25 setembro 2007

estar lá






Estar lá
na espessura do mundo
as mãos abertas
o coração em vigília


Estar lá
sem outro desejo
que uma nascente
sem outro desígnio
que o amor.










jean-luc pouliquen
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 2 primavera 2002
tradução hugette rotheval e inês lourenço
edições quasi
2002









24 setembro 2007

claude lévi-strauss / olhar ouvir ler




XX
Descrevi noutro lado as circunstâncias em que conheci André Breton, no barco que nos levava a Martinica: longa viagem em que enganávamos a maçada e o desconforto discutindo sobre a natureza da obra de arte, primeiro por escrito, depois em conversa.
Para começar, eu tinha dado um texto a apreciar a André Breton. Ele respondeu-lhe e eu guardei a sua carta preciosamente. O acaso quis que, muito mais tarde, arquivando papéis velhos, eu tivesse encontrado o meu texto: Breton, provavelmente, tinha-mo devolvido.
Ei-lo seguido do texto inédito de Andre Breton. Agradeço a Madame Elisa Breton e Madame Aube Elleouet a autorização de publicação
.
Nota sobre as relações
da obra de arte e do documento,
escrita e entregue a André Breton
a bordo do Capitaine Paul Lemerle
em Março de 1941
No Manifesto do Surrealismo A. B. definiu a criação artística como a actividade absolutamente espontânea do espírito; tal actividade pode ser concebida como resultante de um treino sistemático e da aplicação metódica de um certo número de receitas: todavia a obra de arte define-se - e define-se exclusivamente — pelo seu carácter de liberdade total. Parece que neste ponto A. B. modificou sensivelmente a sua atitude (em A Situação Surrealista do Objecto). No entanto a relação que existe, segundo ele, entre a obra de arte e o documento não é perfeitamente clara. Se é evidente que toda a obra de arte é um documento, poderá admitir-se, como o implicaria uma interpretação radical da sua lese, que todo o documento seja, por isso mesmo, uma obra de arte? Partindo da posição do Manifesto, três interpretações’ são possíveis:
1) O valor estético da obra depende exclusivamente da sua maior ou menor espontaneidade, sendo a obra de arte mais válida (enquanto tal) definida pela liberdade absoluta da sua produção. Se qualquer pessoa, convenientemente treinada, é susceptível de atingir esta completa liberdade de expressão, então a produção poética está aberta a toda a gente. O valor documental da obra confunde-se com o seu valor estético; o melhor documento (avaliado como tal em função do grau de espontaneidade criadora) é também o melhor poema; de direito se não de facto, o melhor poema pode ser não apenas compreendido mas produzido por qualquer pessoa. Podemos conceber uma humanidade na qual lodos os membros, exercitados por uma espécie de método catártico, seriam poetas.
Tal interpretação aboliria o conjunto de privilégios electivos englobados até ao presente sob a designação de talento; e se ela não nega o papel do esforço e do trabalho na criação artística, pelo menos desloca-os para um estádio anterior ao da criação propriamente dita: o da pesquisa difícil e da aplicação dos métodos para suscitar um pensamento livre.
2) Mantendo-se a interpretação precedente, verifica-se mesmo assim, a posteriori, que os documentos provenientes de um grande número de indivíduos, se, do ponto de vista documental, se podem considerar como equivalentes (quer dizer; resultantes de actividades mentais igualmente autênticas e espontâneas), não o são no entanto do ponto de vista artístico, já que alguns deles proporcionam uma fruição e outros não. Como continuamos a definir a obra de arte como um documento (produto bruto da actividade do espírito), admitiremos a distinção sem procurar explicá-la (e sem ter a possibilidade dialéctica de o fazer). Constataremos a existência de indivíduos poetas e de outros que o não são, apesar da identidade completa, das condições das suas respectivas produções. Toda a obra de arte continua a ser um documento, mas deverá distinguir-se, de entre esses documentos, os que são também obras de arte dos que são apenas documentos. Mas como uns e outros permanecem definidos como produtos brutos, essa distinção, impondo-se a posteriori, será considerada em si própria como um dado primitivo, escapando, pela sua natureza, a qualquer interpretação. A especificidade da obra de arte será reconhecida sem que seja possível detectá-la. Constituirá um «mistério».
