16 agosto 2007

samuel beckett / que faria







que faria sem este mundo sem rosto sem perguntas
onde ser dura apenas um instante onde cada instante
verte para o vazio o esquecimento de ter sido
sem esta onda onde no final
corpo e sombra juntos se devoram
que faria sem este silêncio sorvedouro dos murmúrios
que anelam frenéticos por socorro por amor
sem este céu que se ergue
sobre a poeira do seu lastro


que faria faria o que fiz ontem o que fiz hoje
espreitar do meu postigo para ver se não estou só
a dar voltas e voltas longe de toda a vida
num espaço fantoche
sem voz no meio das vozes
encerradas comigo

1948








samuel beckett
trad. manuel portela
“Relâmpago” nr.13
10/2003






14 agosto 2007

andre breton e paul éluard / o juízo original






Não leias. Olha as figuras brancas desenhadas pelos intervalos separando as palavras de várias linhas dos livros e inspira-te nelas.

Dá aos outros a tua mão a guardar.

Não te deites sobre as muralhas.

Retoma a armadura que abandonaste na idade da razão.

Põe a ordem no seu lugar, desarruma as pedras da estrada.

Se sangras e és homem, apaga a última palavra na ardósia.

Forma os teus olhos fechando-os.

Dá aos sonhos que esqueceste o valor daquilo que não conheces.

Conheci três lampistas, cinco guarda-barreiras mulheres, um guarda-barreira homem: e tu?

Não prepares as palavras que gritas.

Habita as casas abandonadas. Não foram habitadas senão por ti.

Faz um leito de afagos aos teus afagos.

Se eles batem à porta, escreve as tuas últimas vontades com a chave.

Rouba o sentido ao som, existem tambores encobertos mesmo nos vestidos claros.

Canta a grande piedade dos monstros. Evoca todas as mulheres de pé sobre o cavalo de Tróia.

Não bebas água.

Como a letra l e a letra m, pelo meio encontrarás a asa e a serpente.

Fala consoante a loucura que te seduziu.

Veste-te com cores cintilantes, não é hábito.

O que encontras só te pertence enquanto a tua mão está estendida.

Mente ao morder o arminho dos teus juízes.

Enforca-te, bravo Crillon, eles te tirarão da forca com o seu Isso depende.

Ata as pernas infiéis.

Deixa a madrugada aumentar a ferrugem dos teus sonhos.

Aprende a esperar, de pés para a frente. É assim que brevemente sairás, bem coberto.

Acende as perspectivas da fadiga.


Vende com que comer, compra com que morrer de fome.

Faz-lhes a surpresa de não confundir o futuro do verbo ter com o passado do verbo ser.

Sê o vidraceiro da pedra engastada no vidro novo.

A quem peça para ver o interior da tua mão, mostra os planetas não descobertos do céu.

Diz à luz, tu calcularás as dimensões encantadoras do insecto-folha.

Para descobrir a nudez daquela que amas, olha as suas mãos. O seu rosto baixou.

Separa o giz do carvão, as papoulas do sangue.

Dá-me o prazer de entrar e sair nas pontas dos pés.

Ponto e vírgula: vês, mesmo na pontuação, como eles são surpreendentes.

Deita-te, levanta-te e agora deita-te.

Até à nova ordem, até à nova ordem monástica, isto é até que as mulheres mais jovens e belas adoptem o decote em cruz: os dois ramos horizontais descobrindo os seios, o pé da cruz nua no baixo-ventre, ligeiramente avermelhado.

Daquilo que tem a cabeça sobre os ombros, abstêm-te.

Regula a tua marcha pela das tempestades.

Nunca mates uma ave da noite.

Olha a flor da campainha: ela não permite ouvir.

Falha a finalidade aparente, quando tiveres que atravessar o teu coração com a flecha.

Opera milagres para os negares.

Tem a idade deste velho corvo que diz: Vinte anos.

Tem cuidado com os carroceiros do bom gosto.

Desenha na poeira os jogos desinteressados do teu tédio.

Não escolhas o tempo de recomeçar.

Sustenta que a tua cabeça, contrariamente às castanhas-da-índia é em absoluto sem peso, uma vez que ainda não caiu.

Doura a pílula com a centelha sem isso negra pela bigorna.

Faz para ti sem franzir as sobrancelhas uma ideia possível das andorinhas.

Escreve o imperecível na areia.

Corrige os teus pais.

Não guardes em ti aquilo que não fira o bom senso.

Imagina que esta mulher está contida em três palavras e que esta colina é um abismo.

Lacra as verdadeiras cartas de amor que escreves com uma hóstia profanada.

Não deixes de dizer ao revólver: Muito lisonjeado mas parece-me tê-lo já encontrado em qualquer lado.

