24 agosto 2011

c. s. lewis / dor


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UM

Nunca ninguém me tinha dito que a dor se assemelhava tanto ao medo. Não que esteja assustado, mas a sensação é a de estar assustado. A mesma ânsia no estômago, o mesmo desassossego, os bocejos. Não paro de engolir em seco.
Noutras alturas é mais como estar ligeiramente ébrio ou ter sofrido uma pancada na cabeça. Há uma espécie de pano invisível entre mim e o mundo. Sinto dificuldade em compreender o que me dizem. Ou talvez dificuldade em desejar compreender.
É tudo tão desinteressante. E no entanto, quero ter pessoas à minha volta. Temo os momentos em que a casa fica vazia. Se ao menos falassem uns com os outros e não comigo.
Há momentos em que, ah!, tão inesperadamente!, algo dentro de mim tenta convencer-me de que, afinal, não sinto assim tanto, não tanto como isso. O amor não é tudo na vida de um homem. Eu era feliz antes de ter conhecido H. Sou uma dessas pessoas que têm muito “a que se agarrar”. Estas coisas acabam por passar. Vá lá, não pode ser assim tão mau. Envergonha-nos darmos ouvidos a esta voz mas, por um momento, parece estar a sair-se bem. E depois é a súbita punhalada do ferro em brasa da memória e todo esse “bom senso” se desfaz em nada como uma formiga na boca de um forno.
No ressalto passamos às lágrimas e ao patético. O sentimentalismo das lágrimas. Quase lhes prefiro os momentos de agonia. Pelo menos esses são límpidos e honestos. Mas o banho de autocorniseração, esse lamaçal, o repugnante prazer, pegajoso e adocicado, de lhe ceder — desgosta—me. E, mesmo quando a ele me abandono, sei que só pode levar-me a deturpar a imagem da própria H. Dê eu mão livre a essa disposição e em poucos minutos terei trocado a mulher real por uma mera boneca sobre a qual chorarningar. Graças a Deus, a memória que dela tenho é ainda demasiado forte (mas será sempre demasiado forte?) para me permitir chegar a tal ponto.
Porque H. não era nada assim. O seu espírito era flexível, rápido e enérgico como um leopardo. Paixão, ternura ou dor, nada conseguia desarmá-lo Farejasse ele a mínima baforada de hipocrisia ou pieguice, logo saltava e nos deitava por terra sem nos dar tempo sequer a perceber
o que tinha acontecido. Quantas das minhas bolhas de autocomiseração não fez ela rebentar?! Bem depressa aprendi a deixar-me de baboseiras ao falar com ela, a não ser pelo puro prazer — e aí volta a punhalada do ferro em brasa — de a ver apanhar-me em falta e rir-se de mim, Nunca fui tão pouco tolo como enquanto apaixonado de H.
E também nunca ninguém me falou da indolência da dor. Excepto no meu trabalho, onde o mecanismo parece continuar a mover-se praticamente corno de costume, abomino o mínimo esforço. Não apenas escrever mas até ler uma carta já é demais. Até barbear-me. Que importa agora se o meu queixo está áspero ou macio? Diz-se que o homem infeliz quer distracções, algo que o faça esquecer-se de si próprio. Talvez, mas só na medida em que um homem, completamente derreado, poderá precisar de mais um cobertor numa noite gelada. Vai preferir ficar para ali a tiritar que levantar-se para o ir buscar. É fácil entender por que motivo os solitários se tornam desleixados e, finalmente, sujos e nojentos.





c. s. lewis
dor
trad. carlos grifo babo
grifo
1999
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23 agosto 2011

ana luísa amaral / revisitações



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Se eu como ele, o meu amor
tão anterior assim ao próprio amor,
o cajado e a pele por simbólica mão,
e o perfume que em mim,
então,

talvez eu te fizesse
sentir sem que o soubesse,
ao certo,
o chamamento à noite, falar
muito de noite e nela adormecer.
Longuíssima e final. Mas nova sempre.
Reencarnando os tempos e as datas.

De memórias tão curtas. E do fim
mais final do esquecimento.
Ter encontrado há pouco coisa dada
há quantos anos? Trinta?
«Não te esqueças de mim.»





ana luísa amaral
às vezes o paraíso
anos 90 e agora
quasi
2001
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21 agosto 2011

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral



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II

Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.




antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
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20 agosto 2011

italo calvino / as cidades invisíveis


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As cidades ocultas. 2.