3) Finalmente, uma terceira interpretação, mantendo o princípio fundamental do carácter irredutivelmente irracional e espontâneo da criação artística, distingue entre o documento, produto bruto da actividade mental, e a obra de arte que consiste sempre numa elaboração secundária. É evidente, no entanto, que esta elaboração não pode ser produto do pensamento racional e crítico; tal eventualidade deve ser radicalmente excluída. Mas poderá supor-se que o pensamento espontâneo e irracional pode, em certas condições, e em alguns indivíduos, tomar consciência de si próprio e tornar-se verdadeiramente reflexivo, estando entendido que esta reflexão se exerce segundo normas que lhe são próprias, e tão impermeáveis à análise racional como a matéria à qual se aplicam. Esta «tomada de consciência irracional» implica uma certa elaboração do dado bruto, exprime-se através da escolha, da eleição, da exclusão, da regulamentação em função de estruturas imperativas. Embora toda a obra de arte continue a ser um documento, ultrapassa o plano documental, não apenas pela qualidade da expressão bruta, mas também pelo valor da elaboração secundária que, de resto, apenas se chama «secundária» em relação aos automatismos de base mas que, em relação ao pensamento crítico e racional, apresenta a mesma característica de irredutibilidade e de primitividade que esses mesmos automatismos.
A primeira interpretação não está de acordo com os factos; a segunda subtrai o problema da criação artística à análise teórica. Pelo contrário, a terceira é a única que parece susceptível de evitar certas confusões, às quais o surrealismo nem sempre parece ter escapado, entre o que é esteticamente válido e o que o não é, entre o que o é mais e o que o é menos. Qualquer documento não é necessariamente uma obra de arte, e tudo o que constitui uma ruptura pode ser igualmente válido para o psicólogo ou para o militante, mas não para o poeta, mesmo se o poeta também for um militante. A obra de um débil mental tem um interesse documental tão grande como a de Lautréamont, pode ter uma eficácia polémica superior, mas uma é uma obra de arte e a outra não, e é preciso ter o meio dialéctico de dar conta da diferença, e também da possibilidade de Picasso ser melhor pintor do que Broque, de Apoilinaire ser um grande poeta e Roussel não, de Salvador Dali ser um grande pintor e ao mesmo tempo um escritor detestável. Se estes juízos apenas são dados a título de exemplo, juízos deste teor, ainda que talvez diferentes ou opostos, não deviam deixar de constituir o termo absolutamente necessário da dialéctica do poeta e do teórico.
Já que as condições fundamentais da produção do documento e da obra de arte foram reconhecidas como idênticas, estas distinções essenciais só podem ser adquiridas deslocando a análise da produção para o produto e do autor para a obra.
Relendo hoje esta nota manuscrita, a inabilidade do pensamento constrange-me, tal como a deselegância da expressão. Desculpa fraca: é evidente que escrevi de jacto (apenas duas palavras rasuradas). Teria preferido esquecê-lo. Mas seria uma injustiça para o importante texto que Breton me enviou como resposta. Sem o meu, o seu tema seria incompreensível.
No manuscrito de Breton, cuidadosas rasuras tornam indecifráveis uma dezena de palavras ou membros de frases, substituídos por uma nova redacção nas entrelinhas onde surgem também alguns acrescentos. As correcções feitas às últimas linhas, muito emendadas, não permitem avaliar se Breton, com menos pressa de acabar, teria optado por uma construção gramatical ou se deliberadamente a rejeitou.
Resposta de André Breton
A contradição fundamental que você sublinha não me escapa: ela permanece, apesar dos meus esforços e de mais alguns para a reduzir (mas não me preocupa nem poderia confundir-me porque sei que nela reside o segredo do movimento para a frente que permitiu ao surrealismo durar). Claro que, naturalmente, as minhas posições variaram sensivelmente desde o 1° manifesto. No interior de textos-programa deste tipo, que não comportam a expressão de nenhuma reserva, de nenhuma dúvida, cujo carácter essencialmente agressivo exclui toda a casta de subtilezas, é óbvio que o meu pensamento tende a adquirir um tom extremamente brutal, mesmo simplista, que não lhe conheço interiormente.
Esta contradição que o choca é, creio, a mesma que Caillois, como eu lhe dizia, rebateu de um modo tão severo. Tentei explicar-me num texto intitulado «A beleza será convulsiva» (Minotaure n°5) e retomado no início de L’Amour fou. Com efeito, cedo alternadamente - e afinal por que não? não sou o único — a dois apelos muito distintos: o primeiro leva-me a procurar na obra de arte uma fruição (é a única palavra exacta, você emprega-a, já que a análise deste sentimento em mim não me dá senão elementos para-eróticos); o segundo, que se manifesta independentemente ou não do primeiro, leva-me a interpretá-la em função da necessidade geral de conhecimento. Estas duas tentações, que distingo no papel, nem sempre são separáveis (tendem a confundir-se também em muitas passagens de Uma época no Inferno).