As borboletas do exterior não procuram mais do que alcançar as borboletas do interior; não substituas em ti, se vier a ser quebrado, um único espelho do revérbero.

Amaldiçoa o que é puro, a pureza está amaldiçoada em ti.

Observa a luz nos espelhos dos cegos.

Queres ter ao mesmo tempo o mais pequeno e o mais inquietante livro do mundo? Pede para relerem os selos das tuas cartas de amor e chora; não obstante tudo, tens razão para isso.

Nunca esperes por ti.

Contempla bem estas duas casas: numa estás morto, na outra estás morto.

Pensa em mim que te falo, põe-te no meu lugar para responderes.

Receia passar demasiadamente perto das tapeçarias quando estás só e ouças chamar por ti.

Torce o teu corpo com as tuas próprias mãos por cima dos outros corpos: aceita corajosamente este princípio de higiene.

Come apenas aves em folhas: a árvore animal pode sofrer de Outono.

A tua liberdade com a qual me fazes chorar a rir é a tua liberdade.

Faz fugir o nevoeiro diante de ti mesmo.

Considerando que a natureza mortal das coisas não te confere um poder excepcional de duração, pendura-te pela raiz.

Deixa ao travesseiro idiota o cuidado de te acordar.

Corta as árvores se quiseres, quebra também as pedras mas tem cuidado, tem cuidado com a luz lívida da utilidade.

Só te fitas com um olho, fecha o outro.

Não anules os raios vermelhos do Sol.

Segues pela terceira rua à direita, depois pela primeira à esquerda, chegas a uma praça, voltas junto do café que conheces, segues a primeira rua à esquerda, depois a terceira rua à direita, lanças a tua estátua por terra e ficas.

Sem saber o que irás fazer com ele, apanha o leque que esta mulher deixou cair.

Bate à porta, grita: Entre, e não entres.

Nada tens para fazer antes de morrer.










andre breton e paul éluarda imaculada concepçãotradução franco de sousa
estúdios cor
1972








13 agosto 2007

agosto






1) Esta noite pela primeira vez desde há pelo menos um ano, olho o céu estrelado. Acho-o pequeno. Sou eu que cresço ou é o Universo que se encolhe? Ou as duas coisas ao mesmo tempo? Que diferença das dolorosas contemplações siderais da minha adolescência. Reduziam-me no que o meu romantismo de então acreditava: as insondáveis e infinitas imensidades cósmicas. Estava inteiramente dominado pela melancolia porque todas as minhas emoções eram indefiníveis. Agora, pelo contrário, a emoção é tão definível que poderia moldá-la. Decidi neste instante encomendar um molde de gesso, representando, com o máximo de exactidão, a emoção provocada pela contemplação da abóbada celeste.


Estou reconhecido à física moderna por ter fortalecido, com as suas investigações, a agradável noção, sibarítica e antiromântica entre outras que «o espaço é finito». A minha emoção tem a forma perfeita de um «continuum» com quatro nádegas, a própria ternura da carne do Universo. Ao deitar-me, extenuado pelo dia de trabalho, faço o possível para conservar na cama a minha emoção, reconfortando-me cada vez mais e dizendo-me que, no final de contas, o Universo – mesmo expandível com toda a matéria que contém, por mais abundante que possa parecer – não é senão uma pura e simples questão de favas contadas. Estou tão contente por ver finalmente o Cosmos reduzido a estas proporções razoáveis que seria capaz de esfregar as mãos se esse gesto abominável não fosse tipicamente anti-daliano. Antes de adormecer, em vez de esfregar as mãos, beijá-las-ei com a mais pura alegria, repetindo que o Universo, como qualquer coisa material, tem o ar terrivelmente mesquinho e acanhado se o compararmos, por exemplo, com a amplidão de uma fronte pintada por Rafael.









salvador dali
diário de um génio
tradução de josé luís luna
ulisseia
1965







08 agosto 2007

a porta







Muito pouco
tem sido dito
acerca da porta, uma
face voltada para o caudal
da noite e a outra
para a flutuação e o brilho do lume.


O ar, apanhado
por esta capa
dentro do livro da sala,
é ocupado pelo folhear
de páginas de escuridão e fogo
enquanto o vento empurra as almofadas, ou sacode as chamas.


Não só
da tempestade
o quebra-mar, mas a súbita
fronteira das nossas confluências, aparências,
é também pródiga na oferta de espaço
tanto quanto a vista através de um dólmen.


Porque as portas
são caixilho e monumento
do nosso tempo gasto,
e muito pouco
tem sido dito
das nossas entradas e saídas por elas.










charles tomlinson
as escadas não têm degraus 3
trad gualter cunha
livros cotovia
1990










05 agosto 2007

elogios

V







… Pois estas águas calmas são como leite
e tudo o que se derrama nas macias solidões da manhã.


