25 agosto 2011

não comprem livros na fnac do gaia-shopping



Uma livraria que me obriga a rastejar para encontrar um livro de Poesia, não me merece confiança nem consideração.

É recorrente nesta FNAC os livros de poesia serem remetidos para o esgoto da loja: a secção de poesia nunca está no mesmo sítio e está sempre no sítio pior, remetida à mais obscura estante da loja.

Hoje lá estava eu de gatas na alcatifa para tentar encontrar um livro, nariz ao nível das havaianas e ténis dos veraneantes empurrados pela chuva para o centro comercial.

Mas foi a última vez. 

Acrescento hoje uma nova regra ao meu manual de cidadão/consumidor: nunca comprar um livro num sítio que me obrigue a pôr de cócoras para encontrar Fernando Pessoa ou qualquer outro poeta.

Convido-vos, caros amigos, a fazerem  o mesmo.



e. e. cummings / que horas são pergunto-me esquece


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[ vii ]

  

que horas são pergunto-me esquece
aprecia antes as coisas do céu e à parte
as estrelas por exemplo está tudo traçado
ao lado desse remendo de escuridão há uma como é
que é ah sim cadeira mas não Cassiopeia


talvez fossem meias escorrendo da mesa
tudo o que parecia doce profundo e inexplicável
não sendo dólares unhas dos pés ou ideias
inteiramente roubado(algures entre


os nossos corações sem luz a luxúria espreita
desmazelada e sem abrigo e quando
um beijo parte os nossos lábios são feitos de coisa


no despontar de cantos a alba faz caretas


e eis aí a lua,mais fina que uma mola de relógio







e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998

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24 agosto 2011

c. s. lewis / dor


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UM

Nunca ninguém me tinha dito que a dor se assemelhava tanto ao medo. Não que esteja assustado, mas a sensação é a de estar assustado. A mesma ânsia no estômago, o mesmo desassossego, os bocejos. Não paro de engolir em seco.
Noutras alturas é mais como estar ligeiramente ébrio ou ter sofrido uma pancada na cabeça. Há uma espécie de pano invisível entre mim e o mundo. Sinto dificuldade em compreender o que me dizem. Ou talvez dificuldade em desejar compreender.
É tudo tão desinteressante. E no entanto, quero ter pessoas à minha volta. Temo os momentos em que a casa fica vazia. Se ao menos falassem uns com os outros e não comigo.
Há momentos em que, ah!, tão inesperadamente!, algo dentro de mim tenta convencer-me de que, afinal, não sinto assim tanto, não tanto como isso. O amor não é tudo na vida de um homem. Eu era feliz antes de ter conhecido H. Sou uma dessas pessoas que têm muito “a que se agarrar”. Estas coisas acabam por passar. Vá lá, não pode ser assim tão mau. Envergonha-nos darmos ouvidos a esta voz mas, por um momento, parece estar a sair-se bem. E depois é a súbita punhalada do ferro em brasa da memória e todo esse “bom senso” se desfaz em nada como uma formiga na boca de um forno.
No ressalto passamos às lágrimas e ao patético. O sentimentalismo das lágrimas. Quase lhes prefiro os momentos de agonia. Pelo menos esses são límpidos e honestos. Mas o banho de autocorniseração, esse lamaçal, o repugnante prazer, pegajoso e adocicado, de lhe ceder — desgosta—me. E, mesmo quando a ele me abandono, sei que só pode levar-me a deturpar a imagem da própria H. Dê eu mão livre a essa disposição e em poucos minutos terei trocado a mulher real por uma mera boneca sobre a qual chorarningar. Graças a Deus, a memória que dela tenho é ainda demasiado forte (mas será sempre demasiado forte?) para me permitir chegar a tal ponto.
Porque H. não era nada assim. O seu espírito era flexível, rápido e enérgico como um leopardo. Paixão, ternura ou dor, nada conseguia desarmá-lo Farejasse ele a mínima baforada de hipocrisia ou pieguice, logo saltava e nos deitava por terra sem nos dar tempo sequer a perceber
o que tinha acontecido. Quantas das minhas bolhas de autocomiseração não fez ela rebentar?! Bem depressa aprendi a deixar-me de baboseiras ao falar com ela, a não ser pelo puro prazer — e aí volta a punhalada do ferro em brasa — de a ver apanhar-me em falta e rir-se de mim, Nunca fui tão pouco tolo como enquanto apaixonado de H.
E também nunca ninguém me falou da indolência da dor. Excepto no meu trabalho, onde o mecanismo parece continuar a mover-se praticamente corno de costume, abomino o mínimo esforço. Não apenas escrever mas até ler uma carta já é demais. Até barbear-me. Que importa agora se o meu queixo está áspero ou macio? Diz-se que o homem infeliz quer distracções, algo que o faça esquecer-se de si próprio. Talvez, mas só na medida em que um homem, completamente derreado, poderá precisar de mais um cobertor numa noite gelada. Vai preferir ficar para ali a tiritar que levantar-se para o ir buscar. É fácil entender por que motivo os solitários se tornam desleixados e, finalmente, sujos e nojentos.