Escusado será dizer que, se qualquer obra de arte pode ser considerada sob o prisma do documento, a recíproca não poderia de forma nenhuma sustentar-se.
Examinando sucessivamente as suas três interpretações, não me sinto nada embaraçado em lhe dizer que apenas me sinto absolutamente próximo da última. No entanto, algumas palavras a propósito das precedentes:
1) Não estou seguro de que o valor estético da obra dependa da sua maior ou menor espontaneidade. Eu tinha muito mais em vista a sua autenticidade do que a sua beleza, e a definição de 1924 testemunha-o: «Ditame do pensamento.., fora de qualquer preocupação estética ou moral. » Não lhe pode passar despercebido que a omissão deste último membro da frase pudesse ter privado o autor de textos automáticos de uma parte da sua liberdade: seria preciso começar por defendê-lo de qualquer juízo deste tipo se quiséssemos evitar que ele fosse por isso constrangido a priori e se comportasse de acordo com isso. Infelizmente isto não foi completamente evitado (mínimo de organização do texto automático em poema: deplorei-o na minha carta a Rolland de Reneville publicada em Points du Jour mas é fácil ter em conta esta preocupação e de a retirar da obra considerada).
2) Não estou tão seguro como você da enorme diferença qualitativa que existe entre os diversos textos completamente espontâneos que se podem obter. Sempre me pareceu que o principal elemento de mediocridade susceptível de intervir era devido à impossibilidade em que se encontram muitas pessoas de se colocarem nas condições requeridas para a experiência. Contentam-se em registar um discurso descosido, onde se iludem com os despropósitos, o absurdo, mas podemos constatar por sinais facilmente discerníveis, que não se expuseram verdadeiramente, o que basta para afastar o seu pretenso testemunho. — Quando afirmo que não estou tão seguro disso como você é sobretudo porque ignoro como é que a ipseidade (comum a todos os homens) se encontra repartida (igualmente ou, se o está desigualmente em que medida?) entre os homens. Só uma investigação de carácter sistemático e que deixe provisoriamente os artistas de lado nos poderia esclarecer a este propósito. A hierarquização das obras surrealistas não me interessa praticamente nada (ao contrário do que Aragon afirmava em tempos: «Se escreverem de maneira puramente surrealista algumas imbecilidades tristes, serão sempre imbecilidades tristes»); o mesmo se passa, como o dei a entender, com a hierarquização das obras românticas ou simbolistas. A minha classificação destas últimas obras diferiria radicalmente da que é aceite e, sobretudo, tenho a objectar a estas classificações o facto de nos fazerem perder de vista o significado profundo, histórico desses movimentos.
3) Será que a obra de arte exige sempre esta elaboração secundária? Sim, sem dúvida, mas somente no sentido muito lato em que você o entende: «tomada de consciência irracional», e mesmo assim, em que nível de consciência se opera essa elaboração? Em todo o caso, estaríamos apenas no pré-consciente. As produções de Hélène Smith em estado de transe não poderão ser tomadas como obras de arte? E se chegássemos a demonstrar que certos poemas de Rimbaud são pura e simplesmente sonhos acordados, você apreciá-los-ia menos? Relegá-los-ia para a gaveta dos «documentos»? A distinção continua a parecer-me arbitrária. Torna-se, a meu ver, especiosa, quando você opõe Apollinaire poeta a Roussel não-poeta ou Dali pintor a Dali escritor. Tem a certeza de que o primeiro destes juízos não é demasiado tradicionalista, de que não reproduz demasiado a «velharia poética»? Não considero Dali um grande «pintor» e isto pela excelente razão de que a sua técnica é manifestamente regressiva. O que me interessa nele é o homem e a sua interpretação poética do mundo. Por isso, não posso associar-me à sua conclusão (mas isto você já o sabia). Há outras razões mais imperiosas que argumentam em favor da sua não aceitação da minha parte. Essas razões, insisto, são de ordem prática (adesão ao materialismo histórico). É verdade que o alijar da responsabilidade psicológica é necessário à obtenção da atitude inicial de que tudo depende, mas é a responsabilidade psicológica e moral mais profunda: identificação progressiva do eu consciente com o conjunto das suas concreções (está muito mal dito) considerado como o teatro no qual ele é chamado a produzir-se e reproduzir-se, tendência para a síntese do princípio do prazer com o princípio da realidade (desculpe por ficar uma vez mais no limiar do meu pensamento sobre este assunto); concordância a todo o preço do comportamento extra-artístico e da obra: anti-valerismo.