A ponte lavada, ao amanhecer, com uma água semelhante no sonho à mistura da aurora, faz com o céu uma bela analogia. E a Infância adorável do dia desce mesmo, pela trepadeira das tendas enroladas, à minha canção.


Infância, meu amor, não é senão isto?


Infância, meu amor… esta dupla ligação, do olho e da destreza de amar…
Está tão calmo e morno,
e por tanto tempo,
como é estranho estar aí, de mãos dadas com a facilidade do dia…


Infância, meu amor! é preciso abandoná-la… E já o disse, então? não quero mais estas roupas
a roçar aí, no incurável, nas verdes solidões da manhã… E já o disse então? é preciso servir
como uma velha corda… E este coração, este coração, ai! que se arrasta sobre as pontes, mais humilde e selvagem, e mais extenuado que um velho lambaz…













saint-john perse
elogios
trad. jorge melícias
quasi
2002





01 agosto 2007

mão






e a minha mão
desceu o teu rosto
num movimento
de coisa que parte

e tu disseste:
porque é que as mãos
dos que amámos
nos acenam vazias?

mas não
na minha mão
havia uma lágrima enorme
e azul
que tu
já não sabias ver








gil t. sousa
poemas
2001










27 julho 2007

o carregador de pianos - I








carrego o piano para
onde o maestro morre.
persigo-o na cinza da
música.
o jazz invade o lume
ébrio, o êxtase das frases.
invade de seiva
a árvore dos pentagramas.
o piano acompanha
os acólitos do álcool.
a árvore dos pentagramas
vive no rosto dos acólitos do álcool
e da seiva.
a seiva é também
o caudal de um rio
de antigos escravos.
foz de um rio de escravos.
os dedos estão libertos
agora que o cérebro
inventou os dedos da música.
o jazz invade o lume
em cascatas de swing.
carrego o piano para
onde o maestro morre.
mas morre livre
entre vozes que cantam e estrelas











