15 fevereiro 2011
antónio ladeira / as pessoas instantâneas
Quando a morte cai sobre as pessoas
é porque tem as asas cansadas
de dar voltas ao mundo.
Escolhe, hesitante, um dos seus cantores.
Escolhe quem, matinalmente, se cumprimenta.
A morte um dia esquece e desce
sobre os mesmos reverentes.
Esqueceu tudo o que dissera.
Ou fingiu que esqueceu tudo.
Alguém parou misteriosamente de falar.
E o silêncio quer dizer: “Acabou tudo.”
Quer dizer: “venham comigo até aquelas grutas!”
Agora finjam que estão velhos.
E que ninguém está nada triste.
Olhem para as vossas pernas,
não há pernas!
Nem mãos,
excepto para tocar em coisas indescritíveis.
As crianças que morriam.
Vou viver para a neve com os meus filhos
mergulhar nos rios soturnos e profundos
em segundos.
Por entre as algas e os peixes que prendiam
os braços das crianças que agarravam
os polvos misteriosos que ensinavam
a nadar os que mereciam.
Se a mim viesse algum dos mortos que ensinasse
a morrer a quem vivesse
a nadar a quem andasse
a dormir a quem falasse
Sem parar.
Imitaria a vida que vivesse
esse monstro que ensinasse
Que morresse.
Que matasse.
Sem matar.
antónio ladeira
a minha cor favorita é a neve
escritor
2000
12 fevereiro 2011
gil t. sousa / os que se perderam
31
que rebentem estradas
sob os pés
dos que se perderam
que nos seus olhos gelados
cresçam fogueiras
*
que o silêncio se curve
como um animal sem voz
gil t. sousa
falso lugar
2004
10 fevereiro 2011
edmundo de bettencourt / poema de amor
A noite é cheia de vales e baías.
E do meu peito aberto um rio largo de sangue…
Águas densas, de correntes lentas,
serpentes mortas a arrastarem-se.
Águas?
Águas negras, pastosas, alcatrão rolante.
Mas águas puras, verde-claras, atraindo
a margem donde os crocodilos fogem mastigando.
Águas em transparências lucilantes, para cima,
e as estrelas do mar, um polvo e um mefistófeles
ficam no ar sobre ilhéus e lodosos calhaus
que se descobrem.
Plantas brancas e extáticas…
Lágrimas… nuvens… e a cabeça, o perfil,
os olhos, todo o corpo da mulher amada, a prostituta
antes de virgem, que é bela e feia, velha e nova,
e não conhece os filhos!
O fogo envolve essa mulher amada
e é um guindaste erguendo-a e atirando-a,
enquanto dispersas pelo chão brilham mandíbulas
naturalmente à espera…
edmundo de bettencourt
poemas
arcádia
1963
08 fevereiro 2011
nizzar qabbani / o poema
o poema
uma lição de desenho
O meu filho coloca a sua caixa de pintura à minha frente
E pede-me que lhe desenhe um pássaro.
Mergulho o pincel na cor cinzenta
E traço um quadrado com fechaduras e grades.
Os seus olhos enchem-se de surpresa:
"... Mas isto é uma prisão, pai,
Não sabes desenhar um pássaro?
E eu digo-lhe: "Filho, perdoa-me.
Esqueci-me da forma dos pássaros.
O meu filho coloca o livro de desenhos à minha frente
E pede-me que desenhe uma espiga de trigo.
Pego num lápis
E desenho uma arma.
O meu filho desdenha da minha ignorância,
perguntando,
"Pai, não sabes a diferença entre uma espiga de trigo e uma arma?"
Eu digo-lhe: "Filho,
uma vez usei a forma da espiga de trigo
a forma do pão
a forma da rosa
Mas nestes tempos duros
as árvores da floresta juntaram-se
aos homens da milícia
e a rosa veste uniformes escuros
Neste tempo de espigas de trigo armadas
de pássaros armados
de cultura armada
e de religião armada
não se pode comprar pão
sem encontrar uma arma no interior
não se pode colher uma rosa do campo
sem que os seus espinhos nos arranhem o rosto
não se pode comprar um livro
que não vá explodir entre os nossos dedos."