claude lévi-strauss
olhar ouvir ler
trad. teresa meneses
edições asa
1995




20 setembro 2007

flor de sal




não chames por mim
levo nos olhos queimados
o fim dos desertos

não te posso escutar
na branca solidão dos dias
porque até no meu silêncio
te matei

não chames por mim
levo nos passos
o veneno da Lua

a espuma do tempo
sai-me das mãos vazias
e apaga o trilho
por onde as vozes
podem chegar

não chames por mim
levo o peito tão rasgado
de ausência!

e no meu coração
só há
uma vermelha flor de sal
que já ninguém
pode tocar




gil t. sousa
poemas
2001





albuquerque mendes



auto-retrato
2006
carvão e pastel s/papel
200 x 150 cm




santa luzia
2006
carvão e pastel s/papel
200 x 150 cm




xiv bienal de v. n. cerveira
as novas cruzadas






19 setembro 2007

achado entre os papéis de família




Sonhei tanto, tanto que já nem sequer aqui estou.
Não me façam mais perguntas, não me atormentem mais.
Não me acompanhem neste meu calvário.

Não me é dado explicar quais as ordens que tenho.
Nem mesmo me assiste o direito de pensar nisso,
Há muito tempo já que me levanto e parto.

Há uma permissão da morte, e ei-la que chega.
Na curva da rua que vai dar à noite é que a espero.
O mar vai estar de novo nos últimos terraços.
Um candeeiro de novo aceso sente o desejo das trevas.
Um passo no empedrado. A sombra dele precede-o
E deita-se sobre mim, a cabeça no meu coração.
Ali está ele.

Sempre de chapéu redondo, sempre de saco na mão
Tal como era no dia em que regressou de Itália.
Já não lhe vejo os olhos. Já me não fala.

Eis que rolo até ele como uma obscura pedra.
Não consigo atravessar a sua sombra.
Portaste-te como devias? E desde então que fizeste?
E porque não subiste?
Todos os dias ia ver se chegavas e não chegaste nunca!

Ele nada diz sobre tudo isto.
Mas tudo nele me diz: lembra-te!

Sobre ele a noite tornou a fechar-se.








léon-paul fargue
sous la lampe: suite familiére-banalité
gallimard-nouvelle revue française, 1929
tradução de nicolau saião






17 setembro 2007

sentires




sobre os dedos caiem pensamentos
medos concentrados, razões, limites
nos limites ficam as paisagens redondas do dia
do dia caiem artérias fundidas,
abismos em cápsulas adormecidas.


lateja o brilho que toca na pedra.
ávido o coração fecha-se na soturna ausência

abrem-se sonhos frios
abandonados em corpos sem rosto,
imagens ilegíveis e desoladas
crescem próximas do vento.

a mistura da vida
é venenosa na miséria consentida
ao fundo erguem-se cidades
sísmicas
cardadas em teias de fumos


a casa é o corpo corroído
o caos da desordem
ou o fascínio do imprevisto.

o olhar recolhe singrando o mar
atento ao sobressalto nocturno.

obsessiva é a voz
nas horas que demoram a passar





l.maltez




12 setembro 2007

eu sei




brilhos com fulgurâncias na opacidade das noites reverbativas
calmas ondulações nos peitos habitados dos habitantes sem casa
deito sobre as águas as águas dos meus olhos crucificados
e espreito as lucarnas das cúpulas sagradas dos infinitos

revejo as lições jamais aprendidas nos cadernos enfurecidos
dos alunos incompreendidos na sua estranheza de seres inertes

que noite de inquietação gritante contra os céus incógnitos
da nossa lua deambulante qual triste noiva sem véus nem flores de
laranjeira
abolidas das tradições nupciais
plásticas
em cerimónias de fantochadas acrílicas
e construções precárias

quanta ilusão desvanecida nas mãos de jovem senhora de
provecta idade
no seu sofá sentada
televisor mudo
os arames de suas roupas em cores de ferrugem
sobre o azul dos cabelos
o amarelo das dores

e a noite que se encolhe
distende
sonha
de olhos semi-cerrados nas covas orbitais

sou?
quem?
como?
quando me imaginaram?

eu sei

no tempo sem tempo
nas costas do universo paralelo a este
onde nado confortavelmente
na piscina aquecida






m.f.s.






10 setembro 2007

albert camus, cadernos III



Alexandre Blok,


«Oh se soubésseis crianças
as trevas e o frio dos dias que hão-de vir.»

e ainda:

«Como é penoso andar por entre os homens,
Fingir ainda existir.»

e ainda:

«Somos todos infelizes. A nossa pátria preparou-nos um terreno para as paixões e os dissídios. Cada um de nós vive por trás de uma muralha da China desprezando-se mutuamente. Os nossos verdadeiros inimigos são os popes, a voka, a coroa, os polícias, ocultando os seus rostos e excitando-nos uns contra os outros. Esforçar-me-ei por esquecer… todo este atoleiro para se chegar a ser um homem e não uma máquina de incubar o ódio…

… Só amo a arte, as crianças e a morte.»

Id. Perante a ignorância e o esgotamento dos pobres:

«O meu sangue gela de vergonha e de desespero. Só há vazio, maldade, cegueira, miséria. Só uma compaixão total pode produzir uma mudança… Reajo assim por que a minha consciência não está tranquila… Sei o que devo fazer: dar todo o meu dinheiro, pedir perdão a toda a gente, distribuir os meus bens, o meu vestuário… Mas não posso… não quero… »

«Ó minha querida, minha bem amada ralé!»

«O que está nos confins da arte não pode ser amado» e no entanto: «Nós morremos todos, mas a arte fica.»







albert camus
cadernos III
(caderno nr. 6 abril 1948/Março 1931)
trad. antónio ramos rosa
livros do Brasil
1966






06 setembro 2007

alejandra pizarnik / um abandono





Um abandono em suspenso,
ninguém é visível sobre a terra.
Só a música do sangue
assegura residência
num lugar tão aberto.





alejandra pizarnick
antologia poéticatrad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002

04 setembro 2007

debaixo da oliveira




Que calor está aqui, tanto calor,
e parados os rios cinzentos
debaixo das pontes.