joão candeias
poezz
jazz na poesia em língua portuguesa
almedina
2004


24 julho 2007

o artista e a vida moderna




NOVA IORQUE




O mais colossal espectáculo do mundo. Nem o cinema, nem a fotografia, nem a reportagem, puderam dar conta deste acontecimento surpreendente que é Nova Iorque à noite, vista de um quadragésimo andar, Esta cidade pôde resistir a todas as vulgarizações, a todas as curiosidades dos homens que experimentaram descrevê-la, copiá-la. Conserva a frescura, o inesperado, a surpresa, para o viajante que a olha pela primeira vez.
O navio, em andamento lento, desloca devagar as perspectivas; procura-se a estátua da Liberdade, o presente da França; é uma pequena estátua modesta, esquecida no meio do porto, diante deste novo continente audacioso e vertical. Mas não se vê, por muito que levante o braço o mais alto possível. Inutilmente, não ilumina mais do que uma vela, coisas enormes que mexem, formas que, indiferentes e majestosas, a cobrem de sombra...
Seis horas mais tarde. O navio avança lentamente. Uma massa direita, alta, elegante como uma igreja, aparece ao longe, envolvida na bruma, azul e rosa, esfumada como um pastel, fechada numa ordem gótica, projectada para o céu como um desafio. Que nova religião é esta?
É Wall Street, que domina da sua altura este mundo novo. Depois de seis dias de travessia na água fluida e imperceptível, móvel, ágil, chega-se diante desta montanha, abrupta, obra de homens, que lentamente se define, se torna mais nítida, se precisa com os seus ângulos cortantes, as suas janelas alinhadas, a sua cor metálica. Levanta-se violentamente acima do nível do mar. O barco roda... Wall Street desapareceu lentamente, silhueta reluzente como uma armadura.
É a apoteose da arquitectura vertical; uma combinação audaciosa de arquitectos e de banqueiros sem escrúpulos, empurrados pela necessidade. Uma elegância desconhecida, involuntária, desprende-se desta abstracção geométrica. Apertados entre dois ângulos de metal, são cifras, números, que sobem, rígidos, para o céu, domados pela perspectiva deformante...
Um mundo novo!...
Brooklyn!, os cais maciços. jogos de sombra e de luz, as pontes, com as suas projecções de linhas verticais, horizontais, oblíquas… O nascimento de Nova Iorque. na luz que, pouco a pouco, aumenta, à medida que se avança na cidade... Nova Iorque, milhões de janelas luminosas... Quantas janelas? Quando aparecerá um alemão para fazer esta original estatística?
Espantoso país, onde as casas são mais altas do que as igrejas, onde os limpadores de janelas são milionários, onde se organizam desafios de futebol entre os prisioneiros e a Polícia!
A beleza de Nova Iorque à noite é feita de inumeráveis pontos luminosos e do jogo infinito da publicidade móvel.
O rigor ria arquitectura é quebrado pela fantasia sem limites das luzes coloridas. O grande espectáculo começa mal nos levantamos, e esta visão radiosa tem a particularidade de nenhum artista, de nenhum encenador ter contribuído para ela. Esta música comovente é tocada por casas em que habitam pessoas como vós eu. Estes milhares de fogos, que nos espantam, iluminam pessoas que trabalham modestamente na sua tarefa ingrata e quotidiana. Estas arquitecturas ciclópicas são estritamente úteis, racionais; o crescimento vertical é de ordem económica.
Elevou-se o número de andares, porque o terreno é pouco e caro, porque não é possível construir em extensão; construiu-se obrigatoriamente em altura. Não há nenhum sentimento romântico em tudo isto, a sombra de um orgulho deslocado. Toda esta orquestração surpreendente é estritamente útil. O mais belo espectáculo in the world não é criação de um artista.
Nova Iorque tem uma beleza natural, como os elementos da natureza, como as árvores, as montanhas, as flores. Está aí a sua força e a sua variedade. Pretender tirar partido artístico de semelhante tema é uma loucura. Admira-se modestamente, e é tudo.
No interior desta vida múltipla e organizada corre uma personagem indispensável a esta vida ilimitada: o telefone, actor principal. Faz parte da família. É o brinquedo da criança americana; pega-lhe como numa boneca, e essa boneca toca, fala, ri. É uma corda ininterrupta que liga, como aos alpinistas, toda esta gente rápida e apressada.
Se um dia morrer subitamente, não haverá ninguém no seu enterro, porque ninguém saberá o dia e a hora do funeral.
Nova Iorque e o telefone vieram ao mundo no mesmo dia, no mesmo barco, para conquistar o mundo.
Em Nova Iorque a vida mecânica está no apogeu. Tocou o limite, ultrapassou o fim… crise!
A vida americana é uma sucessão de aventuras, conduzidas com optimismo até ao fim.
Arriscou-se tudo, experimentou-se tudo; e há realizações definitivas. Naturalmente, o volume da arquitectura deveria tentá-los. Antes de mais, tudo quanto se vê. A arquitectura e a luz são os dois pólos da sua expressão plástica; no barroco, atingem o monstruoso.
Nova Iorque e Atlantic City têm cinemas que é difícil descrever a quem não os viu. Um amontoamento inverosímil de todos os estilos europeus e asiáticos; um caos colossal, para ferir a imaginação, fazer publicidade, fazer «mais que em frente»; a Enormidade no «mais rico do que tu».
Escadas inúteis, empregados em número incalculável, espantar, atrair e ganhar dinheiro. É o fim de toda esta vertigem que atinge a repugnância e a beleza.
Gosto tanto desta inundação de espectáculos, de toda esta força incontida, desta virulência, mesmo no erro... É muito novo. Engolir um sabre a sorrir, cortar um dedo, porque está sujo...
Até ao fim, é sempre a América. Naturalmente, se me detenho a reflectir, se fecho os olhos, entrevejo os dramas que pairam à roda deste dinamismo exagerado, mas eu vim para ver — e continuo.
As cartas lançadas do quinquagésimo andar pelo tubo pneumático, aquecem com o atrito e chegam a arder ao rés-do-chão. É necessário gelar os tubos — mas demasiado frios, as cartas chegarão no meio de neve.
Tudo fuma em Nova Iorque, «até as ruas». Ouvi raparigas dizer que fumar durante as refeições distrai e impede de engordar, uma inesperada relação entre o cigarro e a elegância.
O dia, em Nova Iorque, é muito severo; falta-lhe cor e, se o tempo está enevoado, Nova Iorque é uma cidade de chumbo.
Porque não se hão-de colorir as casas? Porquê esta lacuna, na terra de todas as invenções?
Fifth Avenue, vermelha — Madison, azul - Park Avenue, amarela. Porque não? E a falta de verdura? Nova Iorque não tem árvores. A medicina decretou há muito que o verde, em particular, é uma cor indispensável à vida; deve viver-se no meio da cor: é necessário como a água e o fogo.
Poder-se-ia obrigar os vendedores de modas a lançar em série vestidos verdes, fatos verdes...
Periodicamente, um ditador da cor decretaria as cores mensais ou trimestrais; o trimestre azul, a quinzena rosa! Para aqueles que não podem ir ao campo, passear-se-iam árvores pelas ruas. Paisagens móveis com flores tropicais, passeadas lentamente por cavalos de penacho.