c. s. lewis
dor
trad. carlos grifo babo
grifo
1999
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23 agosto 2011

ana luísa amaral / revisitações



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Se eu como ele, o meu amor
tão anterior assim ao próprio amor,
o cajado e a pele por simbólica mão,
e o perfume que em mim,
então,

talvez eu te fizesse
sentir sem que o soubesse,
ao certo,
o chamamento à noite, falar
muito de noite e nela adormecer.
Longuíssima e final. Mas nova sempre.
Reencarnando os tempos e as datas.

De memórias tão curtas. E do fim
mais final do esquecimento.
Ter encontrado há pouco coisa dada
há quantos anos? Trinta?
«Não te esqueças de mim.»





ana luísa amaral
às vezes o paraíso
anos 90 e agora
quasi
2001
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21 agosto 2011

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral



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II

Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.




antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
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20 agosto 2011

italo calvino / as cidades invisíveis


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As cidades ocultas. 2.

Não é feliz, a vida em Raissa. Pelas ruas a gente caminha torcendo as mãos, ralha com as crianças que choram, apoia-se aos parapeitos sobre o rio de cabeça nas mãos, de manhã acorda de um mau sonho e começa logo outro. Entre as bigornas onde a toda a hora se esmaga os dedos com o martelo ou se pica com a agulha, ou nas colunas de números todos tortos dos registos dos negociantes e dos banqueiros, ou diante das filas de copos sobre o zinco dos balcões das tabernas, ainda bem que as cabeças baixas nos poupam a olhares turvos. Dentro das casas é pior, e nem é preciso entrar lá para sabê-lo: de Verão as janelas ressoam de brigas e de pratos quebrados.
E no entanto, em Raissa, a cada momento há uma criança que de uma janela ri a um cão que saltou sobre um alpendre para morder um bocado de massa que caiu a um pedreiro que do alto do andaime exclamou: — Alegria minha, deixa-me pintar-te! — a uma jovem taberneira que atravessa a pérgula com um prato de carne nas mãos, contente por servi-lo ao fabricante de chapéus de chuva que festeja um bom negócio, uma sombrinha de renda branca comprada por uma grande dama para se pavonear nas corridas, enamorada de um oficial que lhe sorriu ao saltar a última barreira, feliz ele mas mais feliz ainda o seu cavalo que voava sobre os obstáculos vendo voar no céu um francolim, feliz ave liberta da gaiola por um pintor feliz por tê-la pintado pena a pena com manchinhas vermelhas e amarelas na miniatura daquela página do livro em que diz o filósofo: «Mesmo em Raissa, cidade triste, corre um fio invisível que liga um ser vivo a outro por um instante e a seguir se desfaz, e depois torna a estender-se entre pontos em movimento desenhando novas rápidas figuras de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem sequer sabe que existe».





italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999
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19 agosto 2011

luciano veras rocha / sem dormir



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Aqui eles acordaram sem dormir.
Tiraram as roupas.
Têm as placas brancas e as incríveis
Cerdas,
e a porta ainda escura.
Eu tinha pensado ser outro dia.

