04 março 2008

poema







Falámos tanto ou tão pouco que de repente o silêncio que se fez
foi essa patada no peito, de que guardaremos a marca quando
agora choramos, quando estendemos as mãos carregadas de
dedos mortos, sonhámos tanto que mais de uma vez tivemos de
matar, que mais de uma vez nos estoiraram os olhos sob a pólvora
das lágrimas e as tuas mãos voaram estilhaçadas, jogámos tanto
que para não nos perdermos arriscámos tudo, até tornar a
morte uma coisa nossa, tão nossa, que é ela que anda agora vestida
com a nossa pele e os nossos ossos, escorregando pelas paredes
de cabeça para baixo ou subindo pelo interior dos bicos, passando
de cadafalso em cadafalso, com os lábios furados pelas unhas, com
a cintura roxa das dentadas da noite, da miséria dos dias.
Roda de todas as torturas e de todas as seduções, deixaste de girar.
Estás agora aqui, partida, abandonada no próprio local do sangue.
Transportada de homem em homem através dos séculos, foste há
pouco deposta pelo último homem, esse que desapareceu, ia de lado,
com os joelhos duros cobertos de água e as mãos cem metros à sua
frente em sinal de maldade. Corpo a corpo foste gasta até à última
noite e até à última estrela, palavra a palavra foste sugada e bebida e
de todos os lados sempre novas sempre novas bocas chegavam para te
sugar e beber. Ficaste um gesto que perseguimos à dentada e acabámos
por matar. Vede: a destruição prossegue docemente. Restam apenas,
aqui e além, algumas cidades com os seus milhões de almas e nada mais.
Pequenas marcas de sangue, cada vez mais vivas, assinalam a nossa
passagem entre as agulhas de carvão do tempo. Canhões ocupam a entrada
da luz. E de norte a sul, de leste a oeste, de criança para criança,
aguarda-se o sinal de fogo.
Não estranheis os sinais, não estranheis este povo que oculta a
cabeça nas entranhas dos mortos. Fazei todo o mal que puderdes
e passai depressa.






antónio josé forte
40 noites de insónia de fogo de dentes numa girândola
implacável e outros poemas

lisboa
1958





03 março 2008

maria gabriela llansol (1931-2008)





xc. dos seres





_________se ele ainda estiver a dormir quando eu voltar ao quarto, e o clavicórdio continuar a reger o abismo com a sua simples presença e a sonoridade que pressinto,
sento-me à entrada da ausência, aspirando o meu vagar nocturno e o movimento dos músculos das árvores,


lugar particular ali,
lugar universal aqui.







maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silênco de 2004
assírio & Alvim
2006



01 março 2008

as flores que devoram mel





As flores que devoram mel
ficam negras em frente dos espelhos.

Os animais que devoram estrelas em frente dos espelhos
ficam brancos por detrás dos pêlos
ou das plumas da idade.

As pedras por onde circula a água
ficam vivas de tanto cantar e, quando se voltam,
atingem a sua maior velocidade interior.

Se vêm às portas ver quem bate,
os lençóis cobrem--se de respiradoras —
quando regressam ao sono, deixam as mãos abertas.

Se é uma estátua que bate,
corre-lhe o sangue pela boca, e sobre os ombros
torcem-se os cabelos,
e as asas tremem em frente da porta.

Se é um retrato,
sorri sufocado pela noite adiante.

Os espelhos são negros como os jacintos
da loucura.

Os crimes que olham para o espelho têm uma vibração
silenciosa.

Se é uma criança, diz:
eu cá sou cor-de-laranja.

Porém às vezes é bom ser branco,
é bom estar deitado.

O mel faz bem às pedras,
atrai os olhos dos anjos.

Quem aplaina tábuas
acumula uma obscura sabedoria.

Olha para os espelhos,
tens um talento assimétrico de assassino.

Vê-se nos teus ramos frutos negros
contra a paisagem móvel.

Se fosses um peixe,
a porta estaria nas águas mais íntimas, frias, límpidas
e caladas.

E não batias — cantavas a tua síncope
terrível.

Nada se veria na vertente do espelho.

Serias como uma máquina cor de cal
respirando.

Por isso te ofereço este ramo de lâminas
e um fato de perfil — e andas nos labirintos.

Por isso te sento numa cadeira de ar.

Por isso somos os dois um quadrúpede de seda
de uma beleza truculenta.

Temos toda a vigília para encher de silêncios.

