11 novembro 2009
10 novembro 2009
vicente valero / teoría solar
XXIX
(epitáfio)
Só, mas não morto, quase morto diríamos,
mas ainda ofegante, com as mãos inúteis
e o rosto azul. Vencido, mas ansioso. O mar
pôs palavras velhas nas minhas orações. Onda,
madrepérola, medusa, alcantil… Fui
o afogado mais duro de roer. Debaixo de água,
digno, ia cantando os poemas de Shelley.
E quando as gaivotas queriam devorar-me,
dava-lhes pão limpo de sonhos incompletos.
O mar era um deus lento, não me merecia.
vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000
08 novembro 2009
pedro mexia / rotina
Este é o meu número:
telefonem-me.
Este é o sítio
onde passo as tardes:
encontrem-me.
Ou não me telefonem
nem me encontrem
mas pensem em mim
enquanto estiverem a viver.
pedro mexia
eliot e outras observações
gótica
2003
03 novembro 2009
david mourão-ferreira / equinócio
Chega-se a este ponto em que se fica à espera
Em que apetece um ombro o pano de um teatro
um passeio de noite a sós de bicicleta
o riso que ninguém reteve num retrato
Folheia-se num bar o horário da Morte
Encomenda-se um gin enquanto ela não chega
Loucura foi não ter incendiado o bosque
Já não sei em que mês se deu aquela cena
Chega-se a este ponto Arrepiar caminho
Soletrar no passado a imagem do futuro
Abrir uma janela Acender o cachimbo
para deixar no mundo uma herança de fumo
Rola mais um trovão Chega-se a este ponto
em que apetece um ombro e nos pedem um sabre
Em que a rota do Sol é a roda do sono
Chega-se a este ponto em que a gente não sabe
david mourão-ferreira
do tempo ao coração
guimarães editores
1966
01 novembro 2009
àlex susanna / natureza morta
Livros repousam sobre a mesa,
óculos, um caderno, um lápis:
os instrumentos do escritor que consumiu
o seu tempo a ler, a pensar, a escrever
tentando estruturar algum breve poema
onde entrar, repousar, retirar-se talvez
na ponta final de um dia atribulado...
Muito antes, erigiam-se templos
e até mesmo grandes catedrais:
hoje, quando a noite chega, contentamo-nos
com um abrigo, uma qualquer arcada
onde evitar esse excesso de intempérie
e enganar o frio que nos corrói os ossos.
àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves
29 outubro 2009
joan-ives Casanova / pelos passos na areia…
pelos passos na areia molhada ao fim do dia poder-se-ia pensar
que estou aqui, presente, mas parti por entre brisas fugidias
e estou junto às asas do anjo no azul assustador do mar,
do céu e das sombras; e o peso triste da carne parece-se com o espelho
quebrado dos gestos e das horas, a imagem da presença dos corpos,
uma mão, uma pálpebra, o desenho da pele e a voz escutada do tempo;
o ar do dia dilui-me com frequência no fumo dos limites
e entre duas vagas algodoadas, se parece que sou real, vereis,
entrelaçar-se na tristeza o olho do desejo e o da morte,
e eu estou algures entre dois azuis gémeos que vêm apagar a noite.
seja como for o leve vento de neve voltará de certeza
êxito estranho do avesso dos dias; um anjo pousou
a mão na mesa, à beira-mar, e a cortina
dança entre o azul e o branco, encantamento do ar,
e seja como for as mãos nuas das horas alisadas
não dizem quase nada, levadas pelo anjo triste de cabelos
de ouro, e sopro de pássaros; pousada, a mão parece-se
com a sombra do mar porque ainda aí vivem homens, asas cortadas,
no côncavo da palma do deus grego, a gota de orvalho
que o caminho cego dos dias nos deixou para estancar a sede
joan-ives casanòva
poemas
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga
28 outubro 2009
per aage brandt / livro da noite
*
(Silêncio).
- Estás tão ausente.
- Também tu estás ausente.
- Diz-me porquê.
- Diz-me também tu porquê.
- Isso entristece-me tanto.
- E como pensas que me sinto.
- O mesmo te pergunto eu.
