
Um colchão, cabeceiras de cama, chávenas, tapetes, cadeiras,
Quatro livros de cow-boys. Dois rapazes a assobiar,
Em gibões de excedentes do exército americano,
Retiram os haveres da irmã. O marido
Vem atrás, trazendo às cavalitas o filho,
Cujas travessuras vão, para nossa alegria, na mudança.
E empurrando, quem diria, um corta-relva.
Não há relvados em Terry Street. Os vermes
Surgem de fendas nos pátios de cimento, ao luar.
A esse homem desejo boa sorte. Desejo-lhe relva.






douglas dunn
leituras poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d´água
1993