Pensamos os dois o mesmo corpo inaugurado.

As flores que devoram mel tornam negros
os espelhos.

As colinas vão olhando, e tremem na nossa carne
as estampas de ouro
extenuante.

Por isso, por isso, por isso —
somos assim
obscuros.









herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968





29 fevereiro 2008

o ócio torna lentas as horas…






10 de Dezembro

O ócio torna lentas as horas e velozes os anos. A actividade torna rápidas as horas e lentos os anos. A infância é a actividade máxima, porque ocupada em descobrir o mundo na sua diversidade.

Os anos tornam-se longos na recordação se, ao repensá-los, encontrarmos numerosos factos a desenvolver pela fantasia. Por isso, a infância parece longuíssima. Provavelmente, cada época da vida é multiplicada pelas sucessivas reflexões das que se lhe seguem: a mais curta é a velhice, porque nunca será repensada.

Cada coisa que nos aconteceu é uma riqueza inesgotável: todo o regresso a ela a aumenta e acresce, dota de relações e aprofunda. A infância não é apenas a infância vivida, mas a ideia que fazemos dela na juventude, na maturidade, etc. Por isso, parece a época mais importante, visto ser a mais enriquecida por considerações sucessivas.

Os anos são uma unidade da recordação; as horas e os dias, uma unidade de experiência.









cesare paveseo ofício de viver - diário (1935-1950)trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004


27 fevereiro 2008

despidas, mas sempre belas!






simples, crescem pausadamente
adornadas de flores que darão frutos.
vestem-se de verde esperança
e nas suas folhas nascem pássaros
que cantam entre as manhãs e as árvores
onde vorazes se guardam os dias.

efémera a voz rasga por dentro
deixam desabar a resina,
e gritam à chuva negra,
o lamento de um amor irrecuperável
nas folhas que juncam o chão,
amarelecidas nos gemidos dos ventos.

olho-as na serenidade fria do dia
maravilhada vejo-as despidas
despidas, mas sempre belas!






l.maltez





21 fevereiro 2008

café da manhã





pôs café
na chávena
pôs leite
na chávena com café
pôs açúcar
no café com leite
e com a colher
mexeu
tomou o café com leite
e pôs a chávena no pires
sem me dar uma palavra
acendeu
um cigarro
fez rodinhas
com o fumo
pôs a cinza
no cinzeiro
sem me dar uma palavra
sem olhar para mim
levantou-se
pôs
o chapéu na cabeça
vestiu
o impermeável
porque chovia
e saiu
debaixo de chuva
sem uma palavra
sem me olhar
quanto a mim, meti
a cabeça entre as mãos
e chorei.






jacques prévert
paroles
trad. g.s.
éditions gallimard
folio
2003





a grande lousa





Eduardo Luiz (1932-1988)
a grande lousa, 1966
o/t, 97x130cm
col. MC



17 fevereiro 2008

os nomes inúteis






Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e a genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca


foi só inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.











maria do rosário pedreira
nenhum nome depois
gótica
2004





estranho dia






Às vezes paro à porta
com o olhar perdido e habituado ao silêncio,
há mais desertos ainda, dias
e morte noutros olhos.
Com a garganta habituada à sede,
com os pés às feridas,
saio para a rua
e já não há umbrais.

Ando um dia, passo outro,
acabo uma semana de vidros partidos
e tosse mais velha.
Hoje parece que sempre
choveu sobre mim,
e não me importa
se a chuva já não se parece ao esquecimento
e apenas deixa charcos, paredes mais sujas
e fuligem e tristeza nos olhos de rímel,
ainda tenho sede
e não me importa
voltar às coisas más e aos velhos tugúrios
à procura de algo que não encontro nem recordo,
que costuma principiar por um encontro,
talvez por outra palavra
e corre o perigo de crispar-se
até à forma da folha da faca.