Se não houvesse oliveira,
esta exígua faixa escura,
não poderíamos ficar

Teríamos de correr atrás dos ventos, seguir
a sombra das nuvens como os pássaros
em tempos de caça.








hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em Mateus
quetzal editores
1994






29 agosto 2007

lady lazarus




Voltei a fazê-lo.
Uma vez em cada dez anos
Lá consigo —

Uma espécie de milagre ambulante, a minha pele
Brilhante como a de um candeeiro nazi,
O meu pé direito

Um pisa-papéis,
O meu rosto vulgar, fino
E de judia cepa.

Apaga-me da toalha
Oh, inimigo meu.
Meto medo a alguém?

O nariz, as covas dos olhos, os dentes todos?
O hálito acre
Desaparecerá um dia.

Daqui a pouco, daqui a pouco a carne
Que a sepultura comeu ficará
À vontade comigo como se em sua casa.

Mas eu sou uma mulher optimista.
Só tenho trinta anos.
E como os gatos tenho sete vidas para viver.

Esta é a Número Três.
Que porcaria de vida
A aniquilar todos os dez anos.

Quantos milhões de filamentos.
Uma multidão a roer amendoins
Empurra-se para ver

Sôfregos a despirem-me
Que fantástico strip tease.
Meus senhores, minhas senhoras

Estas são as minhas mãos
Os meus joelhos.
Talvez eu seja apenas pele e osso,

Contudo, sou precisamente a mesma mulher.
A primeira vez foi aos dez anos.
Foi um acidente.

Da segunda vez eu quis mesmo
Ir até ao fim e nunca mais regressar.
Voltei fechada

Como uma concha.
Tiveram de me chamar e voltar a chamar
E arrancar de mim os vermes como se pérolas pegajosas.

Morrer
É uma arte, como outra coisa qualquer.
E eu executo-a excepcionalmente bem.

Executo-a de forma a parecer-se com o inferno.
Executo-a de forma a parecer real.
Acho que se podia dizer que tenho um dom.

É bastante fácil executá-la numa cela.
É bastante fácil executá-la e ficar como se nada fosse.
É cena de teatro

Regressar em pleno dia
Ao mesmo lugar, ao mesmo rosto, ao mesmo brutal
E divertido grito:

Um milagre!
Que me põe K.O.
Há que pagar.

Para ver as minhas cicatrizes, há que pagar
Para ouvir o meu coração —
É assim mesmo.

Há que pagar, e pagar bem.
Por uma palavra ou um toque
Ou uma gota de sangue

Ou por um bocado do meu cabelo ou da minha roupa.
Vá lá então, então, Herr Doktor.
Então, Herr Inimigo.

Sou o seu opus,
Sou a sua jóia de estimação,
Um bebé todo em ouro

Que se funde com um grito.
Volto-me e ardo.
Não pense que subestimo as suas grandes preocupações.

Cinza, cinza —
Mexe e atiça.
Carne, osso, nada mais ali existe —

Um pedaço de sabonete,
Uma aliança de casamento,
A coroa em ouro de um dente.

Herr Deus, Herr Lúcifer
Tende cuidado
Muito cuidado.

Renasço das cinzas
Com o meu cabelo fulvo
E devoro homens como faço ao ar.






sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´água
1996





23 agosto 2007

paris, os passeios de um flâneur









(…)


Era no Hôtel de Lauzun que Le Club des Hachichins realizava as suas reuniões. Aí, um grupo de homens ligados às letras e às artes — incluindo os escritores Balzac, Gautier e Baudelaire e os pintores Édouard Manet, Honoré Daumier e Constantin Guys — reunia-se com umas quantas mulheres para passar longas noites em que ouviam música e... comiam haxixe (porque, pelos vistos, o haxixe era servido sob a forma de uma geleia esverdeada), O anfitrião, Fernand Boissard, um pintor menor, era rico (sem depender de heranças) e vivia no principal e principesco andar do Hôtel, onde tinha um clavicórdio, ao que parece decorado com pinturas de Watteau, e elegantes peças de mobiliário que casavam na perfeição com as paredes e as portas pintadas, esculpidas e douradas. Boissard costumava tocar violino quando estava pedrado; ou então contratava músicos para o acompanharem num trio de Beethoven ou Mozart.

Uma das visitas da casa, Paul Guilly, lembra que Boissard

...era um homem que vivia para o refinamento e a volúpia e que tinha verdadeiro horror aos convidados importunos ou maçadores. O seu maior prazer era receber e, por isso mesmo, seleccionava as visitas com todo o cuidado; não se podia aparecer sem convite, mas, a partir do momento em que éramos admitidos no círculo íntimo, podíamos fazer ou dizer aquilo que nos apetecesse. Rodeava-se de artistas que partilhavam os seus gostos e de belas raparigas que não eram obtusas, nem, em abono da verdade, completamente ignorantes das questões espirituais ou artísticas. Acima de tudo, Boissard adorava os jantares com amigos sinceros, incondicionais, essas noites íntimas em que passávamos horas debatendo os significados de um paradoxo entre um pouco de música de cravo e as estrofes de um poema.

