25 setembro 2007
estar lá
Estar lá
na espessura do mundo
as mãos abertas
o coração em vigília
Estar lá
sem outro desejo
que uma nascente
sem outro desígnio
que o amor.
jean-luc pouliquen
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 2 primavera 2002
tradução hugette rotheval e inês lourenço
edições quasi
2002
24 setembro 2007
claude lévi-strauss / olhar ouvir ler
da obra de arte e do documento,
escrita e entregue a André Breton
a bordo do Capitaine Paul Lemerle
em Março de 1941
olhar ouvir ler
trad. teresa meneses
edições asa
1995
20 setembro 2007
flor de sal
não chames por mim
levo nos olhos queimados
o fim dos desertos
não te posso escutar
na branca solidão dos dias
porque até no meu silêncio
te matei
não chames por mim
levo nos passos
o veneno da Lua
a espuma do tempo
sai-me das mãos vazias
e apaga o trilho
por onde as vozes
podem chegar
não chames por mim
levo o peito tão rasgado
de ausência!
e no meu coração
só há
uma vermelha flor de sal
que já ninguém
pode tocar
gil t. sousa
poemas
2001
albuquerque mendes
2006
carvão e pastel s/papel
200 x 150 cm
santa luzia
2006
carvão e pastel s/papel
200 x 150 cm
xiv bienal de v. n. cerveira
as novas cruzadas
19 setembro 2007
achado entre os papéis de família
Sonhei tanto, tanto que já nem sequer aqui estou.
Não me façam mais perguntas, não me atormentem mais.
Não me acompanhem neste meu calvário.
Não me é dado explicar quais as ordens que tenho.
Nem mesmo me assiste o direito de pensar nisso,
Há muito tempo já que me levanto e parto.
Há uma permissão da morte, e ei-la que chega.
Na curva da rua que vai dar à noite é que a espero.
O mar vai estar de novo nos últimos terraços.
Um candeeiro de novo aceso sente o desejo das trevas.
Um passo no empedrado. A sombra dele precede-o
E deita-se sobre mim, a cabeça no meu coração.
Ali está ele.
Sempre de chapéu redondo, sempre de saco na mão
Tal como era no dia em que regressou de Itália.
Já não lhe vejo os olhos. Já me não fala.
Eis que rolo até ele como uma obscura pedra.
Não consigo atravessar a sua sombra.
Portaste-te como devias? E desde então que fizeste?
E porque não subiste?
Todos os dias ia ver se chegavas e não chegaste nunca!
Ele nada diz sobre tudo isto.
Mas tudo nele me diz: lembra-te!
Sobre ele a noite tornou a fechar-se.
léon-paul fargue
sous la lampe: suite familiére-banalité
gallimard-nouvelle revue française, 1929
tradução de nicolau saião
17 setembro 2007
sentires
sobre os dedos caiem pensamentos
medos concentrados, razões, limites
nos limites ficam as paisagens redondas do dia
do dia caiem artérias fundidas,
abismos em cápsulas adormecidas.
lateja o brilho que toca na pedra.
ávido o coração fecha-se na soturna ausência
abrem-se sonhos frios
abandonados em corpos sem rosto,
imagens ilegíveis e desoladas
crescem próximas do vento.
a mistura da vida
é venenosa na miséria consentida
ao fundo erguem-se cidades
sísmicas
cardadas em teias de fumos
a casa é o corpo corroído
o caos da desordem
ou o fascínio do imprevisto.
o olhar recolhe singrando o mar
atento ao sobressalto nocturno.
obsessiva é a voz
nas horas que demoram a passar
l.maltez
12 setembro 2007
eu sei
brilhos com fulgurâncias na opacidade das noites reverbativas
calmas ondulações nos peitos habitados dos habitantes sem casa
deito sobre as águas as águas dos meus olhos crucificados
e espreito as lucarnas das cúpulas sagradas dos infinitos
revejo as lições jamais aprendidas nos cadernos enfurecidos
dos alunos incompreendidos na sua estranheza de seres inertes
que noite de inquietação gritante contra os céus incógnitos
da nossa lua deambulante qual triste noiva sem véus nem flores de
laranjeira
abolidas das tradições nupciais
plásticas
em cerimónias de fantochadas acrílicas
e construções precárias
quanta ilusão desvanecida nas mãos de jovem senhora de
provecta idade
no seu sofá sentada
televisor mudo
os arames de suas roupas em cores de ferrugem
sobre o azul dos cabelos
o amarelo das dores
e a noite que se encolhe
distende
sonha
de olhos semi-cerrados nas covas orbitais
sou?
quem?
como?
quando me imaginaram?
eu sei
no tempo sem tempo
nas costas do universo paralelo a este
onde nado confortavelmente
na piscina aquecida
m.f.s.