Não é feliz, a vida em Raissa. Pelas ruas a gente caminha torcendo as mãos, ralha com as crianças que choram, apoia-se aos parapeitos sobre o rio de cabeça nas mãos, de manhã acorda de um mau sonho e começa logo outro. Entre as bigornas onde a toda a hora se esmaga os dedos com o martelo ou se pica com a agulha, ou nas colunas de números todos tortos dos registos dos negociantes e dos banqueiros, ou diante das filas de copos sobre o zinco dos balcões das tabernas, ainda bem que as cabeças baixas nos poupam a olhares turvos. Dentro das casas é pior, e nem é preciso entrar lá para sabê-lo: de Verão as janelas ressoam de brigas e de pratos quebrados.
E no entanto, em Raissa, a cada momento há uma criança que de uma janela ri a um cão que saltou sobre um alpendre para morder um bocado de massa que caiu a um pedreiro que do alto do andaime exclamou: — Alegria minha, deixa-me pintar-te! — a uma jovem taberneira que atravessa a pérgula com um prato de carne nas mãos, contente por servi-lo ao fabricante de chapéus de chuva que festeja um bom negócio, uma sombrinha de renda branca comprada por uma grande dama para se pavonear nas corridas, enamorada de um oficial que lhe sorriu ao saltar a última barreira, feliz ele mas mais feliz ainda o seu cavalo que voava sobre os obstáculos vendo voar no céu um francolim, feliz ave liberta da gaiola por um pintor feliz por tê-la pintado pena a pena com manchinhas vermelhas e amarelas na miniatura daquela página do livro em que diz o filósofo: «Mesmo em Raissa, cidade triste, corre um fio invisível que liga um ser vivo a outro por um instante e a seguir se desfaz, e depois torna a estender-se entre pontos em movimento desenhando novas rápidas figuras de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem sequer sabe que existe».





italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999
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19 agosto 2011

luciano veras rocha / sem dormir



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Aqui eles acordaram sem dormir.
Tiraram as roupas.
Têm as placas brancas e as incríveis
Cerdas,
e a porta ainda escura.
Eu tinha pensado ser outro dia.

Retire a bolsa do embrulho de papel
Papelão.
Há subsídios, mas eu comprei uma gota
específica de uma certa agulha, lembro-me
como se fosse ontem. Era assim,
quando cheguei em casa, a seringa
tinha dado cria, eu só levei uma gota
pra dentro do corpo. As restantes
ficaram ao relento. As escusas.

- Eis, relativa espessura de dia,
eu estou ferido.
A laranja perpassa por sobre o dia
com a sua crosta primitiva.
O cancro é equalizado à litúrgica
laranja.




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18 agosto 2011

delfim lopes / esquisso



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Podia até fazer-te um desenho
mas não há modo de dar forma
a certas indeterminadas coisas
e não tão poucas quanto isso
como por exemplo atribuir
corpo e face a um fantasma
ou que nome lhe dar quando
o vês apenas pela primeira
vez lívido diante de ti
do tom de uma folha em branco
não sei se me estás a perceber
ou se sempre terei de fazer
o tal desenho novamente




delfim lopes
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16 agosto 2011

pier paolo pasolini / a glícinia


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(…)
Prepotente, feroz
renasces, e de repente, numa noite, cobres
uma parede acabada de erguer, o muro
principesco de um ocre
gerado pelo novo sol que vai queimando…
E bastas tu, com o teu perfume, obscuro,
frágil, rastejante, para me tornares puro
de história como um verme, um monge;
e não o quero, revolto-me – árido
na minha nova raiva,
que escora o descascado estuque
do meu novo edifício.
Alguma coisa fez aumentar
o abismo entre corpo e história, enfraqueceu-me,
secou-me, reabriu as minhas feridas…
(…)







pier paolo pasolini
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005
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15 agosto 2011

gil t. sousa / esse brilho



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37

esse brilho de cidade
que no rasto das estrelas se anuncia

ou o alquímico silêncio de uma duna
cravado
no olhar de um sábio

as papoilas,
os segredos
na lisa viagem do sangue
os mistérios vermelhos
de que se envenenam os rios