Théophile Gautier deixou-nos um relato extremamente colorido da sua primeira participação numa das reuniões mensais do Club des Hachichins. Nesse texto, Gautier recorda que estava uma noite de breu e um nevoeiro muito cerrado — uma verdadeira tela de algodão que esbatia todos os objectos e que só a luz das lanternas ou das janelas conseguia penetrar. Além disso, caía uma chuva fria, de tal forma que o cocheiro de Gautier mal conseguia enxergar a placa de mármore que indicava o nome do Hôtel. Uma velha criada abriu-lhe a pesada porta e, com um dedo magro, indicou-lhe o caminho.

De súbito, o escritor viu-se diante de uma daquelas escadarias gigantescas construídas na época de Luís XIV (tão gigantesca, de facto, que uma casa moderna caberia toda lá dentro com a maior facilidade, diz Gautier). A estátua de uma quimera egípcia erguia uma única vela. Pensando nos cortesãos do século XVII com as suas rendas e perucas, Gautier concluiu que estava pessimamente vestido para a ocasião. No andar de cima, Gautier tocou a uma sineta e logo penetrou numa ampla sala, iluminada apenas numa das extremidades; nesse instante, teve a clara sensação de que acabara de recuar dois séculos.

Um médico encarregava-se do haxixe. Aparecia com uma bandeja carregada de geleia verde e os convidados, depois de terem comido a dose a que tinham direito, passavam uns aos outros as chávenas de café turco. Tendo começado com a última coisa que se serviria num jantar francês normal, sentavam-se depois a uma mesa a fim de degustarem uma refeição mais convencional. Os pratos e os copos, contudo, eram estranhos, exóticos — pratos de serviços diferentes (da China, do Japão, da Saxónia), copos de cristal de Veneza. Sob a influência da droga, a água sabia a vinho e a carne a framboesas. Com a refeição já perto do fim, Gautier sentiu que estava a enlouquecer. As alucinações que, durante o jantar, se tinham apossado dele em vagas intermitentes, converter-se-iam, durante o resto da noite, numa parte permanente, embora sujeita a flutuações constantes, da sua percepção.

Todos os sinais de quem está totalmente, delirantemente, ou mesmo perigosamente pedrado, e que o meu caro leitor tão bem conhece, eram já algo de familiar para os frequentadores e residentes do Hôtel de Lauzun mais dados às artes e às letras. Rompiam num riso incontrolável e, escassos segundos depois, um medo inexprimível apossava-se deles, logo seguido de um plangente amor a toda a humanidade ou da total imersão num livro de gravuras. Os movimentos tornavam-se lentos e viscosos, o tamanho dos quartos expandia-se de uma forma brutal, um sentido do épico e do magnificente distorcia a atmosfera da reunião, para logo ser substituído por um olhar que descobria com repulsa os grotescos rostos dos outros hachichins. Tudo era tão distorcido — e tão apelativo para a imaginação — que não admira que Gautier tivesse usado a palavra «fantasia» para descrever uma tal noite. Saberia Gautier (por certo sabia) que uma fantasia era também uma composição musical de forma livre aberta ao improviso? Ou que, em Marrocos, uma fantasia era uma gala equestre e militar que envolvia espectaculares investidas de sucessivos esquadrões de cavalaria dotados de inexcedíveis talentos na arte da equitação, os homens vestidos com figurinos de veludo debruados a ouro e mantos esvoaçantes, montando magníficos garanhões, acompanhados por uma banda e por tambores e até por danças, e com toda a cena envolta no nevoeiro causado pelo fumo das fogueiras onde se preparava o banquete que se seguiria ao espectáculo?

Como seria de esperar, Balzac inspeccionou com toda a atenção a geleia verde e chegou mesmo a pegar nos diversos apetrechos, provenientes do Próximo Oriente, que se destinavam ao consumo da droga, e, como era seu timbre, fez todas as perguntas do género «recolha de informações» — mas não provou nem um miligrama do haxixe, receando perder o controlo da sua vontade de aço ou da sua influenciável mente. Provavelmente, o Clube dos Consumidores de Haxixe não se reuniu mais de oito ou nove vezes. Também não há nenhuma prova de que o próprio Baudelaire tenha experimentado a droga mais do que uma ou duas vezes; de qualquer modo, o poeta considerava o vinho preferível ao haxixe, já que o vinho, dizia ele, era mais «democrático» porque mais barato e mais facilmente disponível (tal e qual como Oscar Wilde, Baudelaire era simultaneamente um «socialista» e um snob estético). Para ser mais exacto, Baudelaire louvava tanto o vinho como o haxixe por promoverem «o excessivo desenvolvimento poético da humanidade», mas não deixava de acentuar que o vinho exalta a vontade, o haxixe aniquila-a. O vinho é um sustento para o corpo, o haxixe uma arma pata o suicídio. O vinho torna as pessoas boas e amistosas. O haxixe isola, O vinho significa trabalho duro, ao passo que o haxixe é um sinónimo de preguiça. Por que estranha razão há-de alguém suportar a maçada que é trabalhar, lavrar a terra, escrever, enfim, fazer o que quer que seja, se, com uma fumaça, pode alcançar o paraíso? O vinho é para as pessoas que trabalham e que merecem bebê-lo. O haxixe pertence à categoria dos prazeres solitários; foi feito para o ocioso infeliz, O vinho é útil, produz resultados frutíferos. O haxixe é inútil e perigoso.