10 setembro 2007
albert camus, cadernos III
Alexandre Blok,
«Oh se soubésseis crianças
as trevas e o frio dos dias que hão-de vir.»
e ainda:
«Como é penoso andar por entre os homens,
Fingir ainda existir.»
e ainda:
«Somos todos infelizes. A nossa pátria preparou-nos um terreno para as paixões e os dissídios. Cada um de nós vive por trás de uma muralha da China desprezando-se mutuamente. Os nossos verdadeiros inimigos são os popes, a voka, a coroa, os polícias, ocultando os seus rostos e excitando-nos uns contra os outros. Esforçar-me-ei por esquecer… todo este atoleiro para se chegar a ser um homem e não uma máquina de incubar o ódio…
… Só amo a arte, as crianças e a morte.»
Id. Perante a ignorância e o esgotamento dos pobres:
«O meu sangue gela de vergonha e de desespero. Só há vazio, maldade, cegueira, miséria. Só uma compaixão total pode produzir uma mudança… Reajo assim por que a minha consciência não está tranquila… Sei o que devo fazer: dar todo o meu dinheiro, pedir perdão a toda a gente, distribuir os meus bens, o meu vestuário… Mas não posso… não quero… »
«Ó minha querida, minha bem amada ralé!»
«O que está nos confins da arte não pode ser amado» e no entanto: «Nós morremos todos, mas a arte fica.»
albert camus
cadernos III
(caderno nr. 6 abril 1948/Março 1931)
trad. antónio ramos rosa
livros do Brasil
1966
06 setembro 2007
alejandra pizarnik / um abandono
Um abandono em suspenso,
ninguém é visível sobre a terra.
Só a música do sangue
assegura residência
num lugar tão aberto.
alejandra pizarnick
antologia poéticatrad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002
04 setembro 2007
debaixo da oliveira
Que calor está aqui, tanto calor,
e parados os rios cinzentos
debaixo das pontes.
Se não houvesse oliveira,
esta exígua faixa escura,
não poderíamos ficar
Teríamos de correr atrás dos ventos, seguir
a sombra das nuvens como os pássaros
em tempos de caça.
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em Mateus
quetzal editores
1994
29 agosto 2007
lady lazarus
Voltei a fazê-lo.
Uma vez em cada dez anos
Lá consigo —
Uma espécie de milagre ambulante, a minha pele
Brilhante como a de um candeeiro nazi,
O meu pé direito
Um pisa-papéis,
O meu rosto vulgar, fino
E de judia cepa.
Apaga-me da toalha
Oh, inimigo meu.
Meto medo a alguém?
O nariz, as covas dos olhos, os dentes todos?
O hálito acre
Desaparecerá um dia.
Daqui a pouco, daqui a pouco a carne
Que a sepultura comeu ficará
À vontade comigo como se em sua casa.
Mas eu sou uma mulher optimista.
Só tenho trinta anos.
E como os gatos tenho sete vidas para viver.
Esta é a Número Três.
Que porcaria de vida
A aniquilar todos os dez anos.
Quantos milhões de filamentos.
Uma multidão a roer amendoins
Empurra-se para ver
Sôfregos a despirem-me
Que fantástico strip tease.
Meus senhores, minhas senhoras
Estas são as minhas mãos
Os meus joelhos.
Talvez eu seja apenas pele e osso,
Contudo, sou precisamente a mesma mulher.
A primeira vez foi aos dez anos.
Foi um acidente.
Da segunda vez eu quis mesmo
Ir até ao fim e nunca mais regressar.
Voltei fechada
Como uma concha.
Tiveram de me chamar e voltar a chamar
E arrancar de mim os vermes como se pérolas pegajosas.
Morrer
É uma arte, como outra coisa qualquer.
E eu executo-a excepcionalmente bem.
Executo-a de forma a parecer-se com o inferno.
Executo-a de forma a parecer real.
Acho que se podia dizer que tenho um dom.
É bastante fácil executá-la numa cela.
É bastante fácil executá-la e ficar como se nada fosse.