as ruidosas veias
que moram nas mãos solitárias

a morte
vestiu-se de prata
é
uma serpente
que sobe lenta
o último suspiro
da lua
e descansa aos pés
da eternidade dormente
das pedras




gil t. sousa
falso lugar
2004
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12 agosto 2011

alexandre vargas / deserto


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Praia estendida onde flutuo aberturas… negligente
sapiência…
A praia do passado. Agora só.
Abandonamos a fixidez… reencontramo-la.
A praia que ninguém me ensinou está lá.
Só uma vaga mão familiar nos abandona ao prazo. É a
felicidade que miro, o outro lado… esperança balnear.
Mas depois banhei-me sozinho na praia secreta. As ondas
dos pés. Imagino estar apenas…
É uma vaga mão, é um vago consolo onde estou.
 



alexandre vargas
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002
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11 agosto 2011

leopoldo maría panero / e resta


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E resta
 
detrás do nada um ofegar tão só
perseguido pelas árvores, perseguido pelos
 
bosques
 
que sussurram ao ouvido palavras obscenas
dizendo não és homem, és
menos que um sussurro.
 
 



leopoldo maria panero
conversação
tradução pedro serra
livros cotovia
2001

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10 agosto 2011

ana paula inácio / homenagem a 4 poetas e 1 cineasta

 
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Livra-me das tentações
de fugir ao fisco
e que em Fevereiro pague sempre
os meus impostos.
Afasta-me do supérfluo e
da vaidade e recorda-me que
um dia hei-de ter hemorróidas.
E não me deixes cair no pecado
da ideologia
para que não leve com o proletariado nas trombas.
Guia-me pelos caminhos do amor
até um centro comercial
onde o amado me acompanhará
a experimentar um a um cada vestido.
E, por último, faz com que
todo o iogurte que coma seja
- foda-se! –
de morango.
 





ana paula inácio
telhados de vidro nº. 11
averno
2008
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08 agosto 2011

yukio mishima / confissões de uma máscara


 
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No autocarro em que ia para a escola, encontrava muitas vezes uma jovem mulher anémica. O seu ar frio despertava-me a curiosidade. Passava a viagem toda a olhar pela janela com um ar distante, como se estivesse farta de tudo, e nesta atitude era visível a expressão obstinada do seu ligeiro rictus. Quando não aparecia, eu tinha a impressão de que faltava qualquer coisa e, antes mesmo de tomar consciência disso, dei por mim a desejar ardentemente vê-la, de cada vez que apanhava o autocarro.

Perguntava-me então se era a isso que se podia chamar amor. Não sabia, pura e simplesmente. Não tinha a mínima ideia de que podia haver uma relação entre o amor e o desejo sexual. É desnecessário dizer que, na altura em que estivera apaixonado por Omi, jamais fizera qualquer esforço para aplicar a palavra «amor» ao fascínio diabólico que ele exercia sobre mim. E agora, de novo, ao mesmo tempo que me perguntava se a vaga emoção que sentia pela rapariga do autocarro poderia ser amor, sentia-me atraído pelo condutor do veículo, um rapaz vulgar de cabeleira untada com brilhantina.

A minha ignorância era tão profunda que não era capaz de detectar esta contradição. Não via que, na minha maneira de contemplar o perfil do jovem motorista, havia algo de inevitável, de asfixiante, de penoso, de opressivo, ao passo que era com um olhar estudado, artificial, fati- gado, que eu observava a rapariga anémica. Enquanto me mantive na inconsciência da diferença entre estes dois pontos de vista, eles coexistiram em mim sem se importunarem, sem conflito.

Para um rapaz da minha idade, parece singular a minha falta de interesse por aquilo a que se chama «sanidade moral», ou, por outras palavras, a minha incapacidade em assegurar o «auto-controlo». Embora pudesse explicar este facto dizendo que a minha curiosidade, embora intensa, não me predispunha a interessar-me pelos princípios morais, mesmo assim ficaria sem justificação o facto de esta curiosidade se assemelhar aos desejos de um doente que do seu leito aspira a reencontrar o mundo exterior, e de ela se encontrar indissoluvelmente ligada à fé na possibilidade do impossível. Esta combinação — por um lado uma fé inconsciente, por outro um desespero inconsciente — excitava de tal forma os meus desejos que estes assumiam o aspecto de ambições desesperadas.