O meu filho senta-se à beira da minha cama
e pede-me que recite um poema
Uma lágrima cai dos meus olhos para a almofada.
O meu filho apanha-a, surpreendido, dizendo:
"Mas esta é uma lágrima, pai, não é um poema!"
E eu digo-lhe:
"Quando cresceres, meu filho,
e aprenderes o 'diwan' da poesia árabe
descobrirás que palavra e lágrima são gémeas
e que o poema árabe
não é mais do que uma lágrima chorada por dedos que escrevem."
O meu filho pega nos seus pincéis,
a caixa de pinturas à minha frente
e pede-me que lhe desenhe uma pátria.
O pincel treme nas minhas mãos
e eu afundo-me, chorando.
Nizzar Qabbani
Escritor sírio, considerado um dos maiores poetas árabes. Do amor e da política.
Morreu em Londres onde vivia, aos 75 anos, em Maio de 1998.
Notabilizou-se com obras eróticas que quebraram tradições literárias no Médio Oriente,
pela defesa da emancipação das mulheres.
As suas palavras ficaram imortalizadas nas canções da egípcia Umm Kulthoum
e da libanesa Fairouz. Nacionalista convicto,
foi extremamente crítico dos líderes árabes, sobretudo após as guerras
contra Israel de 1948 e 1967, que contribuíram para o êxodo palestiniano.
(in Público, 8 de Abril de 2002)
05 fevereiro 2011
kiki dimoulá / a juventude do esquecimento
Espero um pouco
que escureçam as diferenças e as indiferenças
e abro as janelas. Não há pressa
mas faço-o para que não se me empenem os movimentos.
Peço emprestada a cabeça da minha anterior curiosidade
e rodo-a. Rodar, não é bem.
Dou as boas-tardes servilmente a todas as bajuladoras
dos medos, as estrelas. Boas-tardes, não é bem.
Reforço com o fio do olhar os fios
dos prateados botõezinhos da distância
alguns que se desfiaram estão tem-te não caias.
Não há pressa. Faço-o apenas para mostrar à distância
quanto lhe agradeço a oferta.
Se não houvesse a distância
murchariam as longas viagens
viriam de motorizada trazer-nos a casa
como pizzas o mundo que a nossa partida desejava.
A velhice seria uma sanguessuga
colada à juventude
e chamar-me-iam vovó desde os meus verdes anos
netos e amores indiferentemente.
E que seriam os astros
sem o apoio que lhes dá a distância?
Pratarias terrestres, alguns candelabros, cinzeiros
para que neles deite a cinza o rico belicoso
para que a admiração invista a sua sobrevalorização.
Se não houvesse a distância
a saudade tratar-nos-ia por tu.
E os pudores dos agora tão raros encontros
com a plural necessidade nossa
fatalmente se afeiçoariam
à linguagem grosseira do hábito.
É claro, se não houvesse a distância
o nosso próximo não seria essa estrela longínqua
viria à primeira aproximação
só dois passos separariam os sonhos
da sua silhueta.
Assim como junto a nós ficaria
a derradeira partida da alma.
Para onde tanto deambular? Há
um espaço vazio. Nós desceríamos
para vivermos no nosso corpo subterrâneo
e ela com a sua fábula e os seus pertences
reencarnaria em corpo.
Se não existisses ó distância
o esquecimento passaria mais facilmente
mais depressa numa só noite
a difícil prolongada juventude sua
aquilo que por melhor soar chamamos recordação.
Recordação não é bem. Reforço
Com o fio do olhar semelhanças
Que se desfiaram e estão tem-te não caias.
Reforço, não é bem. Servilmente volto-me
desviando-me desses bajuladores do tempo que
por brevidade chamei recordação.