É cena de teatro
Regressar em pleno dia
Ao mesmo lugar, ao mesmo rosto, ao mesmo brutal
E divertido grito:
Um milagre!
Que me põe K.O.
Há que pagar.
Para ver as minhas cicatrizes, há que pagar
Para ouvir o meu coração —
É assim mesmo.
Há que pagar, e pagar bem.
Por uma palavra ou um toque
Ou uma gota de sangue
Ou por um bocado do meu cabelo ou da minha roupa.
Vá lá então, então, Herr Doktor.
Então, Herr Inimigo.
Sou o seu opus,
Sou a sua jóia de estimação,
Um bebé todo em ouro
Que se funde com um grito.
Volto-me e ardo.
Não pense que subestimo as suas grandes preocupações.
Cinza, cinza —
Mexe e atiça.
Carne, osso, nada mais ali existe —
Um pedaço de sabonete,
Uma aliança de casamento,
A coroa em ouro de um dente.
Herr Deus, Herr Lúcifer
Tende cuidado
Muito cuidado.
Renasço das cinzas
Com o meu cabelo fulvo
E devoro homens como faço ao ar.
sylvia plath
ariel
trad. maria
relógio d´água
1996
23 agosto 2007
paris, os passeios de um flâneur
Era no Hôtel de Lauzun que Le Club des Hachichins realizava as suas reuniões. Aí, um grupo de homens ligados às letras e às artes — incluindo os escritores Balzac, Gautier e Baudelaire e os pintores Édouard Manet, Honoré Daumier e Constantin Guys — reunia-se com umas quantas mulheres para passar longas noites em que ouviam música e... comiam haxixe (porque, pelos vistos, o haxixe era servido sob a forma de uma geleia esverdeada), O anfitrião, Fernand Boissard, um pintor menor, era rico (sem depender de heranças) e vivia no principal e principesco andar do Hôtel, onde tinha um clavicórdio, ao que parece decorado com pinturas de Watteau, e elegantes peças de mobiliário que casavam na perfeição com as paredes e as portas pintadas, esculpidas e douradas. Boissard costumava tocar violino quando estava pedrado; ou então contratava músicos para o acompanharem num trio de Beethoven ou Mozart.
Uma das visitas da casa, Paul Guilly, lembra que Boissard
...era um homem que vivia para o refinamento e a volúpia e que tinha verdadeiro horror aos convidados importunos ou maçadores. O seu maior prazer era receber e, por isso mesmo, seleccionava as visitas com todo o cuidado; não se podia aparecer sem convite, mas, a partir do momento em que éramos admitidos no círculo íntimo, podíamos fazer ou dizer aquilo que nos apetecesse. Rodeava-se de artistas que partilhavam os seus gostos e de belas raparigas que não eram obtusas, nem, em abono da verdade, completamente ignorantes das questões espirituais ou artísticas. Acima de tudo, Boissard adorava os jantares com amigos sinceros, incondicionais, essas noites íntimas em que passávamos horas debatendo os significados de um paradoxo entre um pouco de música de cravo e as estrofes de um poema.
Théophile Gautier deixou-nos um relato extremamente colorido da sua primeira participação numa das reuniões mensais do Club des Hachichins. Nesse texto, Gautier recorda que estava uma noite de breu e um nevoeiro muito cerrado — uma verdadeira tela de algodão que esbatia todos os objectos e que só a luz das lanternas ou das janelas conseguia penetrar. Além disso, caía uma chuva fria, de tal forma que o cocheiro de Gautier mal conseguia enxergar a placa de mármore que indicava o nome do Hôtel. Uma velha criada abriu-lhe a pesada porta e, com um dedo magro, indicou-lhe o caminho.
De súbito, o escritor viu-se diante de uma daquelas escadarias gigantescas construídas na época de Luís XIV (tão gigantesca, de facto, que uma casa moderna caberia toda lá dentro com a maior facilidade, diz Gautier). A estátua de uma quimera egípcia erguia uma única vela. Pensando nos cortesãos do século XVII com as suas rendas e perucas, Gautier concluiu que estava pessimamente vestido para a ocasião. No andar de cima, Gautier tocou a uma sineta e logo penetrou numa ampla sala, iluminada apenas numa das extremidades; nesse instante, teve a clara sensação de que acabara de recuar dois séculos.