Embora ainda jovem, eu não sabia o que era experimentar o amor platónico. Seria isto uma infelicidade? Mas que sentido podia ter para mim a infelicidade vulgar? A vaga inquietação que rodeava os meus desejos sexuais tinha praticamente transformado o mundo carnal numa espécie de obsessão. Na realidade, a minha curiosidade era meramente intelectual, muito próxima da vontade de conhecer, mas não me foi difícil convencer-me de que se tratava da própria incarnação do desejo carnal. Mais do que isso, adquiri uma tal destreza na arte da ilusão que acabei por me considerar como um ser dotado de um espírito verdadeiramente depravado. E, como resultado disso, assumi o comportamento afectado de um adulto, de um homem que conhece a vida. Era como se estivesse farto de mulheres.

Foi assim que comecei por ficar obcecado pela ideia do beijo. De facto, o acto chamado beijo representava apenas o lugar onde o meu ardor poderia buscar abrigo. Hoje, posso dizê-lo. Mas nessa época, para me enganar a mim próprio, para manter a ficção de que este desejo era uma paixão animal, tive que assumir um minucioso disfarce do meu verdadeiro eu. O sentimento inconsciente de culpabilidade resultante deste disfarce obrigava-me a representar um papel consciente e mentiroso.

Mas, dir-se-á, é possível ser-se de tal forma infiel à sua própria natureza? Por um momento que seja? Se a resposta for não, como explicar então o misterioso processo mental que nos faz desejar ardentemente coisas de que não precisamos para nada? Se se admitir que eu era exactamente o oposto do homem moral que reprime os seus desejos imorais, quererá isto dizer que o meu coração alimentava os mais imorais desejos? Seja como for, é ou não verdade que os meus desejos eram extremamente mesquinhos? Ou ter-me-ia eu enganado completamente a mim próprio? Não estaria a actuar, nos mínimos pormenores, como um escravo das convenções? Ia chegar o momento em que não poderia adiar por mais tempo a necessidade de encontrar respostas para estas perguntas...

Com o início da guerra, uma vaga de estoicismo hipócrita abateu-se sobre o país. Mesmo as escolas superiores não escaparam a ela; durante os estudos secundários, tínhamos aguardado com impaciência o dia em que, admitidos no ensino superior, poderíamos deixar crescer o cabelo, mas, quando esse dia chegou, não nos autorizaram a satisfazer essa ambição — tivemos que continuar a usar os cabelos cortados à escovinha. O desejo de calçar meias coloridas pertencia igualmente ao passado. Em vez disso, os períodos de instrução militar tornaram-se ridiculamente frequentes e foram instituídas diversas outras inovações absurdas.

No entanto, acostumados como estávamos há tanto tempo a exibir uma aparência de conformismo bastante convincente, embora puramente exterior, pudemos prosseguir a nossa vida escolar sem sermos particularmente atingidos pelas novas restrições, O coronel destacado para junto da escola pelo Ministério do Exército era um homem compreensivo, e mesmo o oficial subalterno, a quem tínha mos posto a alcunha de senhor Zu, por causa da sua forma provinciana de dizer «zu» em vez de «su», bem como os seus colegas, o senhor Pateta e o senhor Trombudo, este assim chamado por causa do seu nariz esborrachado, compreenderam a mentalidade reinante na nossa escola e adaptaram-se a ela de forma assaz inteligente. O director era um velho almirante efeminado e, graças ao apoio do Ministério da Casa Imperial, conseguiu manter o seu lugar adoptando em todas as circunstâncias um espírito de moderação distanciado e inofensivo.

Foi nesta época que aprendi a fumar e a beber. Quero dizer que aprendi a fingir que sabia fumar e beber. A guerra suscitara em nós uma maturidade estranhamente sentimental. Esse sentimento vinha-nos da sensação de que a vida podia terminar aos vinte anos; e nem sequer admitíamos que pudesse haver qualquer coisa para lá destes poucos anos que nos restavam. A vida parecia-nos uma coisa extremamente volátil. Exactamente como se fosse um lago salgado de que a maior parte da água se tivesse evaporado quase de repente, deixando uma tão densa concentração de sal que os nossos corpos flutuavam suave mente à superfície. Já que o momento em que o pano ia cair não estava muito distante, seria natural que eu representasse com ainda maior diligência a comédia que concebera para mim próprio. Porém, embora continuasse a pensar que amanhã é que era, o início da minha viagem pela vida era adiado dia após dia, e os anos de guerra iam passando sem que houvesse o mínimo sinal de que estivesse disposto a meter-me ao caminho.