Duas da manhã, ao acaso das ruas… bairro popular... Avenue «A» ou «B»... Uma imensa garagem de camiões, todos parecidos, em filas de seis, reluzentes como para um desfile, como elefantes, uma luz fixa. Nada se move: entro e olho.., um ridículo barulho de guizos... ao fundo, à esquerda, descubro um cavalo arreado. A única coisa viva, neste silêncio de ferro... O prazer de lhe tocar, de o ver mexer, de o sentir quente. O animal ganhava um tal valor, pelo contraste, que eu teria podido registar todos os barulhos que pode fazer um cavalo em repouso; barulhos minúsculos, sempre os mesmos; ouvia-lhe a respiração… movimentos delicados… as orelhas... os olhos pretos... uma estrela branca na cabeça... o casco polido e o joelho que, de tempos a tempos, se move lentamente.
O último cavalo de carga, à espera de reforma. Depois, aos domingos, será exposto numa vitrina e as crianças ficarão espantadas por Napoleão ter conquistado o mundo montado nele.
Em casa do arquitecto Corbett, juntamente com Kiessler. Ë um dos maiores construtores do edifício americano. Um homenzarrão simples... conseguir meter 20.000 pessoas num edifício, diz-me ele, eis o meu trabalho actual. Não julgue que se trata apenas de uma questão de número de andares! Não, é mais complicado, é uma questão de elevador, O problema é o de manobrar verticalmente este exército! Fazê-lo descer todos os dias para as quatro salas de jantar que se encontram a vinte metros debaixo da terra... Dar vazão a tudo isto, nas horas requeridas.
Depois, a saída de toda esta gente, sem engarrafar o trânsito... Seis meses de trabalho. Dez engenheiros especializados, e a solução ainda não foi encontrada.
Problema específico dos americanos, imbatíveis na racionalização, na série, nos números. Partir do total, para dar conforto à unidade... Novo mundo!
Dão a impressão de nada os deter; vida sucessiva e rápida. Destruí Nova Iorque, contruí-la-ão de outro modo. Aliás, que alvos admiráveis estas arquitecturas. Demolir Nova Iorque! Não é possível que o marechal Pétain não tenha tido, por um segundo, por meio segundo, a tentação. Que magnífico trabalho para um artilheiro! Militarmente não seria problema, pois não, meu general? Estive em Verdun sob as suas ordens, é suficiente, mas por desporto, por amor do ofício! Os americanos seriam os primeiros a aplaudir e, então, que veríamos nós? Pouco tempo depois, uma nova cidade estaria construída. Adivinhai como: aposto um contra mil: de vidro, de vidro!
Esta é a sua última invenção. Alguns engenheiros encontraram meio de fabricar vidro com leite coalhado, mais barato do que o betão. Imaginai: todas as vacas americanas a trabalhar na reconstrução da capital!
Nova Iorque transparente, translúcida, os andares azuis, vermelhos, amarelos! Uma fantasmagoria inédita, a luz desencadeada por Edison trespassando tudo isto e pulverizando as arquitecturas.
Os bairros populares são belos a qualquer hora. Há uma tal crueza, uma tal variedade de matérias-primas! Bairros russos, judeus, italianos, chineses. A Third Avenue, ao sábado à noite e ao domingo, é Marselha!
Chapéus cor-de-rosa para os negros. Vitrinas onde se encontra uma bicicleta pendurada por cima duma dúzia de ovos, alinhados sobre areia verde...
Frangos depenados, suspensos, em contraluz, sobre fundo negro... dança macabra!


Uma vida decorativa intensa valoriza infinitamente o objecto à venda.
O ar dos desempregados: nada os distingue, se não que andam mais devagar do que os outros. Apinhados nas praças, uns contra os outros, não conversam. Estas multidões são silenciosas: o indivíduo permanece isolado, não comunica; lê ou dorme!