Às vezes tudo é tão estranho
que não basta continuar a andar.







alfonso barrocal
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000








13 fevereiro 2008

ruínas






corre
pelas ruínas de si

o corpo
ao relento da vida

dentro do corpo
lugares desconhecidos

estações ermas
onde deixou recados

e inventou
imóveis paisagens

que nenhum tempo
pode esgotar

escreveu memórias
enviou cartas

que ainda hoje
cruzam altíssimos céus

singulares oceanos
remotas geografias

sem que um nome
se levante

uma saudade
se acenda

ou uma resposta
se construa

mas corre
corre ainda

pelas ruínas
de si

o olhar
senhor dos horizontes

romeiro
das santas cidades

domador
das bestas ferozes

que nos ombros severos
sustentam a cúpula

dos sonhos
letais


e canta
melancólicos versos

que nas ruínas de si
ressoam

como o recitar das baleias
nos telhados febris

de uma casa
que guardasse a loucura









gil t. sousa
poemas
2001






11 fevereiro 2008

os sinónimos






Para lá da luz está a sombra,
e por trás da sombra não haverá luz
nem sombra. Nem silêncio, nem sons.
Chama-lhe eternidade, ou Deus, ou inferno.
Ou não lhe chames nada.
Como se nada tivesse acontecido.









francisco brines
ensaio de uma despedida
(antologia 1960-1986)
trad. josé bento
assírio & alvim
1987





08 fevereiro 2008

restaurante






Leva-me outra vez para a mesma mesa
onde fico de costas para a janela
onde o tempo me esquece
onde nada me toca
o teu gesto protege
o teu corpo separa
a água que me dás
interrompe a memória


Só à porta da rua
o tempo reaparece.








yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998





07 fevereiro 2008

a imensidão íntima



O mundo é grande, mas em nós
ele é profundo como o mar. (Rilke)


O espaço sempre me fez silencioso. (Jules Valles, l´enfant)





I

Poderíamos dizer que a imensidão é uma categoria filosófica do devaneio. Sem dúvida, o devaneio alimenta-se de espectáculos variados; mas por uma espécie de inclinação inerente, ele contempla a grandeza. E a contemplação da grandeza determina uma atitude tão especial, um estado de alma tão particular que o devaneio coloca o sonhador fora do mundo próximo, diante de um mundo que traz o signo do infinito.

Pela simples lembrança, longe das imensidões do mar e da planície, podemos, na meditação, renovar em nós mesmos as ressonâncias dessa contemplação da grandeza. Mas trata-se realmente de uma lembrança? A imaginação, por si só, não poderá aumentar ilimitadamente as imagens da imensidão? A imaginação já não será activa desde a primeira contemplação? De facto, o devaneio é um estado inteiramente constituído desde o instante inicial. Não o vemos começar; e no entanto ele começa sempre da mesma maneira. Ele foge do objecto próximo e imediatamente está longe, além, no espaço do além (1).

Quando esse além é natural, quando não se aloja nas casas do passado, ele é imenso. E o devaneio é, poderíamos dizer, contemplação primordial.

Se pudéssemos analisar as impressões de imensidão, as imagens da imensidão ou o que a imensidade traz a uma imagem, entraríamos imediatamente numa região da mais pura fenomenologia – uma fenomenologia sem fenómenos ou, para falar menos paradoxalmente, uma fenomenologia que não precisa esperar que os fenómenos da imaginação se constituam e se estabilizem em imagens completas para conhecer o fluxo de produção das imagens. Noutras palavras, como o imenso não é um objecto, uma fenomenologia do imenso remeter-nos-ia sem rodeios à nossa consciência imaginante. Nesse caminho do devaneio de imensidão construiríamos em nós o ser puro da imaginação pura. Ficaria então claro que as obras de arte são os subprodutos desse existencialismo de ser imaginante. Nesse caminho do devaneio de imensidão, o verdadeiro produto é a consciência dessa ampliação. Sentimo-nos promovidos à dignidade do ser que admira.

Por conseguinte nessa meditação não somos “lançados no mundo”, já que de certa forma abrimos o mundo numa superação do mundo visto tal como ele é, tal como ele era antes que sonhássemos. Mesmo se estivermos conscientes do nosso ser mirrado – pela própria acção de uma dialéctica brutal - , tomamos consciência da grandeza. Somos então entregues a uma actividade natural do nosso ser imensificante.

A imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de expansão de ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que retorna na solidão. Quando estamos imóveis, estamos algures; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel. A imensidão é uma das características dinâmicas do devaneio tranquilo.

E, já que haurimos nos poetas todo o nosso ensinamento filosófico, leiamos Pierre Albert-Birot, que diz em três versos (2):


E eu me crio com um traço de pena
Senhor do mundo,
Homem ilimitado.

(…)






(1) “A distância arrasta-me no seu exílio móvel”, Supervielle, l´escalier
(2) Pierre Albert-Birot, Les amusements naturels










gaston bachelard
a poética do espaço
trad. antónio de paula danesi
livraria martins fontes
s. paulo
1989