Recordação, não é bem. Reabasteço estrelas cadentes
com prolongada aniquilação. Há pressa.
kiki dimoulá
inimigo rumor 14
trad. manuel resende
livros cotovia
2003
03 fevereiro 2011
carlos de oliveira / infância
Sonhos
enormes como cedros
que é preciso
trazer de longe
aos ombros
para achar
no inverno da memória
este rumor
de lume:
o teu perfume,
lenha
da melancolia.
carlos de oliveira
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985
01 fevereiro 2011
eugénio de andrade / três ou quatro sílabas
Neste país
onde se morre de coração inacabado
deixarei apenas três ou quatro sílabas
de cal viva junto à água.
É só o que me resta
e o bosque inocente do teu peito
meu tresloucado e doce e frágil
pássaro das areias apagadas.
Que estranho ofício o meu
procurar rente ao chão
uma folha entre a poeira e o sono
húmida ainda do primeiro sol.
eugénio de andrade
véspera de água
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
30 janeiro 2011
luís filipe parrado / abominação
Por um momento parece-te possível
um sentido para a vida. Acordas um filho,
desces as escadas, percorres as ruas encerradas
ao trânsito da memória, as máquinas
em movimento trabalham com escasso esplendor.
E reparas que corpo e pele coincidem,
que as vértebras dos cavalos sustentam
o ar, que no copo ficou uma borra do vinho
que te trouxeram amigos que já não estão contigo.
Mas nesse rasgo de luz logo regressa a abominação
do costume, e tu sentes o gelo dos sonhos,
a ferrugem dos livros cheios de saliva, o asco
e a suspeita pregados com chumbo ao peitoril
dos teus olhos negros que não compreenderão
jamais como, alguma vez, pudeste escrever
a palavra vida a seguir à palavra sentido.
luís filipe parrado
criatura
nr. 5 outubro
2010
27 janeiro 2011
josé de almada negreiros / mãe!
Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas!
Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me ao teu lado.
Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei,
tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa.
Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!
josé de almada negreiros
a invenção do dia claro
26 janeiro 2011
antonio sáez delgado / aviso
Que a vida nos oferece pessoas para no-las arrebatar pouco a pouco é coisa que aprendemos sempre demasiado tarde. Que a vida pode roubar-nos tudo, de repente, é coisa que nunca aprendemos. Mas precisamos de ter cuidado, convém manter a vida satisfeita e aceitar de bom grado os sorrisos dos seus fantasmas. Porque já a encontraram várias vezes com mau aspecto, nas tabernas mais imundas do porto. Porque alguém disse que ouviu da sua boca, em voz baixinha, a palavra suicídio.
antonio sáez delgado
tradução de josé colaço barreiros
canal revista de literatura nr.3
verão de 1998
palha de abrantes
antonio sáez delgado
tradução de josé colaço barreiros
canal revista de literatura nr.3
verão de 1998
palha de abrantes
25 janeiro 2011
violeta c. rangel / porque é tão alto o preço da vida?
O fumo, os cafés, o gajo que te traz de madrugada,
aquele parceiro que escapou, este que vem acordar-te,
as carícias, a coragem, uma manhã com Rimbaud…
Se o que ajuda a viver, o verdadeiro, custa quase nada
porque é tão alto o preço da vida?
violeta c. rangel
tradução de josé colaço barreiros
canal revista de literatura nr.3
verão de 1998
palha de abrantes
22 janeiro 2011
gil t. sousa / um labirinto de vidro
30
um labirinto de vidro
palavras transparentes
dias quase limpos
no chão
sombras brancas sem raiz
gil t. sousa
falso lugar
2004
20 janeiro 2011
isabel meyreles / jardin du luxembourg
As crianças eram apenas
máquinas de gritar
quando escrevi o teu nome no chão
e me vim embora
isabel meyreles
da outra margem
antologia de poesia de autores portugueses
instituto camões
2001
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