Um médico encarregava-se do haxixe. Aparecia com uma bandeja carregada de geleia verde e os convidados, depois de terem comido a dose a que tinham direito, passavam uns aos outros as chávenas de café turco. Tendo começado com a última coisa que se serviria num jantar francês normal, sentavam-se depois a uma mesa a fim de degustarem uma refeição mais convencional. Os pratos e os copos, contudo, eram estranhos, exóticos — pratos de serviços diferentes (da China, do Japão, da Saxónia), copos de cristal de Veneza. Sob a influência da droga, a água sabia a vinho e a carne a framboesas. Com a refeição já perto do fim, Gautier sentiu que estava a enlouquecer. As alucinações que, durante o jantar, se tinham apossado dele em vagas intermitentes, converter-se-iam, durante o resto da noite, numa parte permanente, embora sujeita a flutuações constantes, da sua percepção.
Todos os sinais de quem está totalmente, delirantemente, ou mesmo perigosamente pedrado, e que o meu caro leitor tão bem conhece, eram já algo de familiar para os frequentadores e residentes do Hôtel de Lauzun mais dados às artes e às letras. Rompiam num riso incontrolável e, escassos segundos depois, um medo inexprimível apossava-se deles, logo seguido de um plangente amor a toda a humanidade ou da total imersão num livro de gravuras. Os movimentos tornavam-se lentos e viscosos, o tamanho dos quartos expandia-se de uma forma brutal, um sentido do épico e do magnificente distorcia a atmosfera da reunião, para logo ser substituído por um olhar que descobria com repulsa os grotescos rostos dos outros hachichins. Tudo era tão distorcido — e tão apelativo para a imaginação — que não admira que Gautier tivesse usado a palavra «fantasia» para descrever uma tal noite. Saberia Gautier (por certo sabia) que uma fantasia era também uma composição musical de forma livre aberta ao improviso? Ou que, em Marrocos, uma fantasia era uma gala equestre e militar que envolvia espectaculares investidas de sucessivos esquadrões de cavalaria dotados de inexcedíveis talentos na arte da equitação, os homens vestidos com figurinos de veludo debruados a ouro e mantos esvoaçantes, montando magníficos garanhões, acompanhados por uma banda e por tambores e até por danças, e com toda a cena envolta no nevoeiro causado pelo fumo das fogueiras onde se preparava o banquete que se seguiria ao espectáculo?
Como seria de esperar, Balzac inspeccionou com toda a atenção a geleia verde e chegou mesmo a pegar nos diversos apetrechos, provenientes do Próximo Oriente, que se destinavam ao consumo da droga, e, como era seu timbre, fez todas as perguntas do género «recolha de informações» — mas não provou nem um miligrama do haxixe, receando perder o controlo da sua vontade de aço ou da sua influenciável mente. Provavelmente, o Clube dos Consumidores de Haxixe não se reuniu mais de oito ou nove vezes. Também não há nenhuma prova de que o próprio Baudelaire tenha experimentado a droga mais do que uma ou duas vezes; de qualquer modo, o poeta considerava o vinho preferível ao haxixe, já que o vinho, dizia ele, era mais «democrático» porque mais barato e mais facilmente disponível (tal e qual como Oscar Wilde, Baudelaire era simultaneamente um «socialista» e um snob estético). Para ser mais exacto, Baudelaire louvava tanto o vinho como o haxixe por promoverem «o excessivo desenvolvimento poético da humanidade», mas não deixava de acentuar que o vinho exalta a vontade, o haxixe aniquila-a. O vinho é um sustento para o corpo, o haxixe uma arma pata o suicídio. O vinho torna as pessoas boas e amistosas. O haxixe isola, O vinho significa trabalho duro, ao passo que o haxixe é um sinónimo de preguiça. Por que estranha razão há-de alguém suportar a maçada que é trabalhar, lavrar a terra, escrever, enfim, fazer o que quer que seja, se, com uma fumaça, pode alcançar o paraíso? O vinho é para as pessoas que trabalham e que merecem bebê-lo. O haxixe pertence à categoria dos prazeres solitários; foi feito para o ocioso infeliz, O vinho é útil, produz resultados frutíferos. O haxixe é inútil e perigoso.
É possível que a imaginação de Baudelaire fosse tão espicaçada pela atmosfera do Hôtel de Lauzun como pelo próprio haxixe. Ele e Gautier celebravam a história segundo a qual a palavra haxixe estaria ligada à palavra assassino; no seu conto Le Club des Hachichins, Gautier conta mesmo a história do déspota «oriental» que transformou os seus homens em saqueadores (ou assassinos) desvairadamente intrépidos e sem o menor medo da morte, mantendo-os constantemente pedrados com haxixe.