É possível que a imaginação de Baudelaire fosse tão espicaçada pela atmosfera do Hôtel de Lauzun como pelo próprio haxixe. Ele e Gautier celebravam a história segundo a qual a palavra haxixe estaria ligada à palavra assassino; no seu conto Le Club des Hachichins, Gautier conta mesmo a história do déspota «oriental» que transformou os seus homens em saqueadores (ou assassinos) desvairadamente intrépidos e sem o menor medo da morte, mantendo-os constantemente pedrados com haxixe.

Ou talvez Baudelaire tivesse sido estimulado pelos seus companheiros e muito em particular por uma surpreendente jovem conhecida como Pomaré (de seu verdadeiro nome Elise Sergent) que praticava o travestismo. «La Pomaré», como lhe chamava Baudelaire, vestia-se como um «gentleman» (o poeta usava a palavra inglesa), com gravata branca, fraque preto, calças pretas e sobretudo branco. As mãos enluvadas de branco costumavam empunhar uma bengala. A Pomaré era, segundo o poeta, um bom camarada e óptima companhia — excepto quando dava com uma bourgeoise num restaurante. Se, por exemplo, visse a mulher de um notário sentada a uma mesa com o marido, tinha um acesso de fúria e rompia a cantar a sua canção favorita — que falava de um general do exército italiano que estava de cócoras a coçar os tomates, o que levava uma elegante virgem a dizer-lhe que ele não passava de um cara de cu... A Pornaré era alta e esbelta, com um peito raso, um dito espirituoso sempre na ponta da língua e, quando lhe dava para isso, era tão frontal, tão terra-a-terra, que Baudelaire lhe chamava «o meu camarada das ancas largas». A Pomaré vivia no Hôtel de Lauzun e Baudelaire desejava-a (ou, pelo menos, excitava-o a ideia de uma mulher tão sem pruridos nem inibições) tanto quanto a estimava.

(…)









edmund white
paris, os passeios de um flâneur
tradução josé vieira de lima
asa editores
2004








19 agosto 2007

talbot road

onde vivi em Londres 1964-5






1

Entre as boutiques creme
de Notting Hill e as menos definidas
mas inóspitas paragens de Harrow Road,
toda ela tijolo enegrecido, ficava a rua
construída para burgueses, uma outra Belgravia,
que acabara por ficar
para operários («Negros ou Irlandeses
Não se Precisam») para depois como as veias
de um inglês de gema
se encher de uma mistura promíscua:
polaco, italiano, irlandês, jamaicano,
fluxo rico e revolto. Um restaurante jugoslavo
encaixilhou fotografias de príncipes exilados,
mas as crianças eram gralhas com sotaque de Londres.
Vivi em Talbot Road
durante um ano. O excelente quarto
onde dormi, comi, li e escrevi
tinha um tecto alto, a toda a volta
rosas de estuque tinham sido pintadas de azul.
Podia passar-se pela janela
para uma varanda maciça e até
(se o cano não estivesse entupido)
lá jantar em noites quentes.
A isto chamo pleno acesso –
ao ar, à rua, à amizade:
pois dali podia ver, ao fundo de algumas ruas,
a janela onde o Tony, o meu velho amigo,
trabalhava em traduções. Também eu tentava
verter passos obscuros em inglês claro,
como faço agora.



2

Amigo sedutor e difícil,
conselheiro e aliado. Como estudantes
absortos no nosso próprio romantismo,
poeta inocente e actor posáramos
representáramos os nossos papéis um ao outro
tem-me por vezes parecido
como garanhões em casa de passe.
Ele via-se, todavia, às voltas
com a figura mais bonita do seu curso.
Se «os ricos são diferentes de nós»,
também os bonitos o são. O que
é que ele na verdade queria? Ah, a tal pergunta...

Duas ligações a correr em Londres,
uma em Northampton, uma na Irlanda,
provavelmente outras. Amigos e amantes
todos tinham as suas versões privadas dele.
Duque fantástico de lugares escuros,
nunca precisava de mentir:
tínhamos aprendido a não fazer perguntas.

O fogo de alguém tão bonito.
Mas quase escondido pelo aro do fogo,
por trás da máscula doação de si,
no centro da exuberância, havia
algo retido, lento, algo -
o quê? o quê? Um brasido húmido de insatisfação.
Especulava então sobre as «relações humanas»
que deveríamos entender
— vide Forster, passim, etc. –
como um fim, um bem em si mesmas.
Ele não as via desse modo.