Wall Street de dia: milhentas vezes descrita, mas ide lá ver!
Wall Street à noite, Wall Street às duas da manhã. Sob o luar seco e brilhante. O silêncio é absoluto. Ninguém, nestas ruas estreitas e estranguladas pela projecção violenta de linhas cortantes e perspectivas multiplicadas ao infinito, em direcção ao céu. Que espectáculo! Onde estamos? Um sentimento de solidão oprime-nos, como uma imensa necrópole. Os passos ressoam no pavimento. Nada se move. No meio desta floresta de granito, um pequeno cemitério de pequeninos túmulos, humildes, modestos: é a morte que se faz pequena, ao pé da exuberância da vida que a rodeia. O terreno deste pequeno cemitério é, certamente, o mais caro do mundo. Mas os businesssmen não lhe tocaram. Permanece como uma pausa, uma paragem na corrente vital… Solucionar a morte, último problema!
Wall Street dorme. Continuemos o passeio… Oiço um fraco murmúrio regular. Wa]l Street ressona? Não, é uma perfuradora que, harmoniosamente, começa o seu trabalho, como um trabalho de térmita. Nenhum barulho! É a única parte de Nova Iorque que verdadeiramente dorme. É preciso digerir os números do dia, as somas, as multiplicações, a álgebra financeira e abstracta destes milhares de indivíduos virados para o grande problema do ouro. Wall Street dorme profundamente. Deixemo-la dormir. A trinta metros debaixo da terra, na rocha, as caves de aço do Irving Bank. No centro, os cofres-fortes de fechaduras magníficas e brilhantes, complexas como a própria vida, um posto de polícia onde alguns homens velam. Microfones ultra-sensíveis trazem-lhes os menores ruídos da rua, e os barulhos que se notam sob as abóbadas de aço do banco moderno. Uma mosca a voar… Ouvem voar a mosca... Um velho negro deambula pelas ruas, canta baixinho uma velha melodia do Sul. A canção sobe, perde-se nas arquitecturas, mas desce também aos microfones que, debaixo da terra, registam discretamente a velha canção do Sul.
Wall Street não dorme... Wall Street está morta. Volto a passar ao pé do pequeno cemitério. Não são, agora, os maiores bancos do mundo! Não, são os mais orgulhosos túmulos de família dos grandes milionários. Aí, repousam os Morgan, os Rockfeller, os Carnegie. Como novos faraós, edificaram as suas pirâmides. Serão enterrados de pé como semideuses; e como estes gigantes modernos se tornam legendários e imortais, abriram-lhes mil janelas para que o povo saiba que talvez não estejam mortos, que respiram, que voltarão ainda uma vez para espantar o mundo com novas concepções ciclópicas.
Wall Street é a imagem da América audaciosa, deste povo que está sempre a agir e que nunca olha para trás de si.
Nova Iorque... Moscovo...
Os dois pólos da actividade moderna... A vida actual concentra-se aí...
Somente aí se ousa a experiência perigosa de que os outros aproveitarão.
Nova Iorque .. Moscovo!
Moscovo... Nova Iorque!
Paris, posto de observação!
Georges Duhamel veio à América. Dentro da mala, trouxe as suas concepções de francês médio e as pantufas. Talvez não tenha podido servir-se delas, das pantufas, o que o deixou, manifestamente, de mau humor. Por aqui, ainda não se usa disso. Pelo que as americanas são rainhas e têm pés bonitos. Ë preciso não ficar a querer mal à locomotiva que, ao passar a cem à hora, nos faz voar o chapéu.












fernand léger
funções da pintura
trad. tomás de figueiredo
livraria bertrand
1965