Ou talvez Baudelaire tivesse sido estimulado pelos seus companheiros e muito em particular por uma surpreendente jovem conhecida como Pomaré (de seu verdadeiro nome Elise Sergent) que praticava o travestismo. «La Pomaré», como lhe chamava Baudelaire, vestia-se como um «gentleman» (o poeta usava a palavra inglesa), com gravata branca, fraque preto, calças pretas e sobretudo branco. As mãos enluvadas de branco costumavam empunhar uma bengala. A Pomaré era, segundo o poeta, um bom camarada e óptima companhia — excepto quando dava com uma bourgeoise num restaurante. Se, por exemplo, visse a mulher de um notário sentada a uma mesa com o marido, tinha um acesso de fúria e rompia a cantar a sua canção favorita — que falava de um general do exército italiano que estava de cócoras a coçar os tomates, o que levava uma elegante virgem a dizer-lhe que ele não passava de um cara de cu... A Pornaré era alta e esbelta, com um peito raso, um dito espirituoso sempre na ponta da língua e, quando lhe dava para isso, era tão frontal, tão terra-a-terra, que Baudelaire lhe chamava «o meu camarada das ancas largas». A Pomaré vivia no Hôtel de Lauzun e Baudelaire desejava-a (ou, pelo menos, excitava-o a ideia de uma mulher tão sem pruridos nem inibições) tanto quanto a estimava.
(…)
edmund white
paris, os passeios de um flâneur
tradução josé vieira de lima
asa editores
2004
19 agosto 2007
talbot road
1
Entre as boutiques creme
de Notting Hill e as menos definidas
mas inóspitas paragens de Harrow Road,
toda ela tijolo enegrecido, ficava a rua
construída para burgueses, uma outra Belgravia,
que acabara por ficar
para operários («Negros ou Irlandeses
Não se Precisam») para depois como as veias
de um inglês de gema
se encher de uma mistura promíscua:
polaco, italiano, irlandês, jamaicano,
fluxo rico e revolto. Um restaurante jugoslavo
encaixilhou fotografias de príncipes exilados,
mas as crianças eram gralhas com sotaque de Londres.
Vivi em Talbot Road
durante um ano. O excelente quarto
onde dormi, comi, li e escrevi
tinha um tecto alto, a toda a volta
rosas de estuque tinham sido pintadas de azul.
Podia passar-se pela janela
para uma varanda maciça e até
(se o cano não estivesse entupido)
lá jantar em noites quentes.
A isto chamo pleno acesso –
ao ar, à rua, à amizade:
pois dali podia ver, ao fundo de algumas ruas,
a janela onde o Tony, o meu velho amigo,
trabalhava em traduções. Também eu tentava
verter passos obscuros em inglês claro,
como faço agora.
2
Amigo sedutor e difícil,
conselheiro e aliado. Como estudantes
absortos no nosso próprio romantismo,
poeta inocente e actor posáramos
representáramos os nossos papéis um ao outro
tem-me por vezes parecido
como garanhões em casa de passe.
Ele via-se, todavia, às voltas
com a figura mais bonita do seu curso.
Se «os ricos são diferentes de nós»,
também os bonitos o são. O que
é que ele na verdade queria? Ah, a tal pergunta...
Duas ligações a correr em Londres,
uma em Northampton, uma na Irlanda,
provavelmente outras. Amigos e amantes
todos tinham as suas versões privadas dele.
Duque fantástico de lugares escuros,
nunca precisava de mentir:
tínhamos aprendido a não fazer perguntas.
O fogo de alguém tão bonito.
Mas quase escondido pelo aro do fogo,
por trás da máscula doação de si,
no centro da exuberância, havia
algo retido, lento, algo -
o quê? o quê? Um brasido húmido de insatisfação.
Especulava então sobre as «relações humanas»
que deveríamos entender
— vide Forster, passim, etc. –
como um fim, um bem em si mesmas.
Ele não as via desse modo.
Finalmente deu nisto,
as poses desfizeram-se a este ponto:
gostava mais de nós pelas nossas faltas
do que por aquilo que pudéssemos dar-lhe.
Quando uma vez num pub perdi a cabeça,
voltei abrindo caminho a ombro do urinol
e disse ríspido: «Estava zangado demais para mijar.»
No dia seguinte exclamou encantado,
«Sabes que foi a primeira vez
que te zangaste comigo?»