Retire a bolsa do embrulho de papel
Papelão.
Há subsídios, mas eu comprei uma gota
específica de uma certa agulha, lembro-me
como se fosse ontem. Era assim,
quando cheguei em casa, a seringa
tinha dado cria, eu só levei uma gota
pra dentro do corpo. As restantes
ficaram ao relento. As escusas.

- Eis, relativa espessura de dia,
eu estou ferido.
A laranja perpassa por sobre o dia
com a sua crosta primitiva.
O cancro é equalizado à litúrgica
laranja.




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18 agosto 2011

delfim lopes / esquisso



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Podia até fazer-te um desenho
mas não há modo de dar forma
a certas indeterminadas coisas
e não tão poucas quanto isso
como por exemplo atribuir
corpo e face a um fantasma
ou que nome lhe dar quando
o vês apenas pela primeira
vez lívido diante de ti
do tom de uma folha em branco
não sei se me estás a perceber
ou se sempre terei de fazer
o tal desenho novamente




delfim lopes
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16 agosto 2011

pier paolo pasolini / a glícinia


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(…)
Prepotente, feroz
renasces, e de repente, numa noite, cobres
uma parede acabada de erguer, o muro
principesco de um ocre
gerado pelo novo sol que vai queimando…
E bastas tu, com o teu perfume, obscuro,
frágil, rastejante, para me tornares puro
de história como um verme, um monge;
e não o quero, revolto-me – árido
na minha nova raiva,
que escora o descascado estuque
do meu novo edifício.
Alguma coisa fez aumentar
o abismo entre corpo e história, enfraqueceu-me,
secou-me, reabriu as minhas feridas…
(…)







pier paolo pasolini
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005
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15 agosto 2011

gil t. sousa / esse brilho



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37

esse brilho de cidade
que no rasto das estrelas se anuncia

ou o alquímico silêncio de uma duna
cravado
no olhar de um sábio

as papoilas,
os segredos
na lisa viagem do sangue
os mistérios vermelhos
de que se envenenam os rios

as ruidosas veias
que moram nas mãos solitárias

a morte
vestiu-se de prata
é
uma serpente
que sobe lenta
o último suspiro
da lua
e descansa aos pés
da eternidade dormente
das pedras




gil t. sousa
falso lugar
2004
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12 agosto 2011

alexandre vargas / deserto


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Praia estendida onde flutuo aberturas… negligente
sapiência…
A praia do passado. Agora só.
Abandonamos a fixidez… reencontramo-la.
A praia que ninguém me ensinou está lá.
Só uma vaga mão familiar nos abandona ao prazo. É a
felicidade que miro, o outro lado… esperança balnear.
Mas depois banhei-me sozinho na praia secreta. As ondas
dos pés. Imagino estar apenas…
É uma vaga mão, é um vago consolo onde estou.
 



alexandre vargas
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002
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11 agosto 2011

leopoldo maría panero / e resta


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E resta
 
detrás do nada um ofegar tão só
perseguido pelas árvores, perseguido pelos
 
bosques
 
que sussurram ao ouvido palavras obscenas
dizendo não és homem, és
menos que um sussurro.
 
 



leopoldo maria panero
conversação
tradução pedro serra
livros cotovia
2001

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10 agosto 2011

ana paula inácio / homenagem a 4 poetas e 1 cineasta

 
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Livra-me das tentações
de fugir ao fisco
e que em Fevereiro pague sempre
os meus impostos.
Afasta-me do supérfluo e
da vaidade e recorda-me que
um dia hei-de ter hemorróidas.
E não me deixes cair no pecado
da ideologia
para que não leve com o proletariado nas trombas.
Guia-me pelos caminhos do amor
até um centro comercial
onde o amado me acompanhará
a experimentar um a um cada vestido.
E, por último, faz com que
todo o iogurte que coma seja
- foda-se! –
de morango.
 





ana paula inácio
telhados de vidro nº. 11
averno
2008
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