Finalmente deu nisto,
as poses desfizeram-se a este ponto:
gostava mais de nós pelas nossas faltas
do que por aquilo que pudéssemos dar-lhe.
Quando uma vez num pub perdi a cabeça,
voltei abrindo caminho a ombro do urinol
e disse ríspido: «Estava zangado demais para mijar.»
No dia seguinte exclamou encantado,
«Sabes que foi a primeira vez
que te zangaste comigo?»
Como algumas pessoas esperam por um sinal de amor,
ele esperara não sei quantos anos
por um sinal de cólera,
por um sinal de alguma coisa que não o amor.



3

Uma Londres a que se volta doze anos depois.
Numa longa passagem entre duas ruas
vi por ali andando quem fui outrora
ou assim parecia
um jovem à volta dos dezanove fitando-me
de uma curva do desejo. Manteve o olhar
como se o abrigasse do vento.
Os nossos olhares falaram-se, depois tocámo-nos
na conversa dos corpos.
Juntos em pé no asfalto às claras,
gradualmente nos abandonámos a um riso partilhado.
Era este o ano, o ano da reconciliação
com o que quer que fosse que tinha deixado,
o calor acídico das emoções adolescentes,
o emudecimento prematuro e o desprezo de si.
No meu riso, na minha sorte,
perdoei-me a mim mesmo ter tido uma adolescência.

Comecei a acumular perdões
até em antecipação. Em Hampstead Heath
conhecia desde criança cada caminho súbito,
os nós de cada árvore a que podia subir-se.
E agora acometi-os à noite
e, onde jogara às escondidas
com crianças da zona, joguei como um adulto
com rondas de homens cujos turnos se cruzavam
na Árvore da Orgia ou no bosque
de troncos de vidoeiro fulgindo como sentinelas mudas
ou em tendas de ramo e arbusto
cercados pelo cheiro familiar
de folha tenra salgada, explosiva.
Numa floresta de Arden, num sonho de uma noite de verão
perdoei a toda a gente a sua juventude.



4

Mas voltei, depois do último autocarro,
de Hampstead, Wimbledon, dos pubs,
dos viadutos de comboios do East End,
voltei a Talbot Road,
ao tijolo, ao cimento das frentes arturianas,
às grades da zona perto de alçapões de carvão,
às espessas colunas dos vestíbulos.
A minha varanda enchia-se de neve húmida.
Quando secava, o Tony e eu
almoçávamos aí ao sol
empada de vitela e presunto, cerveja e salada.
Falava-lhe das minhas aventuras.
Ele perguntava-se em voz alta se seria mais feliz
se fosse bicha como eu.
Como poderia ele querer, perguntava-me eu,
ser outro que não ele?
Então tinha de ir-se embora,
ir-se na vivacidade do seu andar
para onde, nunca perguntei ou adivinhei.

No final do meu ano, antes de partir,
ele deu uma grande festa para mim
num barco dos canais. A festa deslizou
pela malha aquosa de Londres,
rede que sempre apercebêramos
a um canto do olho
por trás de grades ou do cimo dos autocarros.
Agora cá estávamos, levados nela,
num piquenique, olhando entre garfadas
para traseiras de prédios, para paredes negras de fumo
cor de coral à luz do longo crepúsculo,
para o que sempre suspeitáramos
quando cruzávamos as pontes sob que passávamos agora,
deslizando entre o segredo aberto.



5

Isto foi há quinze anos.
O Tony morreu, o bairro em que vivi
foi deitado abaixo. A mente
é um lugar impermanente, será,
mas aspira à permanência.
A rua abriu e abriu-se
à total ausência de carácter. Ontem à noite
sonhei com ela como poderia ter sido,
o passeio junto ao gradeamento da igreja
estava molhado com chuva primaveril,
era noite, a luz dos candeeiros
esboçava-a numa gravura perfeita.
Postal sentimental de um sonho,
de um momento entre tumultos raciais!

Mas lembro-me, nítida, da minha última semana,
quando todos os detalhes se iluminaram de sentido.
Um rapaz estava a ficar pareceu-me,
com a sua avó na casa em frente.
Era um rapaz novo, talvez do campo.
Todas as noites dessa semana
se sentou com a sua camisa branca à janela
— um arco gótico de proporções diminutas —
apoiado nos braços, olhando para baixo
como se atentamente decifrasse caracteres
de uma língua viva que ainda estava a aprender,
nem um sorriso fazendo estalar as suas faces róseas.
Olhando em baixo
o tráfego humano, de todas as nações,
os justos e os injustos, quem
eram eles, para onde iam,
aquele belo derrame público à margem do qual
ele esperava, composto, maravilhando-se remoto
e sem pressa
antes de estar pronto um dia
para descer àquela corrente viva.








thom gunn
as escadas não têm degraus 3
tradução de antónio m. feijó
livros cotovia
março 1990