22 julho 2007

ilhas na corrente






(…)
Lograra substituir quase tudo excepto os filhos, pelo trabalho e pela vida de actividade normal, regular, que edificara na ilha. Estava convencido de que conseguira com essa vida algo de perdurável que o fixaria. Agora, quando se sentia solitário e tinha saudades de Paris, lembrava-se de Paris em vez de ir até lá. Fazia o mesmo com toda a Europa, grande parte da Ásia e da África.
Lembrou do que Renoir dissera ao contarem-lhe que Gauguin fora para Taiti pintar. «Porque há-de ele ir gastar tanto dinheiro para ir pintar para tão longe quando se pinta tão bem aqui em Batignolles?» Em francês soava melhor: «quand on peint si bien aux Batignoiles», e Thomas Hudson concebia a ilha como o seu quartier no qual se instalara, travando conhecimento com os vizinhos e trabalhando tão assiduamente como trabalhara em Paris quando o jovem Tom era ainda bebé.
Algumas vezes deixava a ilha para ir pescar ao largo de Cuba ou visitar as montanhas no Outono. Mas arrendara o rancho que tinha comprado em Montana por, ali, a melhor época ser o Verão e o Outono, e agora era sempre no Outono que os rapazes tinham de voltar para a escola.
Ocasionalmente, via-se obrigado a ir a Nova Iorque para se avistar com o seu agente. No entanto, era mais frequente agora ser o seu agente a visitá-lo e a levar as telas para o norte consigo.
Tinha uma reputação bem firmada como pintor, e era respeitado tanto na Europa como no seu próprio país, Contratos de exploração de petróleo em terrenos que o avô possuíra garantiam-lhe proventos regulares. Esses terrenos tinham sido terras de pastagem, e ao serem vendidos retivera os direitos ao subsolo. Cerca de metade do rendimento era absorvido pela pensão que pagava às suas ex-mulheres, e o resto dava-lhe a segurança necessária para pintar conforme lhe apetecia sem quaisquer pressões de ordem comercial. Permitia-lhe também viver onde lhe dava na fantasia e viajar quando se sentia inclinado a isso.
Tivera êxito quase a todos os respeitos excepto na sua vida de casado, embora, na realidade o êxito nunca o houvesse preocupado muito. O que lhe interessava era a pintura e os filhos, e continuava apaixonado pela primeira mulher que despertara o seu amor. Amara muitas mulheres desde então e, por vezes, lá vinha uma ou outra ficar na ilha. Precisava de ver mulheres ao pé de si e acolhia-as bem durante algum tempo. Gostava de as ler ali, às vezes durante longo período. Mas, no final, ficava sempre satisfeito quando se iam embora, mesmo se gostava delas a valer, Disciplinara-se de forma a deixar-se de discussões com mulheres, e aprendera a arte de não se casar, Estas duas coisas haviam sido quase de tão difícil aprendizagem como instalar-se e pintar a um ritmo regular e bem ordenado. Mas aprendera a fazê-las, e a sua esperança era que essa aprendizagem tivesse sido permanente. Havia muito que sabia pintar, e estava convencido de que ia aprendendo sempre mais a cada ano que passava. Mas fora difícil aprender a assentar e a pintar disciplinadamente porque tinha havido na sua vida uma fase em que ele próprio não fora disciplinado. Nunca tinha sido verdadeiramente irresponsável, mas indisciplinado, egoísta e desapiedado, isso sim. Sabia-o agora, não por muitas mulheres lho terem dito, mas por o haver descoberto finalmente à sua custa. Resolvera então só ser egoísta na sua actividade de pintor, só ser desapiedado no seu trabalho, e disciplinar-se e aceitar a disciplina.
(…)




ernest hemingway
ilhas na corrente
trad. jorge rosa
livros do Brasil
19..




19 julho 2007

bénédicte houart / vestem-se as dores













vestem-se as dores
nos bastidores da minha memória
esta é a puta
que estendeu a mão
após descruzar as pernas
esta é a ingénua
não estendeu a mão
após descruzar as pernas
esta é a nostálgica
traz a mão estendida
nunca descruzou as pernas
despem-se as dores nos
bastidores da minha memória


*


é uma casa de passagem onde
se vê o mar quando
a puta veste o fato de marinheiro e
põe a cassete da tempestade


*


mulher alguma é melhor do que
mulher nenhuma dizia o meu avô que morreu
esquecido num guarda-fatos
mulher alguma dispunha as bolas de naftalina e foi assim que
o meu avô foi primeiro lembrado pelas traças
tudo isto aconteceu há muito tempo mas
a alma não esqueceu
o nariz reconheceu

*

a puta que me pariu era a mais linda da rua formosa
eu saí a ela deve ser por isso que mal sorrio os homens perguntam
quanto é
e eu não é nada a puta que me pariu pôs-me a estudar e eu agora
só sorrio e é tudo de graça
e a seguir mostro-lhes o rabo e a seguir as pernas e ponho-me a andar
deixo-os de corpo a abarrotar
de tralha


*

um homem geme porque
o corpo da mulher que recusa
se enrosca e
a recusa é doce e um homem geme
enquanto a mulher se ausenta
estica o corpo até às nuvens
enfia os dedos no ânus das nuvens e
está frio na ponta dos seus dedos então
a mulher cose as nuvens umas às outras
monta um carrossel para se aquecer
e disse tomai os meus vestidos enfiai-os que não os quero mais
e empinou o corpo
finalmente a mulher remata o homem enrosca-se então


*

deus nos livre do mundo
soltou o moribundo
e livrou logo


*

mãe
obesa
esfrega o corpo nas coisas
derrama gordura
e as coisas brilham
Ó mãe mãe ó mãe
deixaste as coisas brilhando
para que as reconhecêssemos e agora
escorregamos nelas todas as vezes


*

hoje vou com aquele que me levar
e se for uma mulher
vou com as suas mãos que remendam
e não substituem
e se for um homem
vou com as suas mãos que remendam
e não substituem
e se ninguém houver
vou com ninguém que me leva sempre
para onde não quero
e vou com as suas mãos que substituem não remendam
é por isso que à noite
espreito para a janela dos comboios
e cumprimento-me timidamente