- És tu que me tornas ausente.
- Mas eu estou aqui.
- Eu também, deixa lá!
(Silêncio).
*
per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004
26 outubro 2009
glória gervitz / migrações (fragmentos)
Sou a que sempre fui. O inesperado de estar a ser
Chego ao lugar do início onde o começo
começa
Este é o tempo
É o tempo de despertar
A avó acende as velas sabáticas desde a sua morte
e olha-me
Estende-se o Sábado até nunca, até depois,
até antes
A minha avó que morreu de sonhos
mexe interminavelmente o sonho que a inventa
que eu invento. Uma criança louca olha-me de dentro.
Estou intacta.
glória gervitz
poemas
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga
25 outubro 2009
vladimir holan / fica
Fica comigo, não me deixes,
a minha vida é tão vazia
que só tu, orgulhosamente humilde, me podes ajudar
a não perguntar mais nada.
Fica comigo, não me deixes,
tem pena da minha impaciência
que, rabiscada no diário de bordo de um navio-prisão,
perdurará até à eternidade.
Fica comigo, não me deixes
não conheces a raiva e nem a tua raiva durará para sempre –
e para onde irias, como te sentirias
quando estivesses farta? Espera um pouco, espera,
espera pelo menos até
que o carteiro chegue com as cartas que só a ti pertencem.
vladimir holan
mirroring: selected poems of vladimir holan
tradução de miguel gonçalves
wesleyan university press
1985
22 outubro 2009
rené char / alívio
“Eu vagueava no ouro do vento,
declinando o refúgio das aldeias
onde o meu coração fora violentamente despedaçado.
Da dispersa torrente da vida estagnada extraíra eu o leal significado de Irene.
A beleza desfraldava-se
do seu fantasioso invólucro,
dava rosas às fontes."
A neve surpreendeu-o.
Ele debruçou-se sobre o rosto aniquilado,
bebeu dele a superstição em longos tragos.
Depois afastou-se,
movido pela perseverança daquele marulho,
daquela lã.
rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000
21 outubro 2009
joaquim pessoa / balada das onze e meia
Onze e meia: meia hora
para acabar este dia.
Meia hora ainda é hoje.
Meia hora é amanhã.
Às onze e meia da noite
vai haver muita pancada
num bar da rua das Pretas.
Vai haver muita mudança
nos decretos aprovados.
Às Onze e meia da noite
no quarto não se ouve nada
mas no berço uma criança
dorme o sono dos poetas
que andam subalimentados.
Às onze e meia da noite
direi vinte e três e trinta.
Acordo o galo vermelho
com dois murros no pescoço.
Canta, canta, meu pelintra
o dia de hoje é tão velho
que amanhã já estamos mortos.
Às onze e meia da noite
os Ódios nunca estão fartos.
Às onze e meia da noite
a morte anda lá por fora
a pedir contas à vida
e os polícias têm medo
da própria sombra que pisam.
Onze e meia. Está na hora.
No relógio ainda é cedo.
Os ponteiros não deslizam.
Às onze horas e meia
esperamos por amanhã.
Chega a noite para a ceia
com dois pezinhos de lã.
Passam gatunos, canalhas
com seus múltiplos perfis.
Caem corpos e navalhas
no silêncio dos lancis.
Onze e meia. A meia hora
que falta, nunca mais passa.
Não passa. Nunca mais passa.
Eu sei lá quanta desgraça
se apodera em meia hora
das ruelas e dos becos
que apodrecem na cidade!
São onze e meia. É agora
que os olhos verdes dos cegos
pressentem a claridade.
Às onze e meia da noite
o vento não bate à porta
nem quer saber de mais nada.
Às onze e meia da noite
no bar da rua das Pretas
continua a haver pancada.
Às onze e meia da noite
os cães disputam a dente
uma cadela aluada.
Às onze e meia da noite
há travestis no Rossio
à pesca dos marinheiros
que deixaram o navio
e fazem ondas de cio
no sangue dos paneleiros.
Bateram as onze e meia.
Só faltam trinta minutos.
Acende-se a lua cheia
na rua dos Sapateiros.