No fim de contas, não terá sido este um momento excepcional de felicidade? Se nesse momento sentia ainda qualquer espécie de constrangimento, pode dizer-se que o seu impacto era reduzido; conservando sempre a esperança, todas as manhãs eu perscrutava com impaciência o céu azul do desconhecido. Os sonhos fantásticos da viagem que ia empreender, as visões dessa aventura, a imagem mental desse alguém que eu viria um dia a ser e da adorável noiva que ainda nem conhecia, o meu desejo de reconhecimento público nessa época tudo isso estava cuidadosamente arrumado numa mala de viagem, pronto para o dia da partida, exactamente como o guia, a toalha, a escova de dentes e o dentífrico de um viajante. Era com um prazer infantil que eu vivia esse tempo de guerra, e apesar de a morte e a destruição se erguerem à minha volta, era como se nada pudesse vir perturbar essa ilusão na qual me parecia estar fora do alcance das balas. Era mesmo com um estranho prazer que pensava na minha própria morte. Tinha a impressão de que possuía o mundo inteiro. Não há nada de surpreendente nisto, já que é durante o período em que se prepara uma viagem que se usufrui do prazer de viajar, nos seus mais ínfimos pormenores. Depois, fica-nos apenas a própria viagem, que é tão-só o processo através do qual a vamos perdendo. É isso que torna as viagens totalmente inúteis.

Com o tempo, a obsessão do beijo fixou-se nuns únicos lábios. Mesmo quando isso aconteceu, foi porque crescera em mim o desejo de atribuir uma origem mais nobre às minhas fantasias. Como já sugeri, embora não sentisse nem desejo, nem qualquer outro tipo de emoção em relação a estes lábios, tentei desesperadamente convencer-me de que os desejava. Em suma, eu tomava como desejo essencial aquilo que não era mais do que o desejo irracional e secundário de acreditar a todo o custo que os desejava. Tomava o desejo obstinado, impossível, de não ser eu próprio, pelo desejo sexual que sente um homem feito, o desejo que nasce da sua própria condição de homem.

Por esta altura, havia um amigo meu com o qual eu tinha uma certa intimidade, embora entre nós não existissem afinidades, nem sequer nos assuntos de conversa. Era um dos meus condiscípulos, um rapaz chamado Nukada. Aparentemente, ele tinha-me escolhido porque eu era um companheiro agradável, com quem se sentia à vontade quando me fazia perguntas sobre as aulas de alemão do primeiro ano, que lhe causavam as maiores dificuldades. Como é costume entusiasmar-me com as coisas novas, pelo menos até ao momento em que perdem a novidade, eu prometia ser um excelente aluno de alemão — ma foi só durante o primeiro ano. Nukada deve ter tido a intuição de que eu detestava secretamente ser considerado «certinho», e que, pelo contrário, aspirava a ter uma «má reputação». Certinho era uma etiqueta que me parecia colar melhor a um licenciado em teologia, e apesar disso, nenhuma me podia servir melhor de camuflagem. Havia, na amizade de Nukada, qualquer coisa que me tocava no ponto fraco — porque essa amizade fazia ciúmes aos «duros» da escola, e, além disso, por seu intermédio eu podia ir recolhendo alguns ténues ecos do mundo feminino, exactamente como quem comunica com o mundo dos espíritos através de um médium.

Omi tinha sido o primeiro médium entre mim e o mundo feminino. Mas nessa altura eu estava muito mais próximo do meu verdadeiro eu, e por isso limitei-me a considerar os seus talentos particulares de médium como um simples atributo da sua beleza. O papel de Nukada enquanto médium tornou-se, no entanto, a trave-mestra natural da minha curiosidade. Isso devia-se provavelmente, pelo menos em parte, ao facto de que Nukada não era nada bonito.