Como algumas pessoas esperam por um sinal de amor,
ele esperara não sei quantos anos
por um sinal de cólera,
por um sinal de alguma coisa que não o amor.
3
Uma Londres a que se volta doze anos depois.
Numa longa passagem entre duas ruas
vi por ali andando quem fui outrora
ou assim parecia
um jovem à volta dos dezanove fitando-me
de uma curva do desejo. Manteve o olhar
como se o abrigasse do vento.
Os nossos olhares falaram-se, depois tocámo-nos
na conversa dos corpos.
Juntos em pé no asfalto às claras,
gradualmente nos abandonámos a um riso partilhado.
Era este o ano, o ano da reconciliação
com o que quer que fosse que tinha deixado,
o calor acídico das emoções adolescentes,
o emudecimento prematuro e o desprezo de si.
No meu riso, na minha sorte,
perdoei-me a mim mesmo ter tido uma adolescência.
Comecei a acumular perdões
até em antecipação. Em Hampstead Heath
conhecia desde criança cada caminho súbito,
os nós de cada árvore a que podia subir-se.
E agora acometi-os à noite
e, onde jogara às escondidas
com crianças da zona, joguei como um adulto
com rondas de homens cujos turnos se cruzavam
na Árvore da Orgia ou no bosque
de troncos de vidoeiro fulgindo como sentinelas mudas
ou em tendas de ramo e arbusto
cercados pelo cheiro familiar
de folha tenra salgada, explosiva.
Numa floresta de Arden, num sonho de uma noite de verão
perdoei a toda a gente a sua juventude.
4
Mas voltei, depois do último autocarro,
de Hampstead, Wimbledon, dos pubs,
dos viadutos de comboios do East End,
voltei a Talbot Road,
ao tijolo, ao cimento das frentes arturianas,
às grades da zona perto de alçapões de carvão,
às espessas colunas dos vestíbulos.
A minha varanda enchia-se de neve húmida.
Quando secava, o Tony e eu
almoçávamos aí ao sol
empada de vitela e presunto, cerveja e salada.
Falava-lhe das minhas aventuras.
Ele perguntava-se em voz alta se seria mais feliz
se fosse bicha como eu.
Como poderia ele querer, perguntava-me eu,
ser outro que não ele?
Então tinha de ir-se embora,
ir-se na vivacidade do seu andar
para onde, nunca perguntei ou adivinhei.
No final do meu ano, antes de partir,
ele deu uma grande festa para mim
num barco dos canais. A festa deslizou
pela malha aquosa de Londres,
rede que sempre apercebêramos
a um canto do olho
por trás de grades ou do cimo dos autocarros.
Agora cá estávamos, levados nela,
num piquenique, olhando entre garfadas
para traseiras de prédios, para paredes negras de fumo
cor de coral à luz do longo crepúsculo,
para o que sempre suspeitáramos
quando cruzávamos as pontes sob que passávamos agora,
deslizando entre o segredo aberto.
5
Isto foi há quinze anos.
O Tony morreu, o bairro em que vivi
foi deitado abaixo. A mente
é um lugar impermanente, será,
mas aspira à permanência.
A rua abriu e abriu-se
à total ausência de carácter. Ontem à noite
sonhei com ela como poderia ter sido,
o passeio junto ao gradeamento da igreja
estava molhado com chuva primaveril,
era noite, a luz dos candeeiros
esboçava-a numa gravura perfeita.
Postal sentimental de um sonho,
de um momento entre tumultos raciais!
Mas lembro-me, nítida, da minha última semana,
quando todos os detalhes se iluminaram de sentido.
Um rapaz estava a ficar pareceu-me,
com a sua avó na casa em frente.
Era um rapaz novo, talvez do campo.
Todas as noites dessa semana
se sentou com a sua camisa branca à janela
— um arco gótico de proporções diminutas —
apoiado nos braços, olhando para baixo
como se atentamente decifrasse caracteres
de uma língua viva que ainda estava a aprender,
nem um sorriso fazendo estalar as suas faces róseas.
Olhando em baixo
o tráfego humano, de todas as nações,
os justos e os injustos, quem
eram eles, para onde iam,
aquele belo derrame público à margem do qual
ele esperava, composto, maravilhando-se remoto
e sem pressa
antes de estar pronto um dia
para descer àquela corrente viva.
thom gunn
as escadas não têm degraus 3
tradução de antónio m. feijó
livros cotovia
março 1990