São onze e meia da noite
e eu quero ficar contigo
entre lençóis de algodão.
Fincar no flanco uma espora.
Cavalgar por meia hora.
Dar rédeas ao coração.
Às onze e meia da noite
é tempo de solidão.
E nas entranhas do medo
fazem-se filhos diversos.
Como um padeiro faz versos
ou um poeta faz pão.
Às onze e meia da noite.
Às onze e meia da noite
recebem-se embaixadores
e à mesma hora os porteiros
afugentam os trapeiros
vestidos de malfeitores.
Às onze e meia da noite
a Primavera passou-se
para o lado do Outono.
E uma Maria qualquer
nas alamedas do sono
cansada de ser mulher
às onze e meia matou-se.
Em ponto. São onze e meia.
Esta noite os redimidos
hão-de fazer por esquecer.
Bem comidos e bebidos
não tardam a adormecer.
E um frasco de comprimidos
na mesa de cabeceira
vai ajudar os sentidos
a cozer a bebedeira.
Às onze e meia da noite.
Às onze e meia da noite
num gabinete privado
(como a irmã cotovia)
o tipo que está ao lado
cantou tudo o que sabia
para subir de ordenado.
Às onze e meia da noite
rastejam cobras na lama
onde afocinham as putas
Senhoras Donas da Cama.
Mas as putas que são putas.
Não as que têm a fama.
São onze e meia da noite.
Já só falta meia hora.
Apenas trinta minutos.
Às onze e meia da noite
ponho a tristeza de lado
e uma gravata de seda.
Quero ouvir cantar o fado.
Quero dar uma facada
no galo da consciência.
Quero menos paciência
e um pouco mais de loucura.
E enquanto são onze e meia
ainda dura a pancada
no bar da rua das pretas
os putos fazem punhetas
em jeito de habilidade
apenas com quatro dedos.
E descobrem os segredos
de nascerem portugueses
filhos de um povo adiado.
Feitos aqui e agora.
Quando falta meia hora
para acabar o passado.
joaquim pessoa
125 poemas
antologia poética
litexa
1982
15 outubro 2009
frank o´ hara / a um passo de distância
É a minha hora de almoço, vou pois
passear por entre os táxis pintados
de ruído. Primeiro, pelo passeio
onde trabalhadores alimentam os troncos
sujos brilhantes com sanduíches
e Coca-Cola, usando capacetes
amarelos. Acho que os protegem
da queda de tijolos. Depois pela
avenida em que saias rodopiam
nos calcanhares e levantam voo sobre
os gradeamentos. O sol queima, mas
os táxis agitam o ar. Observo
pechinchas em relógios de pulso. Há
gatos que brincam na serradura.
Para
Times Square, onde o anúncio
sopra fumo sobre a minha cabeça e no alto
a cascata jorra suavemente. Um
Negro numa portada com um
palito, mexe-se langorosamente.
Uma corisca loura faz soar um estalido: ele
sorri e esfrega o queixo. De súbito
tudo buzina: são 12:40 de
uma Quinta-feira.
Neon de dia é um
grande prazer, como Edwin Denby
escreveria, como são as lâmpadas eléctricas de dia.
Paro para um cheeseburger no JULIET'S
CORNER, Guilietta Masina, mulher de
Federico Fellini, è bell' atrice.
E chocolate com malte. Uma senhora que
em tal dia usa pele de raposa mete o cão d'água
dentro de um táxi.
Há vários Porto
Riquenhos na avenida hoje, o que
a torna bela e quente. Primeiro morreu
Bunny, depois John Latouche,
depois Jackson Pollock. A terra
está tão cheia deles, como a vida esteve?
Comeu-se e passeia-se,
passa-se pelas revistas com nus
e os cartazes de TOURADA e
a Manhattan Storage Warehouse,
que em breve demolirão. Antigamente
pensava que nela se exibia o
Armony Show.
um copo de sumo de papaia
e volto para o trabalho. O meu coração está no
meu bolso, é Poemas de Pierre Réverdy.
frank o'hara
vinte e cinco poemas à hora do almoço
trad. josé alberto de oliveira
assírio & alvim
1995
13 outubro 2009
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