Os lábios que se me tinham tornado uma obsessão eram os da irmã mais velha de Nukada, que eu via quando ia a casa dele. O mais natural era que esta belíssima rapariga de vinte e três anos me tratasse como uma criança. Ao ver os homens que a rodeavam não me foi difícil compreender que eu não tinha uma única das características susceptíveis de atrair uma mulher. Assim, acabei por admitir que jamais poderia vir a ser como Omi, e, depois de madura reflexão, concluí mesmo que o meu desejo de lhe ser semelhante fora apenas uma expressão do meu amor por ele.

Apesar disso, eu continuava convencido de que estava apaixonado pela irmã de Nukada. Exactamente como teria feito qualquer inexperiente estudante da minha idade, vagueava em torno da sua casa, gastando pacientemente horas e horas numa livraria próxima, na esperança de me dirigir a ela quando passasse; apertava uma almofada contra o coração e imaginava o que sentiria quando a tomasse nos meus braços, desenhava incontáveis imagens dos seus lábios e falava sozinho como se tivesse perdido o juízo. E tudo isto para quê? Estes esforços artificiais apenas serviam para me encher o espírito de um enorme cansaço, uma espécie de moleza. O que havia de realista em mim sentia o carácter artificial dos protestos eternos através dos quais me persuadia de que a amava, e lutava contra esta fadiga perniciosa. Nesta exaustão mental parecia correr um terrível veneno.

No intervalo dos esforços mentais que fazia para poder viver no domínio do artificial, era por vezes esmagado por um vazio paralisante e, para lhe escapar, voltava-me sem vergonha para uma outra espécie de fantasia. Nessas alturas, transbordava de vida, era eu próprio, e excitava-me criando as mais estranhas imagens. Mais do que isso, a chama assim ateada permanecia-me no espírito sob a forma de um sentimento abstracto, separado da realidade da imagem que o provocava, e eu deformava a minha interpretação desse sentimento até ao ponto cm que via nele a prova da paixão que a rapariga me inspirava... Desta forma, uma vez mais, estava a enganar-me a mim próprio.

Se alguém me quiser criticar, sustentando que o que acabo de escrever tem um carácter demasiado genérico, demasiado abstracto, a única coisa que posso responder é que não é minha intenção entregar-me a uma fastidiosa descrição de um período da minha vida, cujos aspectos não se distingam dos de uma adolescência normal. Se exceptuarmos o lado vergonhoso de alguns dos meus pensamentos, a minha adolescência era, mesmo nos seus aspectos íntimos, absolutamente vulgar, e durante este período eu era igual a qualquer outro rapaz. Basta ao leitor imaginar um estudante de bom nível, com quase vinte anos, dotado de uma curiosidade média, de um apetite de viver razoável; de temperamento reservado, sem dúvida pela única razão de que era dado à introspecção, pronto a corar por tudo e por nada, e sem a confiança só possível em quem tem a certeza de que é suficientemente bonito para agradar às raparigas — e agarrado, por necessidade, unicamente aos livros. Bastará imaginar, para que o quadro fique completo, até que ponto este estudante sente a nostalgia das mulheres, com o coração em chamas, e como os tormentos que sofre são inúteis.

Haverá coisa mais prosaica, mais fácil de imaginar? É conveniente omitir os pormenores enfadonhos, que ser viriam apenas para repetir aquilo que toda a gente já sabe. Direi então, apenas, que — à excepção da tal única diferença vergonhosa de que falei — neste período incaracterístico da vida de um estudante tímido, eu era exactamente como os outros rapazes e tinha jurado fidelidade incondicional ao encenador da peça chamada adolescência.

(…)





yukio mishima
confissões de uma máscara
trad. antónio mega ferreira
assírio & alvim
1984
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06 agosto 2011

sylvia beirute / nouvelle cuisine

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{nada tenho a oferecer-te.
permanecer hoje intacta
é a unidade de medida
do meu braço cortando a cebola.}
a vida real é darwiniana, sabes,
e é impossível regressar-se
à mesma felicidade.
mas: por outro lado, os alimentos parecem
também eles regressar:
a carne ao javali, o arroz – oryza glaberrima
aos campos de áfrica;
 o molho desfez-se, e o seu vazio e cheiro
inundaram os músculos
que certificavam a distância.
 
restou uma cebola {e estas palavras}.
por favor, põe a mesa.
 






sylvia beirute
uma prática para desconserto
4 águas editora
2011
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