*


e é a sua mulher que o vai lavar quando os seus braços e as suas pernas o deixarem ficar mal vai encolhendo vai encolhendo o seu espaço já não estica os braços bocejar provoca-lhe uma dor aguda no peito as curvas do seu corpo desvaneceram-se os cantos crescem nos seus olhos para quê tantos suspiros era isto afinal e é ela que lhe vai levar a colher à boca e há-de recordar o aviãozinho que a sua mãe fazia sair da cartola os coelhos de peluche que apertava contra o peito e as coelhinhas que virilmente caçou ou as centopeias ou as centopeias tantas pernas esmagadas debaixo da sua barriga que incha incha cresce cresce a sua papada tu é que mandas é como quiseres enquanto as enrabava tic tic tic minha coelhinha o teu rabo é tão doce como o algodão cor-de-rosa que colava aos dentes quando eles ainda não tinham mastigado todas as pedras do caminho e agora gagueje meu caro senhor gaguejemos em coro já está e depois tinha sido tão rápido que chorava por mais e há-de desejar tudo recomeçar o sangue nas veias fervia e era tão quente que todo o ar evaporava em seu redor e as janelas embaciadas mais tarde recorda-se não havia mais ninguém e o escuro ainda lhe metia medo e havia cada vez mais coisas que lhe metiam medo e todas essas coisas eram escuras mãe mãe mas mesmo a mãe tinha escurecido debatia-se agora com fantasmas de terra os mesmos fantasmas que em vida para quando para quando o sossego mas agora eram outras as vozes que gritavam e essas vozes eram impacientes como dantes a sua e a sua a sua balbuciava agora doces imprecações e nem as ouvia e os seus ouvidos babavam-se decentemente ó velho tens uma meia de cada cor ó velho perdeste os suspensórios ó velho tens terra até ao pescoço e o teu pescoço já era uma maçã que até de apodrecer se esqueceu

*

acho que as crianças devem ser mantidas na ignorância
de certas coisas da vida
pois não sabendo nada sabem nada e é
muito embora muito pouco pareça muitas coisas aparecem
nós já não sabemos como nada pesa tanto que
só um pequenino pode ser derrubado
e do chão vir-se com as estrelas é quando chovem
as gotas escorrem-lhe dos dedos e são as lágrimas benditas
seja maldita a nossa incompleta desolação


*

creio em terra toda poderosa
jazo desde já alegremente aqui


*

estou a apodrecer
diz o rapaz e
cheira a noz moscada e
cheira a noz moscada
debaixo dos meus braços
há muitos odores para o apodrecimento


*


calma rapaz
se tens a vida toda
se tens a vida toda
que te enterra
se tens a morte toda para trocar


*

no dia de todos os mortos quero um homem
bem vivo na minha cama
pois os mortos são muitos e
dos vivos basta um
se não chegar
dá deus outro
parecido com os demais onde é preciso
cada vivo desalinhar













bénédicte houartinimigo rumor
número 15
2º semestre 2003


16 julho 2007

harold pinter / poema






Parti uma manhã com a minha única mulher,
Para longe das dunas em direcção à feira de Verão,
Ia comprar uma vidraça e um xaile branco,
Para lá dos penedos e do monte banhado pelo sol.
Mas um desconhecido disse-nos que a feira já tinha terminado,
E eu dei meia volta com a minha única mulher.

E eu dei meia volta e conduzi-a a casa.
Ela seguiu-me de perto para longe do Verão,
Para lá dos penedos e do monte banhado pela lua,
Através das dunas ao cair da noite,
E chegou à nossa casa sem vidraça,
E o comprido ano espreguiçou-se vindo de leste.

A minha única mulher sentou-se ao lado de uma vela.
O Inverno lamentava-se à porta.
Uma viúva trouxe-nos um longo xaile preto.
Eu coloquei-o nos ombros da minha fiel mulher.
A viúva foi-se embora através das dunas,
Afastou-se da nossa casa sem vidraça.

O ano transformou-se em alvorada prematura.
Parti uma manhã com a minha única mulher,
Para longe das dunas em direcção à feira de Verão,
Para vender uma vela e um xaile preto.
Separámo-nos no monte banhado pelo sol,
Ela em silêncio, eu para o extremo oeste.

1953










harold pinter
várias vozes
trad. pedro marques
quasi
2006







12 julho 2007

fio de lume







ias num fio de lume

quase água
quase o mar a noite

quase a corrente

os lábios
os teus lábios quase ilha

dentro dela quase o mundo
as linhas

todas as linhas o mapa
quase o segredo
que pintei no coração

um fio de névoa te levava

aranhas doces os teus olhos
asas que me tecias

e gestos quase um sismo
pedras mudas a minha voz
e dançava
quase dançava







gil t. sousa
poemas
2001




poema









antónio maria lisboa
surrealismo abjeccionismo
antologia selecionada por
mário cesariny de Vasconcelos
edições salamandra
1992